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Retrocesso e invencionices
Projeto de lei do novo Código Comercial ameaça ambiente de negócios no País
Otavio Yazbek*

Otavio Yazbek*

Há muito se fala sobre a importância de reformas que melhorem o “ambiente de negócios” no Brasil. Análises indicam diversas áreas em que se imporiam as mudanças — algumas de cunho mais macro, outras correspondentes às chamadas microrreformas.

O projeto de Código Comercial em debate (PL 1572/2011 da Câmara) nasce como um estranho em relação a essas discussões. Suas origens estão em um diagnóstico que é a mais completa tradução dos equívocos do bacharelismo — o de que devemos enfrentar a unificação do direito privado trazida pelo Código Civil de 2002 (CC). Segundo esse argumento, naquele momento a atividade empresarial deixou de ter um regime próprio e o direito comercial, como disciplina, teria se desvalorizado. Exceto alguns professores da disciplina, ninguém acha esse ponto de fato relevante.

Hoje aqueles diagnósticos sobre o ambiente de negócios também entram nos discursos legitimadores do PL. Seus defensores acreditam que ele reduziria as incertezas. Como isso se daria? Aqui se cai em uma série de falácias — até porque o projeto tende a aumentar a insegurança.

Equívocos desde o início
Muitas das discussões sobre o PL esbarram em um muro — qualquer objeção a algum dispositivo é refutada com o argumento de que ele já teria sido alterado em uma versão recente. Como as mudanças são continuamente incorporadas às novas versões e não são divulgadas no site da Câmara (até a redação deste artigo, em meados de dezembro, não se conhecia o teor do que se deveria ter discutido havia pelo menos uma semana), a crítica pontual se torna um trabalho frustrante. O melhor enfoque, portanto, passa pela demonstração dos equívocos de ordem mais geral.

Primeiro: é de um código que se está tratando? O que unifica toda a matéria e justifica inserções ou exclusões? Há muito se reconheceu como a ideia de codificação é datada — ela é fruto da época dos grandes sistemas, de um mundo diferente. Hoje lidamos com múltiplos sistemas, complexos e especializados. O projeto abarca temas tão diversos como direito societário, contratos empresariais, títulos de crédito, direito marítimo, agronegócio e crise da empresa. O que os une? Por que esses assuntos e não tantos outros que também são direito comercial?

Ocorre que o código proposto não é um verdadeiro sistema. A variedade é gritante, e aqueles regimes estão lá por serem os mais típicos ou porque setores interessados defenderam sua inserção. Outros tantos ficaram de fora (talvez também por defesa dos interessados), o que só comprova a desnecessidade de codificação.

Segundo, como esses regimes criados pelo novo código se relacionarão com regimes especiais ou com outras regras gerais? Os defensores do projeto se esquecem de algo que, hoje, também parece óbvio: a proliferação de dispositivos legais não gera mais segurança; pelo contrário, tende a criar custos, problemas de interpretação e sobreposições. A experiência brasileira demonstra isso. Por ignorarem esse fato básico, eles propõem um diploma com mais de 800 artigos, tratando de muitos temas já pacificados.

Um exemplo está no regime dos contratos empresariais. Não raro há duplicidades, com variações, em relação ao que dispõe o CC. Haverá um período para adaptação, e será necessário criar outra hermenêutica. Tudo isso representa custos e riscos. É bom para advogados, mas ruim para a sociedade.

Outro ponto: na sua versão original, o projeto tratava de S.A. e do regime da crise da empresa (falência e recuperação). No caso das S.A., se afastava um regime já consolidado; no caso da crise, se ignorava que a lei atual é de 2005 e que os agentes ainda estão se adaptando. A S.A. saiu do PL (embora ainda existam diversas sobreposições); para a crise da empresa se adotará um regime que, até onde sei, é inédito, deixando-se a lei atual coexistir com o código, cada um com uma função. Nos dois casos, temos que lidar com invencionices — por vezes contrárias a acordos internacionais (como no caso do tratamento discriminatório dos credores estrangeiros).

E há mais um aspecto, talvez o mais grave, ligado aos erros de fundo do PL: o que hoje se propõe é um código baseado em princípios, em que cada livro se inicia com normas mais gerais. Em tese, essas disposições reforçariam uma cultura favorável à atividade empresarial. Isso denota um profundo desconhecimento sobre o atual papel dos princípios.

Os princípios não são exercícios de doutrina inseridos na lei, mas normas de um tipo especial, que permitem que se escape da rigidez do formalismo em alguns campos. Eles são importantes quando se discute temas como a relação dos cidadãos com o Estado, os direitos humanos e sociais, mas nas relações entre empresários eles criam um espaço para a valoração de soluções que não se coaduna com a demanda por segurança.

Hora de dizer não
Como o projeto não decorreu de diagnósticos rigorosos e de uma base social mais ampla — mas de impressões unilaterais de algumas pessoas do meio jurídico —, muitos argumentos de seus defensores são retóricos. E tudo piorou com o correr das discussões, quando cada grupo de interesse começou a defender seu quinhão.

Em reportagem recentemente publicada no jornal Valor Econômico se esclarece, com base em declarações do relator do projeto, que nas próximas versões se restringirá a possibilidade de fiscalizações nas empresas: a menos que autorizadas judicialmente, apenas seriam possíveis sob aviso com 48 horas de antecedência! Uma disposição muito pouco coerente com as demandas atuais.

Outro exemplo de argumento falho é o da desconsideração da personalidade jurídica. Diante dos abusos desse instrumento no Brasil, os defensores do PL sustentam que, com as disposições mais restritivas nele contidas, se impedirão as decisões arbitrárias. Novamente se vende mais do que se pode entregar.

Em suma, o PL não nasce de um verdadeiro diagnóstico. A estratégia e a técnica legislativa são falhas, as soluções muitas vezes decorrem de um jogo pouco democrático e o discurso de legitimação é cheio de falácias e obscuridades.
O projeto de Código Comercial é a resposta do século 19 a uma pergunta que ninguém fez no século 21. Um casamento entre o retrocesso e o experimentalismo.


*Otavio Yazbek ([email protected]) é sócio de Yazbek Advogados e professor do programa de educação continuada e especialização em Direito GVLaw


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