Teia de sanções
Em vigor desde janeiro, Lei Anticorrupção abre brecha para punição dupla das companhias

, Teia de sanções, Capital Aberto, Teia de sanções, Capital AbertoPoucos conhecem a expressão “bis in idem”. No jargão jurídico, designa a duplicidade de punições pelos mesmos fatos, por falta de harmonização entre diferentes diplomas legais — exatamente o que deve acontecer na aplicação da nova Lei 12.846. O tema foi um dos pontos discutidos no workshop “Os desafios da implementação da Lei Anticorrupção”, promovido pela capital aberto em 19 de março, na sede do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), em São Paulo, com a participação dos especialistas apresentados nas fotos ao lado. No evento, Flávio Rezende Dematté, coordenador-geral de responsabilização de entes privados da Controladoria-Geral da União (CGU), ressaltou conflitos na convivência da Lei 12.846 com as legislações de licitações, de improbidade administrativa e antitruste. O problema, segundo ele, é que muitos dos ilícitos punidos por essas normas também recebem sanções da Lei Anticorrupção.

É o caso da fraude em licitações. Pela Lei 8.666, de 1993, a companhia que comete essa contravenção é impedida temporariamente de participar em licitação e de contratar com o poder público. Já a Lei Anticorrupção pode obrigá-la a pagar uma multa de 0,1% a vultosos 20% de seu faturamento bruto. A própria 12.846 enseja a dupla penalidade, ao dispor que as suas sanções não afastam a responsabilização das empresas por atos que contrariem a 8.666.

Para sanar esse problema, segundo Dematté, o futuro decreto a regulamentar a Lei Anticorrupção deve prever, no âmbito federal, que uma só comissão apure os processos administrativos de infrações relacionadas a licitações. Já nos estados e municípios, uma investigação nesse formato dependerá da regulamentação local da nova lei.

A mesma situação ocorre na formação de cartel em licitações, delito contra a ordem econômica penalizado pela Lei Antitruste (de número 12.529, editada em 2011) e agora também pela nova lei. Dematté conta que a CGU se antecipou e, em fevereiro, firmou um acordo com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para evitar a duplicidade de punição.

O maior problema, porém, está na convivência entre as leis anticorrupção e a de improbidade administrativa. Esta última, diferentemente da de licitações, pune, na esfera judicial, as empresas beneficiadas por atos lesivos de funcionários públicos contra a administração. Com isso, uma empresa pode ser processada e punida na Justiça, pela Lei 12.846, com penas que vão desde a perda de bens e valores obtidos de forma ilícita até sua dissolução, e ainda sofrer um processo judicial que culmine em sua responsabilização e punição pelo mesmo fato com base na Lei de Improbidade Administrativa. “A solução, neste caso, seria afastar a aplicação da Lei de Improbidade”, diz Dematté. Para isso, entretanto, seria necessária uma mudança legislativa. Assim que surgirem as primeiras ocorrências de dupla sanção, “o Judiciário terá que se debruçar sobre o assunto”, afirma.

O problema se torna ainda maior diante da chamada competência difusa da Lei Anticorrupção: o diploma permite que a União, os estados, os municípios e o Ministério Público iniciem processos para aplicar sanções. Isso aumenta significativamente as chances de uma companhia responder a ações distintas pelo mesmo delito, em varas judiciais diferentes que não conversam entre si — recebendo, assim, mais de uma penalidade. Numa circunstância como essa, as empresas certamente apelarão ao Judiciário na tentativa de anular uma das penas, em recursos que podem se alongar por anos.

Não faremos como os americanos
Outro ponto que não será resolvido via decreto é a ânsia das companhias de que os programas de compliance comprovadamente robustos anulem as sanções impostas. Nesse sentido, a legislação brasileira difere da americana Foreign Corrupt Practices Act (FCPA). Recentemente, o Morgan Stanley escapou de ser punição por corrupção, por ter conseguido demonstrar que possuía mecanismos de conformidade eficazes, e que o ilícito praticado por um de seus funcionários foi ato isolado.

No Brasil, o benefício será inexistente: “As estruturas de compliance não isentarão as empresas de sanções”, pondera Flávio Dematté. Ele garante, no entanto, que programas de integridade com viés de prevenção devem ser um dos critérios para cálculo das sanções. “Esse ponto está sendo bem tratado na regulamentação, e as propostas do meio empresarial têm sido levadas em conta”, garante.

Rede de proteção
A implementação de um programa de conformidade eficiente, todavia, não é uma tarefa trivial. É preciso uma estrutura eficaz para prevenir que deslizes ocorram. Afinal, como bem lembra Esther Flesch, do Trench, Rossi e Watanabe Advogados, “sempre vai ter alguém fazendo alguma besteira em algum lugar”.

Wagner Giovanini, diretor de compliance da Siemens Brasil, concorda. Na última década, a empresa alemã teve sua reputação seriamente abalada pela descoberta de casos de corrupção de funcionários públicos mundo afora. Além de pagar a maior multa já aplicada com base no FCPA (US$ 1,6 bilhão), a empresa precisou adotar um programa de integridade em todas as suas unidades, que se tornou referência no mundo. Para se ter uma ideia, o treinamento de compliance da Siemens termina com a aplicação de uma prova dissertativa. “É preciso ter 100% das pessoas envolvidas”, diz.

O engajamento de todos os funcionários é um ponto crucial para o bom funcionamento de uma estrutura que evite delitos; isso inclui desde o alto comando da companhia até sua base. Shin Jae Kim, sócia do Tozzini Freire Advogados, cita um dado que demonstra a importância de disseminar uma cultura de cumprimento às regras nas companhias: entre os 10% da população mundial genuinamente honesta e os 10% desonestos, haveria uma massa de 80% que “nada conforme a maré”. Isso significa serem suscetíveis ao ambiente onde vivem e trabalham.

Para que seja convincente, a disseminação da honestidade deve partir da alta cúpula. Sócia do Barbosa, Müssnich e Aragão Advogados, Adriana Dantas relata um episódio que vivenciou em reunião na Índia, quando o diretor comercial de uma empresa afirmou que, se o programa de compliance fosse implementado, ele não poderia mais vender no próprio país. A resposta do CEO foi emblemática: “Então não
venda”, retrucou.

O fato traz à tona uma preocupação adicional das companhias dispostas a se adequar à nova Lei Anticorrupção: as práticas de seus prestadores de serviço. “Quase 70% dos riscos das empresas são provenientes de terceiros”, observa Fernando Palma, diretor-executivo de compliance da EY (antiga Ernst & Young). Daí a importância de estender os procedimentos de integridade aos parceiros, em contratos que prevejam o cumprimento das normas internas também por eles. Nesse sentido, a entrada em vigor da Lei 12.846 foi um alento. “Antes, era preciso negociar a inclusão de anexos de compliance nos contratos; agora, ficou muito mais fácil”, reputa Ana Carolina de Salles Freire, diretora de compliance da AES Eletropaulo.

A advogada Isabel Franco, sócia do Koury Lopes Advogados, chama a atenção para a necessidade de analisar criteriosamente os consultores contratados para prestar serviços às companhias, em especial quando são ex-ocupantes de cargos públicos. O ideal, explica, é que as empresas tenham uma lista de consultores pré-aprovados pelos departamentos de conformidade para fazer negócios. Não há dúvidas de que o desafio de combater as más práticas seguirá grande. Mas a Lei Anticorrupção vem como um suporte de peso aos que não querem cair na boca do jacaré.


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