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Nada legal
O imbróglio em torno da aprovação de contas em assembleia provocado pela inabilitação de Eike Batista
Nada legal

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Não há negligência que resista ao passar do tempo. Prova disso é a discussão instaurada no mercado desde que Eike Batista foi inabilitado a exercer o cargo de administrador de companhia aberta por cinco anos. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) julgou o caso em novembro passado, mas a decisão ainda repercute — e pode respingar até nesta temporada de assembleias gerais ordinárias (AGOs), agendada para março e abril. Para a autarquia, o empresário infringiu o artigo 115 da Lei das S.As. ao votar irregularmente na AGO de 2014 da Óleo e Gás Participações, sucessora da OGX. A decisão surpreendeu. A punição chegou depois que minoritários, agora diante de uma companhia em recuperação judicial, resolveram contestar a legalidade do voto e levar a discussão à CVM. O episódio direcionou a atenção do regulador a um ordenamento da legislação que vinha sendo pouco percebido — não apenas por Eike Batista, mas igualmente por vários outros empresários de companhias abertas.

O artigo da Lei das S.As. em questão diz que o acionista não poderá votar nas deliberações da assembleia geral relativas “à aprovação de suas contas como administrador”. O texto é bastante objetivo, ao contrário de outros trechos tradicionalmente controversos que compõem o mesmo artigo —a proibição de voto em casos de benefício particular e de conflito de interesses é muito mais complexa, pois a legislação não determina o que caracteriza exatamente essas situações. Ainda assim, o veto ao voto do acionista-administrador sobre as contas da companhia está rendendo um acalorado debate, com as mais diferentes interpretações. No caso julgado, Eike foi punido por participar de forma decisiva da aprovação das demonstrações financeiras da OGX. Na avaliação da CVM, o empresário deveria ter ficado de fora da votação porque, na ocasião, acumulava o posto de presidente do conselho de administração com o papel de acionista controlador.

A partir daí, uma saraivada de críticas recaiu sobre a autarquia. A primeira concentra-se no fato de Eike ter votado por meio de duas pessoas jurídicas: a Centennial Mining e a Centennial Equity, e não diretamente. Apesar de as sociedades serem integralmente controladas pelo empresário, o ordenamento jurídico brasileiro baseia-se na separação da personalidade jurídica — pessoas e empresas são considerados entes distintos, ainda que sob controle comum. Dessa maneira, argumentam alguns advogados, o voto sobre as contas foi apresentado pelas empresas de Eike, e não por ele. “A desconsideração [da personalidade jurídica] só ocorre em caso de fraude”, observa o jurista Nelson Eizirik, sócio do escritório Eizirik & Carvalhosa. Ou seja, o acionista ficaria impedido de votar apenas se tivesse constituído um veículo pessoa jurídica exclusivamente para participar da deliberação. Não foi o caso de Eike. A Centennial Equity figura como maior acionista da OGX desde o IPO, em 2008, e votou em todas as suas assembleias ordinárias desde então.

O advogado Luiz Leonardo Cantidiano, ex-presidente da CVM, afirma que o regulador errou. Em sua coluna de SELETAS, edição semanal da capital aberto, Cantidiano argumenta que o artigo 142 da Lei das S.As., ao afirmar que compete ao conselho de administração “manifestar-se sobre o relatório da administração e as contas da diretoria”, evidencia uma separação de papéis. As contas são tarefa do administrador-diretor, não do administrador-conselheiro, afirma. Ou seja, Eike teria infringido a lei apenas se fosse integrante da diretoria. Como participava só do board, não teria existido ilegalidade.

Do outro lado ficou a CVM. A autarquia defende a necessidade de preservação da finalidade do artigo 115, que é a de impedir o acionista de aprovar as contas da companhia em causa própria. Como as sociedades Centennial, ainda que constituídas sob a forma de pessoa jurídica, têm Eike como único beneficiário, tudo levaria a crer que a “manifestação última de vontade dessas empresas é a vontade de seu controlador e único sócio”, afirma a CVM. O diretor Pablo Renteria, relator do caso, escreveu em seu voto: “A atividade hermenêutica deve pautar-se, prioritariamente, nos fins e nos valores a que se orienta a norma jurídica. Se é verdade, como visto, que a hipótese legal de impedimento de voto tem por finalidade assegurar a higidez do processo de deliberação social, é certo, por conseguinte, que deve ser reconhecida à norma a amplitude necessária à realização de sua finalidade.” E acrescentou: “Interpretada de outro modo, a regra legal restaria amesquinhada, desprovida de sentido e utilidade prática.” Renteria foi acompanhado pelos demais diretores da CVM na avaliação.

Não pegou

Apesar de tratar do caso específico de Eike na OGX, o julgamento ouriçou os mais respeitados advogados do direito empresarial. O problema é que o voto do acionista que também é administrador — especialmente, conselheiro — sempre foi usual nas deliberações sobre as demonstrações financeiras. Eles alertam que a visão da autarquia, se prevalecer em casos futuros, pode não restringir apenas o voto dos controladores. “[O impedimento] pode valer para minoritários que alcançam vagas no conselho de administração”, adverte Eizirik.

Marcelo Trindade, advogado e ex-presidente da CVM, em artigo publicado no Valor Econômico, rejeita a forma como a autarquia apresentou seu entendimento sobre o tema. “Uma questão tão complexa e controversa não deveria ter sido tratada por meio de processo sancionador”, afirma. O advogado reconhece a possibilidade de “interpretação equivocada da norma pela generalidade das pessoas”, mas defende que, se esse foi o caso, não caberia a manifestação da autarquia sob a forma de condenação, mas sim de esclarecimento. Os desdobramentos, afinal, não são nada simples. “Como evitar que os acionistas mais relevantes das companhias sejam impedidos de votar o balanço anual?”, questiona. Se a tese da CVM prevalecer, ele alerta, acionistas controladores e minoritários importantes podem vir a se afastar dos conselhos de administração. “Uma profissionalização que, de tão forçada, tenderia a se tornar artificial”, argumenta.

A preocupação dos advogados tem destino certo: na prática, diversas companhias que deveriam impedir o voto de seus acionistas-administradores não o fazem, assim como os investidores também parecem não perceber a irregularidade. Um levantamento feito por SELETAS identificou casos em que o voto das contas pelo acionista-administrador acontece. A reportagem selecionou companhias com administradores que nelas detêm diretamente participações e encontrou situações variadas em que a norma é ignorada.

José Janguiê Bezerra Diniz, presidente do conselho de administração e fundador da Ser Educacional, por exemplo, é dono de 70% do capital diretamente e votou na assembleia ordinária de 2015 — a informação, verificada na ata da assembleia, foi confirmada pela área de relações com investidores. Em situação semelhante está a Fertilizantes Heringer. A ata da AGO realizada em abril de 2015 indica que a contas foram aprovadas “por unanimidade de votos, ressalvadas as abstenções apresentadas à mesa pela acionista OCP International Coöoperative U.A e pelo acionista City of New York Group Trust” — os controladores não constam na lista dos que abriram mão de votar, portanto. Na ocasião, Dalton Dias Heringer era titular direto de 46,39% do capital, além de presidente do conselho de administração; seu filho Dalton Carlos, dono de 7,32% do capital, acumulava as funções de vice-presidente do conselho de administração e de diretor presidente. Procuradas na ocasião, Ser Educacional e Fertilizantes Heringer não concederam entrevista.

Efeitos indesejados

As consequências da aplicação do artigo legal não são simples. Se persistir a visão de que o impedimento de voto vale para qualquer situação em que o acionista é também administrador, controladores e investidores relevantes terão de ficar de fora da aprovação do balanço. Efeitos indesejados dessa situação podem ser a “profissionalização artificial” dos conselhos mencionada por Trindade ou, como afirma outro advogado, que pediu para não ser identificado, a ocupação dos assentos dos acionistas com “laranjas”.

Apoiados na experiência com a fabricante de armas Forjas Taurus, investidores encontraram uma alternativa que pode inspirar uma solução para o impasse. A companhia foi alvo de intenso embate por causa de irregularidades nas demonstrações financeiras. No auge da discussão, em 2014, investidores minoritários liderados por Joaquim Baião, ex-dono da corretora Geração Futuro, e pelo fundo de pensão Previ (dos empregados do Banco do Brasil), conquistaram a maioria do board e passaram a adotar medidas para consertar os problemas no balanço criados sob o comando de Luiz Estima (na ocasião, já ex-controlador, mas ainda dono de cerca de 44% das ações). Uma delas foi submeter à assembleia a aprovação das contas da companhia e do balanço como itens distintos da pauta.

A ação era inédita. Até então, não só na Taurus, como nas demais companhias abertas, as duas matérias eram sempre deliberadas em conjunto. As contas diferem das demonstrações financeiras por não se materializarem num documento público e padronizado, produzido de acordo com as regras contábeis do País. As contas misturam-se ao conteúdo do relatório de administração e servem como justificativas dos executivos para os resultados alcançados.

A separação promovida na Taurus fez com que os minoritários conseguissem rejeitar as contas, deixando as demonstrações financeiras a salvo de contestações — os balanços já haviam sido reapresentados após determinação da CVM e troca da diretoria. Estima ficou de fora da votação das contas. O empresário chegou a consultar a CVM a respeito da legalidade de sua participação, pois detinha ações por meio da holding EstimarPar, mas a autarquia afirmou que o empresário não poderia votar, de acordo com o artigo 115. A partir dessa etapa, os minoritários seguiram em busca do ressarcimento a que acreditavam ter direito. Em abril de 2015, foi iniciada uma ação de responsabilidade contra o ex-controlador que continua até hoje na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM).

“A CVM deveria editar um parecer de orientação que oficialmente separasse, nas pautas de votação, a aprovação de contas e de demonstração financeira. A lei só prevê o impedimento de voto no primeiro caso, o que justificaria, ainda, que a situação fosse incluída nas verificações de rotina do programa de supervisão baseada em risco”, sugere um advogado consultado pela reportagem. A segregação, completa o especialista, evitaria que a aprovação do balanço caísse nas mãos de uma minoria pouco relevante ou eventualmente inescrupulosa, ao mesmo tempo em que daria aos acionistas não administradores a chance de questionar as contas apresentadas.

Há ainda a alternativa de mudança da lei. A rigidez que o artigo 115 aplica aos acionistas-administradores está, na visão do advogado e chefe do departamento de direito comercial da USP Erasmo Valadão França, diretamente relacionada a outro trecho da Lei das S.As.: o artigo 134, que garante a exoneração de responsabilidade de administradores e fiscais se houver a aprovação, sem reserva, das demonstrações financeiras e das contas. Na avaliação de França, o benefício poderia ser suprimido do diploma. “Funciona assim na Alemanha, na França e na Itália”, considera. Isso significa que, nesses países, a aprovação das demonstrações financeiras pelos acionistas não exime os administradores de culpa caso irregularidades sejam descobertas. A sugestão, na visão do advogado, reduziria a importância da aprovação das contas e, por consequência, dirimiria o problema da interpretação sobre o impedimento de voto. Da forma como está, porém, a lei é clara, na visão de França: “Não se pode julgar a si próprio”, sentencia. Diferentemente dos outros advogados especializados em direito empresarial consultados pela reportagem, ele concorda com a decisão da CVM no caso Eike Batista.


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