Vive-se um momento paradoxal no processo de aprimoramento da legislação do mercado de capitais brasileiro. Enquanto ecoa uníssono o discurso da necessidade de atração de investidores, notadamente os estrangeiros, constata-se que toda a agenda legislativa está sendo mobilizada por pautas que lhes são indigestas.
De um lado, há a proposta para tornar menos atrativo o regime tributário aplicável aos dividendos. De outro, discutem-se maneiras de flexibilizar as atuais regras de governança. Nesse conjunto, existem desde proposições para enfraquecer a atuação dos órgãos de fiscalização e as regras de impedimento de voto do acionista — entenda-se, o controlador — até permissões para a adoção de estruturas mais arrojadas de alavancagem societária, como o voto plural. Para o investidor, desconhece-se matéria “positiva” que esteja em destaque na atual pauta legislativa.
Considerando as prioridades existentes, dois temas se impõem: o aprimoramento dos mecanismos de reparação de prejuízos sofridos pelos acionistas e a necessidade de atualização das regras do direito de recesso. Enquanto o primeiro tem tido mais destaque a partir dos recentes casos ruidosos de má gestão e abuso de controle, o último não pode ser desprezado, especialmente pelos benefícios que promove para a governança societária.
Recapitulando: o direito de recesso é a prerrogativa de o acionista insatisfeito com determinada deliberação retirar-se da sociedade, recebendo em contrapartida o valor de suas ações. Sua função, por excelência, é servir de remédio e proteção ao investidor contra determinadas deliberações, nas quais há uma espécie de quebra do pacto societário existente. São os casos da adoção de algumas reestruturações societárias, da mudança do objeto social da companhia e de outras situações expressamente previstas em lei.
Legislação inadequada
Ocorre que a legislação atual é inadequada para atender o objetivo do instituto. Por exemplo, ela não abarca, de maneira adequada, novos instrumentos do mercado de capitais, como o empréstimo de ações. Na sua aplicação prática, adota critérios de exclusão do direito que são questionáveis, como a opção de saída pelo mercado (“market out”), caso a companhia preencha algumas condições. E, no que se mostra mais grave, o valor do reembolso é estabelecido por meio de um critério abstrato, fixo e que tem se mostrado, na virtual totalidade dos casos de companhias abertas, ultrapassado.
Afinal, segundo o entendimento que predomina, a lei estabeleceria que, no silêncio do estatuto social sobre a matéria, o valor do recesso seria calculado com base no valor patrimonial da companhia. Conforme diagnosticado por Daniel Kalansky, em tese recém-defendida na USP, esse critério, em primeiro lugar, não cumpre a função básica de ser justo, promovendo inadequadas situações em que a companhia lucra com o recesso do acionista que opta por exercer o direito. Além disso, ele não faz mais sentido para grande parte das empresas contemporâneas, considerando as mudanças na forma como elas se relacionam com seus meios de produção. A título de exemplo: qual a relevância do patrimônio líquido para empresas focadas no capital intelectual e na tecnologia, em que os ativos registrados em balanço não guardam relação com o valor intrínseco da companhia?
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No referido estudo, foi apontada a necessidade de se adequar a legislação atual à evolução das melhores práticas internacionais, reconhecendo que a imposição de um critério de avaliação absoluto e abstrato apenas promoverá situações de injustiça no caso concreto. Ainda que em prejuízo de uma suposta segurança jurídica, seria benéfica a adoção de uma flexibilidade para a definição do critério de avaliação, de modo a ajustá-lo à realidade de cada companhia. Em contrapartida, eventuais inadequações deveriam ser corrigidas pela possibilidade – atualmente inexistente – de os interessados questionarem o critério aplicado, tal como já ocorre no procedimento de fechamento de capital.
Não se pode esquecer que o direito de recesso é um instrumento valioso para solucionar os problemas de agência dentro de uma companhia. Se bem ajustado, ele promove, no administrador ou na maioria acionária, a necessidade de adaptar o negócio a ser realizado de forma a atender também o interesse do acionista minoritário, sob pena de ele exercer seu direito de saída e descapitalizar a sociedade. Na nossa legislação, o direito de recesso não cumpre essa função. Aqui, esse direito não é apenas mal ajustado: ele é meramente nominal e não promove qualquer função útil para a governança societária. Trata-se, portanto, de um candidato excelente para uma discussão legislativa qualitativa.
*Raphael Martins ([email protected]) é sócio do escritório Faoro & Fucci Advogados
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