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Absolvição da União pelo conselhinho no caso Eletrobras deixa ao menos uma lição

 

Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

“Catch-22 says they have a right to do anything we can’t stop them from doing.”

No clássico Catch-22 de Joseph Heller, essa regra da atuação do Estado é invocada por soldados para justificar seus atos abusivos. Infelizmente, as armadilhas lógicas do livro de 1961 são de atualidade perturbadora no mercado de capitais brasileiro. Por aqui, os acionistas de estatais são oficialmente reféns dos desmandos do governo.

Exemplo recente é o caso da Eletrobras, “obra” para a qual o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, o conselhinho, escreveu um triste capítulo em 28 de junho passado.

A história vem de 2012. Em setembro daquele ano o governo editou a MP 579, oferecendo a “opção” ao setor elétrico de renovar as concessões, em condições claramente desvantajosas. Com a renovação, a Eletrobras perderia 9 bilhões de reais em cortes de tarifas (para mascarar a inflação, ou “garantir a modicidade tarifária” segundo o discurso oficial) e 6 bilhões de reais na indenização de investimentos devida pela própria União. O mesmo governo, como controlador, aprovou a espoliação em assembleia geral extraordinária (AGE).

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) cumpriu seu papel — ou melhor, tentou. Em 2015, seu colegiado condenou a União, possivelmente resistindo a pressões nada republicanas (terão sido apenas coincidência os sucessivos contingenciamentos e o esvaziamento de quadros da autarquia à época? O ajuste fiscal seria um bom álibi, mas a autarquia já tinha superávit crescente).

Apesar de ser louvável a corajosa independência, a CVM poderia ter feito melhor. Em vez de condenar a União pelo gritante abuso decorrente do teor de seu voto, a autarquia optou pela frágil teoria do “conflito formal”, pela qual a violação à lei se dá pelo simples fato de o acionista proferir um voto em situação de potencial conflito. A Lei das S.As. não tem redação cristalina nesse ponto, mas seus próprios redatores — ao lado da melhor doutrina e da maior parte do mundo civilizado — entendem que o conflito só pode ser verificado diante dos impactos concretos da deliberação.

Com a opção pelo conflito formal, o abuso em si ficou em segundo plano. Foi como punir um sujeito por ter entrado armado no banco, nada dizendo sobre os sacos de dinheiro que levou. A incoerência da tese não é tão evidente quando o voto é, como nesse caso, deletério à companhia, mas basta pensar na hipótese de que a representação da União nas estatais fosse independente e tivesse rejeitado o esbulho proposto pela MP 579: se o sujeito que entrou armado no banco impedisse o assalto por bandidos que lá estavam, o que punir?

Essa é a lógica geral de qualquer tipo de ilícito: pune-se quando cometido, e não apenas quando houve sua possibilidade. Não é diferente com abuso no poder de controle. Se a mera possibilidade de o controlador violar deveres fiduciários fosse razão para privá-lo de ditar os destinos da companhia, não seria o caso de afastá-lo por completo, enterrando o instituto da sociedade anônima, e tentar-se criar algo revolucionário, como uma ditadura dos minoritários? Afinal, minoritários parecem pertencer a uma espécie diferente, incorruptível, que os impede de sacrificar interesses comuns a seus pares em prol de seus próprios.

A CVM tratou o assalto como irrelevante: a condenação foi, declaradamente, apenas pelo ato da União de proferir um voto na AGE.

Governança governista

A União recorreu, sustentando que, como a Lei das S.As.  permite que o controlador de estatal a oriente para atender o “interesse público”, a companhia pode servir de canal para implementação de políticas governamentais. Catch-22: o governo pode efetivar políticas públicas por meio das estatais, desde que em nome do interesse público, que é o de o governo efetivar políticas públicas.

E o conselhinho aceitou. Houve empate entre os oito conselheiros; mas o desempate é dado pelo voto da presidência, ocupada pelo Ministério da Fazenda. Heller aprovaria o enredo.

Vale notar a ironia de que representantes da União componham maioria do órgão que julga, em instância final, os seus próprios atos num caso de conflito de interesse. Esse caso revela mais uma incoerência: sob o conflito formal, o particular não pode nem votar se alguém entender que tem interesses concorrentes; já o governo não só pode, como depois ainda tem maioria para julgar o que fez.

O episódio tende a restringir o investimento em estatais a investidores estatais, que por cabresto aceitem a posição do controlador. Basicamente, o oposto da ideia de se recorrer à estrutura da S.A. para financiar-se com recursos do público investidor.

Lado positivo

Apesar da péssima mensagem ao mercado acionário, há um ponto positivo na história. Para reformar a decisão da CVM, o conselhinho aceitou o argumento de que a política do governo preenchia o conceito de “interesse público previsto na lei, avaliando o conteúdo da deliberação”. Na prática, o conselhinho rejeitou a tese do conflito formal. Torçamos, portanto, para que o órgão seja coerente e a rejeite também para companhias privadas.

Sim, a conclusão do conselhinho quanto ao conteúdo do voto da União foi obviamente equivocada. Entretanto, arriscamos supor que se a CVM tivesse aplicado o conflito substancial, condenando o governo pela violação concreta de seus deveres fiduciários, os integrantes do órgão teriam tido diante de si uma condenação muito mais sólida e passível de ser mantida, até por unanimidade. Sem o devido exame dos efeitos da deliberação, a opinião que prevaleceu no conselhinho foi a de que o Estado teria dever de votar, por ter “interesses legítimos” a perseguir como controlador.

Ora, interesses legítimos todo indivíduo tem — os seus. Nada mais legítimo que o acionista buscar seu próprio benefício, desde que comum aos demais. As divergências de opiniões são apenas sobre a melhor forma de obtê-lo. Foi isso que viciou o voto da União, que buscou seus propósitos particulares em detrimento dos sócios, e não — como corretamente entendeu o conselhinho — o fato de ter votado. Assim, se é legítimo ao controlador estatal perseguir seus interesses, o mesmo vale para qualquer controlador privado.

Esperemos que os impactos dessa decisão não sejam tão negativos. Quem sabe ela sirva para aprimorar o entendimento da CVM sobre voto em conflito. Ou, ainda, que jogue luz sobre a necessidade de se tratar assuntos envolvendo conflito de interesses com mais coerência e menos reféns.


*João C. de Andrade Accioly ([email protected]) é sócio de Sobrosa & Accioly Advocacia. Julia Damazio Franco ([email protected]) é sócia de Cantidiano Advogados


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