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A experiência do Reino Unido com o fim da divulgação obrigatória de relatórios trimestrais de resultados
Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Todos os dias, cerca de dois bilhões de mensagens são compartilhadas nas redes sociais. Pela internet, as notícias atravessam o mundo e se multiplicam rapidamente. Essa avalanche de informações vem acompanhada de uma sensação de urgência. Vivemos acelerados e, correndo atrás do tempo perdido, tomamos decisões imediatistas. No mundo dos investimentos, a pressa também se verifica, mas a corrida é por lucro rápido. A pedido do governo do Reino Unido, o renomado economista e professor da Universidade Oxford John Kay, debruçou-se sobre o assunto e concluiu que o foco exagerado no curto prazo prejudica a competividade das companhias britânicas. “Onde estão nossas Amazons e Apples, nossos Googles?”, questiona em seu estudo, publicado em 2012. Segundo ele, na ânsia de gerar lucro e agradar logo os acionistas, as empresas tomam decisões de negócios equivocadas, com potencial para prejudicá-las ou até mesmo extingui-las no futuro. E um dos fomentadores dessa mentalidade imediatista, acusa Kay, é o relatório trimestral de resultado (leia também entrevista com o economista).

A opinião do professor repercutiu pela Europa e ganhou apoiadores. Em 2014, a Financial Conduct Authority (FCA) consultou os agentes do mercado sobre o fim dos relatórios trimestrais obrigatórios, criados como parte das normas de transparência da União Europeia em 2004. O órgão recebeu 20 respostas, das quais apenas duas eram contrárias à medida. Em novembro de 2014, as companhias do Reino Unido foram desobrigadas a publicar o documento, conhecidos por lá como Interim Management Statements (IMS). Entre as que abraçaram a dispensa estão a distribuidora de energia elétrica e gás National Grid, a companhia de água United Utilities, a fabricante de bens de consumo Unilever, a empresa de bebidas Diageo, a seguradora Admiral e a firma de segurança G4S.

A National Grid foi uma das primeiras a abolir a publicação do relatório trimestral. Em comunicado, o presidente da companhia, Andrew Bonfield, explica que a empresa investe em ativos de longo prazo e possui perfil defensivo, capaz de gerar retorno aos acionistas com baixo risco. Por isso, não vê necessidade de atualizar os investidores sobre os números da companhia quatro vezes ao ano. “A obrigação de se publicar informações pode frequentemente levar à prestação de contas de assuntos de pouca relevância para o negócio no longo prazo”, avalia Bonfield. Diante disso, a National Grid optou por divulgar seus resultados apenas no meio e no fim de cada ano. Informações que, por sua relevância, precisem ser compartilhadas com os investidores fora dessa periodicidade são veiculadas pelo canal de notícias da empresa. “Não se trata apenas de parar de divulgar relatórios periódicos, mas de decidir a melhor forma de se comunicar com o público-alvo”, comenta John Gollifer, diretor geral da IR Society, sociedade de profissionais de relações com investidores (RI) do Reino Unido. Na opinião dele, a divulgação voluntária dos relatórios trimestrais é positiva, pois reduz o foco no curto prazo e oferece mais flexibilidade para as companhias decidirem o momento e o conteúdo a ser divulgado.

Quem também apoia a iniciativa é o Legal & General Investment Management (LGIM), um dos maiores grupos britânicos de investimento, com £ 709 bilhões sob gestão. O CEO, Mark Zinkula, encaminhou uma carta aos conselhos das companhias integrantes do FTSE 350 (índice da bolsa de Londres) incentivando o fim do relatório trimestral. “Embora cada empresa seja única, entendemos que atualizações trimestrais acrescentam pouco valor para as empresas que operam em ciclos de negócios de longo prazo.” Para ele, o fim do IMS não prejudica a comunicação com o investidor. Muito pelo contrário. Ao não perder tempo com a elaboração do documento, as companhias podem se concentrar em informar os acionistas sobre assuntos mais estratégicos, como mudanças na dinâmica do setor e investimentos em inovação.

Essa visão, contudo, não é consensual entre os gestores. A Hermes Investment Management, com £ 29,8 bilhões sob gestão, é contra a ideia. “Acreditamos que quanto mais informações as empresas divulgarem, mais transparência teremos no mercado e menos risco”, enfatiza Geir Lode, chefe de global equities da Hermes. Ele pondera que não adianta abolir os relatórios trimestrais se a mentalidade dos administradores das empresas continuar focada no curto prazo. “As ações do board e do CEO são muito mais importantes para a criação de valor”, destaca.

Baixa adesão

Por enquanto, a Hermes não tem com o que se preocupar. Uma pesquisa da IR Society feita com 700 companhias abertas do Reino Unido revela que 80% delas continuam divulgando o relatório trimestral voluntariamente e apenas 2% planejam aboli-lo em 2016. Ainda que não publiquem o documento completo, 98% continuam transmitindo informações ao mercado a cada três meses.

A relutância tem algumas explicações. Embora tome tempo dos profissionais de relações com investidores, a rotina de elaboração de relatórios trimestrais é tão familiar que parece mais fácil dar continuidade a ela do que responder a dúvidas individuais de analistas. Além disso, o documento não é dispensável para toda companhia. Naquelas pertencentes a setores mais suscetíveis a mudanças sazonais, como o varejo, ele pode ser um importante instrumento para os analistas modelarem suas projeções. Por fim, abdicar do relatório trimestral significa deixar de prover essa informação a investidores acostumados a tê-la, como os americanos. Nos Estados Unidos, a Lei de Valores Mobiliários de 1934 prevê que as companhias publiquem relatórios trimestrais de resultados.

Lá, entretanto, também há especialistas defendendo o fim da exigência. Um dos escritórios de direito mais conhecidos de Wall Street, o Wachtell Lipton, encampa a ideia. Em artigo publicado no fórum de governança e regulação financeira da Harvard Law School, em agosto passado, o advogado Martin Lipton defende a extinção do relatório trimestral no país. “A SEC [Securities and Exchange Commission, reguladora do mercado de capitais nos Estados Unidos] deveria buscar iniciativas para reformular a divulgação de resultado, com o objetivo de promover a capacidade das empresas de desenvolver estratégias de longo prazo”, sustenta.

Empresários e investidores também não estão alheios à questão. Em carta escrita em 2014, Larry Fink, presidente da gestora BlackRock, afirmou estar preocupado com o fato de que, na esteira da crise financeira, muitas empresas deixaram de investir no crescimento futuro. “Muitas reduziram seus investimentos em bens de capital e até mesmo aumentaram a dívida para ampliar o pagamento de dividendos e recomprar ações”, afirma. “Pagar os acionistas faz parte de uma estratégia equilibrada. Mas não faz sentido fazer isso pelas razões erradas ou à custa de pôr em risco a capacidade da companhia de gerar retornos sustentáveis no longo prazo”, resume. Fink é um dos integrantes do “focusing capital on the long term”, grupo cofundado, em 2013, pela Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB) e pela McKinsey. Formado por 20 membros, seu objetivo é desenvolver ferramentas e abordagens que ajudem conselheiros e investidores a criar valor no longo prazo.

Nos últimos meses, as opiniões críticas à mentalidade de curto prazo emergiram até mesmo do campo político. A candidata democrata à presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton, condena as transações financeiras realizadas segundo a segundo e os relatórios trimestrais de lucros. Em discurso na Universidade de Nova York, em julho, ela argumentou que o imediatismo está prejudicando a economia e ressaltou que governo federal deve incentivar investimentos de longo prazo em plantas industriais, equipamentos e pessoas.

Ideia fora de lugar?

No Brasil, a adoção do fim do relatório trimestral de resultados seria ainda mais controversa. A percepção de é que a flexibilidade funciona bem no Reino Unido, mas ainda não serve para mercados em desenvolvimento. “Nos países emergentes, gostamos de ter uma visão antecipada de qualquer deterioração do desempenho operacional”, diz Nick Robinson, diretor de mercado de ações da Aberdeen do Brasil. A periodicidade trimestral, argumenta, garante que notícias ruins não se desenvolverão por muito tempo sem serem reveladas. “Pelo menos neste momento, esse tipo de transparência é o melhor caminho para se manter a confiança e a eficiência do mercado”, ressalta.

Sócia da Global RI, Dóris Pompeu diz acreditar que seria um retrocesso diminuir a frequência da divulgação de resultados, especialmente num cenário em que as informações percorrem o mundo em questão de segundos. “Vamos dizer que o Brasil saia da crise e comece a se recuperar. A empresa vai demorar um ano para informar os investidores sobre como isso está impactando positivamente o seu negócio? É importante lembrar que, até uma nova divulgação acontecer, a referência será o resultado negativo de um ano antes”, observa Dóris. A especialista em RI acrescenta que, embora muitas vezes sejam vistos como vilões, os investidores de curto prazo fazem parte do mercado e são necessários. “Há a visão de que o especulador é o bandido da história, mas é ele que provê liquidez para o mercado”, pondera.

Uma solução alternativa seria não acabar com o relatório trimestral, mas adaptá-lo à realidade de cada companhia. Lélio Lauretti, sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), defende que o documento respeite a natureza e a sazonalidade de cada empresa. “Para bancos, por exemplo, faz sentido o investidor pedir informações mensais. Já para uma indústria de construção ou fabricante de equipamentos de infraestrutura, não há por que ele questionar qual foi o resultado dos últimos três meses”, observa. “Essa frequência só aumenta a volatilidade dos papéis, especialmente no Brasil, onde o mercado acionário é muito pequeno.”

Procurada, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) diz não ter intenção de alterar a periodicidade com que as companhias divulgam suas informações. Para a autarquia, o relatório trimestral é relevante para o funcionamento do mercado de capitais e apropriado para o momento. Os analistas concordam. “A falta de clareza sobre o futuro, aliada à ausência do relatório trimestral, poderia prejudicar a tomada de decisão do investidor. Essa situação causaria grande ansiedade a quem está projetando”, analisa Reginaldo Ferreira Alexandre, presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec). De fato, a extinção do relatório trimestral tem prós e contras. O Reino Unido tomou a dianteira nesse movimento, mas é possível que, em breve, novos mercados abracem a ideia.


Resultados sob demanda

Em entrevista exclusiva à CAPITAL ABERTO, John Kay fala sobre os resultados de sua ideia de abolir os relatórios trimestrais, os problemas criados pela visão de curto prazo e as distorções do mercado financeiro. Economista e professor da Universidade Oxford, ele sonha com o dia em que as companhias poderão exercer mais intensamente o seu livre arbítrio. “Gostaria de viver num mundo onde as empresas pudessem transmitir aos acionistas as informações que quisessem”, afirma.

O que mudou no mercado do Reino Unido após o fim da obrigatoriedade dos relatórios trimestrais?
Ainda é cedo para saber. Os relatórios trimestrais foram removidos há apenas alguns meses e várias empresas ainda se sentem obrigadas a divulgá-los, porque o mercado americano requer atualizações constantes. Algumas companhias no Reino Unido abandonaram totalmente o Interim Management Statements [o equivalente ao relatório trimestral brasileiro], enquanto outras estão divulgando outros tipos de informações. As que permanecem publicando o relatório trimestral fazem isso também por hábito de gestão. Vamos ver quantas continuarão a adotar essa prática em três ou cinco anos. Eu, particularmente, entendo a necessidade de se fornecer grandes volumes de informações aos investidores como um indicativo de que a confiança foi perdida, e não como um meio de restaurá-la. Por isso, não acredito que abolir o relatório trimestral seja um problema, nem mesmo para companhias cujos resultados oscilam mais, como os bancos. O que importa quando se olha a rentabilidade de um banco é o ciclo econômico, muito mais que o resultado trimestre a trimestre.

Os relatórios trimestrais voluntários poderiam funcionar em mercados como o brasileiro?
Acredito que sim e, francamente, acho que qualquer país pode adotar essa medida. Na verdade, eu gostaria de viver num mundo onde as empresas pudessem transmitir aos acionistas as informações que quisessem, sem se preocupar com um modelo padrão de relatório ou um período obrigatório de divulgação. O que seria levado em conta é o período no qual a empesa tem resultados relevantes para divulgar. Acredito que essa prática seria benéfica para a maioria das companhias, mesmo em mercados menos desenvolvidos como o do Brasil.

Em que medida a visão de curto prazo é prejudicial ao mercado? Ela afeta mais as empresas ou os investidores?
A preocupação que apresentei no meu estudo foi a de que a visão de curto prazo é principalmente ruim para as empresas. Mas se é desfavorável a elas, podemos concluir que é ruim também para os seus acionistas. Uma observação curiosa sobre essa relação de investimento é que as empresas com horizontes de longo prazo costumam atrair investidores com pensamento parecido, como os que poupam para a aposentadoria.

O seu novo livro, Other People’s Money, fala da relação do mercado financeiro com o mundo real. Como esse setor, conhecido por sua ganância por ganhos rápidos, influencia a vida das pessoas comuns no Reino Unido ou no Brasil?
O ponto-chave do livro é mostrar como podemos projetar o mercado financeiro para atender às necessidades da economia real, de pessoas reais e de empresas reais. E isso não é o que está acontecendo no momento. É claro que o sistema financeiro desempenha um papel crucial no apoio à economia e à sociedade em geral, facilitando, por exemplo, os pagamentos entre as pessoas ou conectando quem precisa de recursos a investidores. No entanto, nos últimos anos, o sistema financeiro vem atuando apenas para benefício das pessoas que trabalham na indústria, e não dos clientes do setor.

Como o mercado financeiro poderia ser transformado para atender à economia real?
Proponho uma série de reformas, como a separação total de bancos comerciais dos bancos de investimento, por exemplo. Acho lamentável a forma como o mercado financeiro seduz profissionais com altos salários para realizar tarefas como inventar algoritmos que exploram as fraquezas dos outros algoritmos em negociações automatizadas. As operações segundo a segundo estão se tornando cada vez mais sofisticadas e só colaboraram para intensificar a visão de curto prazo do investidor. Isso precisa ser mudado. As mudanças na regulação feitas até hoje na Europa ou em qualquer outro lugar estão muito aquém do necessário. O meu medo é que a reforma substancial venha apenas após enfrentarmos uma outra crise, possivelmente ainda maior do que a última.


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