Mais uma reforma da Lei das S.As
Projeto de novas regras contábeis repete a saga das mudanças inúteis

Ao que consta, pretende-se mais uma vez reformar a Lei das Sociedades por Ações. Se os deuses gregos vivessem nos nossos tempos, certamente o suplício que imporiam a Sísifo seria interpretar, analisar e aplicar as sucessivas reformas da Lei nº 6.404/76. Ainda que menos sangrento, não seria menor o sofrimento do pobre herói mitológico, notadamente por perceber a progressiva perda de qualidade técnica de tais iniciativas.

Como se sabe, a Lei nº 6.404/76, certamente um dos grandes monumentos legislativos do nosso tempo, foi reformada em 1997, naquilo que se denominou uma “mini-reforma”. Ultimada a mudança, imediatamente se apresentou nova proposta, cujo objetivo inicial era, por assim dizer, reverter alguns aspectos relevantes das alterações introduzidas em 1997: quanto à eliminação, em certos casos, do direito de retirada e, genericamente, da oferta pública obrigatória em caso de mudança de controle (resultantes de uma necessidade circunstancial de interesse político, vinculada às privatizações, e que certamente poderia ter sido objeto de lei especial).

A discussão legislativa da nova proposta, que resultou na Lei nº 10.303/01, acabou levando-a a maior abrangência, com alguns aspectos extremamente positivos e modernos como a arbitragem obrigatória de disputas societárias, recentemente replicado pelo direito italiano, ou a melhor disciplina do cancelamento do registro de companhia aberta. Por outro lado, o novo texto inclui disposições definitivamente pouco claras, como aquela relativa aos direitos e vantagens das ações preferenciais, que obrigou a Comissão de Valores Mobiliários a um imenso esforço interpretativo com vistas a sanar as lacunas relativas ao direito transitório.

O foco da nova reforma, agora, parecem ser as demonstrações financeiras, que se pretende voltar a denominar de demonstrações contábeis, olvidando-se que as mesmas se destinam a informar administradores e investidores, interna e externamente, sobre a situação das finanças da companhia, entendidas como o seu patrimônio e o resultado de suas operações. Talvez seja mais difícil, neste momento, criticar os tons nitidamente corporativos da mudança quando nós, operadores do direito, orgulhosamente abrigamos na lei o conceito de negócio jurídico, mas não será por esta mudança terminológica que as companhias terão seus resultados melhor evidenciados.

Não desconhecemos, obviamente, que a reforma ora proposta não se esgota nessa mudança. Ao contrário, vai além do que devia, em qualquer circunstância, com a exigência, por exemplo, de publicação de demonstrações financeiras das sociedades limitadas, que envolve um desconhecimento da função básica dessa divulgação. De fato, uma vez que a sociedade anônima tem valores mobiliários passíveis de circulação junto a terceiros (no mercado ou privadamente, mesmo no caso das companhias fechadas) é óbvia a necessidade de que tais terceiros indeterminados possam ter acesso a essas demonstrações financeiras. Vale o mesmo para o caso específico das instituições financeiras, às quais um conjunto indeterminado de pessoas concede crédito ao fazer seus investimentos.

Isso, contudo, é basicamente falso nas sociedades de feição contratual, nas quais a relação entre o terceiro e a sociedade é muito mais individualizada e não depende de publicação, seja quando se trata da relação da sociedade com o detentor de poder de polícia, como é o caso do fisco, que já tem acesso a tais demonstrações financeiras, seja por resultar de uma relação individual credor-devedor, como ocorre nas relações da sociedade com instituições financeiras, que também já exigem as mesmas demonstrações.

Argumentar-se-á com casos recentes, em que fraudes descomunais estão resultando em graves prejuízos para membros da coletividade onde atua a sociedade fechada. No entanto, o argumento prova demais, já que as fraudes, ao menos pelo que foi até agora divulgado, ocorreram no âmbito das companhias abertas controladoras das fechadas, cujas demonstrações tinham toda a divulgação possível. Apenas eram criminosamente falsas, coisa que apenas a aplicação da velha lei de Capistrano de Abreu, agora em nível global, poderá solucionar, e não qualquer reforma legislativa.

Não pretendemos com isto, obviamente, sugerir que a reforma da matéria contábil no texto da lei societária seja, no mérito, basicamente equivocada. A crítica é feita no tocante à oportunidade e à metodologia da reforma, cujo exame não prescinde de uma visão histórica. Em meados da década de 70, os juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira valeram-se da contribuição genial do tão saudoso Manoel Ribeiro da Cruz Filho (criador, por assim dizer, junto com o não menos brilhante Álvaro Ayres Couto, da moderna contabilidade brasileira) para elaboração dessa parte do texto legal. Suas intenções eram, acima de tudo, elevar à dignidade legislativa um conjunto de princípios pouco conhecidos e jamais sistematizados.

Trinta anos se passaram e estamos próximos de uma convergência mundial acerca de padrões contábeis que, provavelmente, irá mesmo transcender os famosos U.S. GAAP por razões, à esta altura, bastante óbvias. Criar uma disciplina nova totalmente nacional, com a perenidade a que aspira (ao menos em tese), todo texto legislativo, nada mais é do que uma inoportuna versão contábil da jaboticaba: ainda que excepcional, não deixará de ser particularmente exótica.

O ponto relevante na análise da questão, contudo, não é apenas este, o qual também não poderia deixar de merecer uma referência crítica. Pior do que isto é o eterno animus reformandi, se é que existe tal coisa em latim. Até hoje é visto como elemento positivo pelos investidores de outras partes do mundo o fato de que o estatuto do capital estrangeiro no Brasil, aprovado em 1962 pela Lei no. 4.131, sofreu apenas uma reforma relevante, em 1964, mantendo- se estável nestes últimos 40 anos.

Projeto de lei vai além do que devia com a proposta de publicação de balanços pelas sociedades limitadas

Para esse investidor – e, porque não, para o nacional também – a sucessão de reformas e contra-reformas leva apenas a uma total incerteza. Não ajudou, enfim, o fato de que o direito de recesso deixou de existir em alguns casos pela Lei Lobão (o que a jurisprudência, a seu turno, inicialmente contestou, mas recentemente, com certo atraso, voltou a reconhecer), foi parcialmente restabelecido pela reforma de 1997 de forma extremamente confusa e imprecisa (levando a novas e ainda não solucionadas questões judiciais), para ser outra vez reformado em 2001.

É muito difícil, ou até impossível, para o investidor obter a necessária confiança, não apenas no aconselhamento jurídico dado, mas também no ambiente em que se pretende fazer o investimento, quando se descreve, como no parágrafo anterior, o vai-e-vem legislativo ocorrido. Aí inclui-se o agravante de a jurisprudência sobre direito societário ser extremamente escassa e de pouquíssima clareza e consistência, na maioria dos casos, a despeito do esforço de alguns abnegados que têm buscado reuni-la e, quando possível, obter uma certa sistematização. Na verdade, mais e mais, verifica-se uma tendência das decisões judiciais a se limitarem a solucionar uma lide específica, sem a visão de que servirão como precedentes para a solução de outros casos em que as circunstâncias factuais serão diversas, o que exige do Poder Judiciário o esforço – raramente viável com o acúmulo de trabalho existente – de dedução e formulação de conceitos com a necessária generalidade.

A sucessão de reformas e contra-reformas leva a uma total incerteza por parte dos investidores

Por um momento ocorre sugerir que se buscasse aplicar às sociedades anônimas a máxima criada há alguns anos para os tributos, segundo a qual “tributo bom é o tributo velho”. No entanto, uma vez que acabamos de revogar o diploma legal que, com extremo sucesso e eficiência, regulava as sociedades limitadas há quase um século, disciplinando cerca de 99% das empresas mercantis e civis brasileiras, para substituí-lo por um capítulo infeliz e totalmente desatualizado do novo Código Civil, parece que estamos condenados a repetir a mesma história das reformas sucessivas e feitas às pressas. Nos esquecemos novamente do velho ditado oriental segundo o qual o tempo se vinga das obras feitas sem a sua colaboração.


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