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Retórica oportunista
Foco nos interesses dos stakeholders pode ser uma desculpa dos executivos para justificar falhas

“Não trabalho para os acionistas. Sendo honesto, trabalho para os consumidores, os clientes. Meu modelo de negócios não é dirigido pela criação de valor aos acionistas”. Essa foi uma das frases de Paul Polman, CEO da Unilever, em entrevista ao jornal inglês Financial Times no início de abril. Trata-se de uma afirmação surpreendente, haja vista que vem de um CEO que, em tese, deveria prestar contas e representar os interesses dos acionistas.

A frase é inesperada, porém não exclusiva de Polman. Na verdade, ele apenas entrou para o grupo de CEOs que, após a crise financeira de 2008, passou a afirmar que a criação de valor para os acionistas como foco das atividades empresariais constitui um objetivo errado. Jack Welch, ex-CEO da GE e um dos criadores da visão de “criação de valor para os acionistas”, foi um dos primeiros a criticar o conceito que ele próprio tanto encampou, ao afirmar ao mesmo jornal, em março de 2009, que o foco dos executivos no incremento do preço das ações passou a ser uma ideia tola.

Tais manifestações são uma espécie de contra-ataque dos CEOs às críticas recebidas após a eclosão da crise de 2008. Na ocasião, houve consenso de que uma das causas dos problemas foi a busca incessante dos executivos pela maximização de seus bônus e planos de opções de ações de curto prazo, em detrimento da valorização sustentável de suas companhias. Até mesmo os investidores institucionais fizeram um mea-culpa, alegando terem sido acionistas passivos ao permitir que as empresas assumissem riscos e remunerações excessivas a fim de satisfazer os interesses de curto prazo de seus altos executivos. Dali em diante, disseram eles na ocasião, passariam a cuidar das empresas com rédeas mais curtas, exigindo maior prestação de contas dos executivos.

A abordagem de equilibrio dos stakeholders não apresenta qualquer critério para tomada de decisão

Após o arrefecimento da crise, muitos executivos passaram a apresentar a versão de que foi a pressão excessiva dos acionistas, principalmente dos institucionais, que fez com que assumissem riscos desmedidos para proporcionar os retornos exigidos pelos investidores, levando as companhias aos problemas financeiros. Muitos deles argumentam que uma das lições da crise é a de que, daqui em diante, deverão levar ainda menos em consideração os interesses exclusivos dos acionistas, passando a focar os interesses mais amplos de todos os públicos relacionados (os chamados stakeholders). Em resumo, a crise financeira pode ter ironicamente criado uma oportunidade para os executivos das grandes companhias prestarem ainda menos contas a seus acionistas, utilizando essa retórica como justificativa.

Conceitualmente, o debate acalorado traz à tona um tema antigo, porém ainda não bem resolvido: a definição da função-objetivo das empresas, isto é, dos critérios a serem utilizados para tomar decisões e avaliar o sucesso empresarial. O tema é essencial para as discussões sobre governança corporativa, já que só é possível avaliar a qualidade do governo de uma empresa quando esse é confrontado com o seu propósito, que precisa ser transparente.

Duas funções-objetivo se destacam na literatura: 1) a abordagem da maximização da riqueza dos acionistas, que defende que as decisões sejam tomadas visando a maximizar o valor de longo prazo das empresas; e 2) a teoria de equilíbrio dos interesses dos stakeholders, que prega que as decisões satisfaçam igualmente todos os públicos envolvidos com a companhia. No debate atual, os investidores institucionais têm procurado reforçar a primeira abordagem, enquanto vários executivos passaram a valorizar a segunda. A busca pelo equilíbrio dos interesses de todos os stakeholders parece, em princípio, uma visão mais adequada, ou ao menos politicamente correta. Afinal, por que maximizar apenas os resultados dos acionistas se é possível procurar equilibrar os interesses de todos os envolvidos?

Entretanto, esse raciocínio oculta diversas falhas. Primeiro, porque os interesses dos stakeholders são muitas vezes conflitantes, sendo necessária a definição prévia de trade-offs (pontos de troca) para as decisões empresariais: até quanto vale a pena sacrificar a rentabilidade a fim de evitar demissões? Até que ponto faz sentido manter um relacionamento antigo com um fornecedor que se tornou ineficiente? E subsidiar os clientes em determinadas situações, para manter a fidelização à empresa? Essas são algumas das difíceis questões que os gestores enfrentam todos os dias. A abordagem da maximização do valor das empresas possui um critério claro e objetivo, embora de difícil mensuração: as decisões devem ser tomadas desde que agreguem valor, isto é, desde que, para cada R$ 1 gasto, gerem mais de R$ 1 em termos de valor presente. Já a abordagem de equilíbrio dos stakeholders simplesmente não apresenta qualquer critério para tomada de decisão: deve-se gastar R$ 1, desde que, na visão dos executivos, muitas vezes enviesada e formada com base em seus interesses individuais, todos os envolvidos tenham seus interesses “equilibrados”.

A abordagem dos stakeholders é ainda de difícil implementação. A quem caberia identificar os stakeholders, seu grau de relevância para a organização, seus objetivos e a forma de conciliá-los? Provavelmente, essa tarefa cairia novamente nas mãos dos executivos, que definiriam tais questões com base em suas inerentes limitações cognitivas e seus potenciais conflitos de interesses.

Por essas e outras razões, vários estudiosos renomados, dentre eles Michael Jensen (um dos criadores da teoria de agência), argumentam que a abordagem dos stakeholders atende aos interesses pessoais dos executivos, deixando-os livres para tomar decisões com base no seu livre arbítrio sem possibilidade de avaliação dos acionistas. Jean Tirole, outro pesquisador de destaque, reforça essa ideia, argumentando que se deve suspeitar dos motivos por trás do endosso tão efusivo da teoria dos stakeholders por muitos executivos, sem que eles proponham a substituição do controle pelos acionistas por outra estrutura de governança efetiva.

Além da ausência de trade-offs e da dificuldade de implementação, deve-se lembrar que os acionistas são os stakeholders que possuem mais risco e menos direitos legais. Enquanto todos os participantes da corporação detêm contratos explícitos ou implícitos que os permitem saber de antemão quanto e quando serão remunerados, os acionistas possuem apenas uma espécie de voto de confiança sob a forma de ações, sem estimativa clara de como e se serão remunerados. Em caso de não recebimento por serviços prestados, é direito de qualquer stakeholder (por exemplo, um fornecedor de insumos, funcionário ou credor) acionar judicialmente a companhia. Os acionistas não possuem a mesma prerrogativa caso não tenham seu investimento valorizado. Logo, tendo em vista que os acionistas só possuem direito ao eventual resíduo empresarial (já que devem ser remunerados após os demais stakeholders) e estão sujeitos a mais riscos, é razoável que as decisões sejam tomadas em seu favor. Do contrário, poucos se aventurariam a se tornar acionistas, com impactos negativos em todo o sistema econômico. Não valeria a pena assumir mais riscos e ainda dividir o poder decisório com os demais stakeholders.

Na atual discussão, parece que os executivos têm confundido o conceito de busca pela maximização do valor da companhia — inerentemente de longo prazo e associado ao conceito de sustentabilidade dos resultados — com o de busca pela maximização dos resultados trimestrais ou ganhos de curto prazo. Foi exatamente essa associação indevida que levou muitas companhias a deixar de lado os impactos de suas decisões sobre o patrimônio de longo prazo de seus acionistas. Logo, não é a função-objetivo das empresas que deve mudar, migrando-se para a problemática abordagem de equilíbrio dos interesses dos stakeholders, mas sim a real compreensão do que significa a busca pelo maior valor possível das companhias no longo prazo.


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