Sem resposta para conflito de interesses
Retomado o debate sobre interpretação de dispositivo da Lei das S.As.

 

Marcelo Godke Veiga*

Marcelo Godke Veiga*

Na China, quando uma pessoa deseja que uma outra “viva em tempos interessantes”, na verdade o que faz é amaldiçoá-la. Talvez alguém tenha desejado isso ao Brasil. Não basta atravessarmos uma crise econômica sem precedentes, escândalos de corrupção sem fim, violência descontrolada, dentre outros numerosos problemas. Agora enfrentamos também importante debate sobre um grave problema jurídico para o qual a lei societária não tem resposta adequada. A questão envolve algumas das mais importantes companhias brasileiras de capital aberto.

Várias das empresas envolvidas em escândalos de corrupção noticiados quase que diariamente têm várias características em comum: são companhias abertas com controle concentrado nas mãos de uma ou poucas famílias, todas com relacionamento muito forte com o Estado. A cultura que prevalece no seio dessas empresas é, na grande maioria das vezes, a da família que as controla, mesmo sendo o capital aberto.

Em algumas dessas organizações parece haver verdadeira intenção de se mudar algo. Nessa toada, o fechamento de capital, por exemplo, torna-se uma alternativa a ser levada em consideração. Mas, para empresas com proporções mastodônticas, não buscar financiamento no mercado de capitais não parece ser algo viável. Uma outra possibilidade seria a criação de departamento de compliance que funcione de verdade. Além disso, para a efetiva mudança na cultura da empresa, a saída da família controladora do dia a dia corporativo pode ser algo muito promissor. Enfim, se o espírito for de mudança, os caminhos serão encontrados.

Note-se, entretanto, que o acionista majoritário brasileiro típico tem enorme relutância em abrir mão do poder de mando e do efetivo controle sobre os negócios. Quer sempre impor sua visão e dificilmente permitirá mudança efetiva da cultura da empresa. Temos, infelizmente, um exemplo recente no Brasil.

Nesse caso específico, embora membros da família controladora estejam encarcerados, utilizaram-se do poder de voto para eleger um outro familiar para o cargo de principal executivo da empresa.

Por isso, emerge uma indagação muito relevante para a qual o direito societário brasileiro não apresenta solução adequada: apesar de os controladores serem detentores de votos suficientes para eleição do membro da família como principal executivo, não estariam conflitados a ponto de não poderem votar? De fato, existe um debate jurídico intenso a esse respeito no Brasil. De um lado, há quem defenda que o conflito de interesses a que se refere a parte final do parágrafo primeiro do artigo 115 da Lei das S.As. (“o acionista não poderá votar nas deliberações […] em que tiver interesse conflitante com o da companhia”) é meramente “formal” — ou seja, pelo simples fato de estarem conflitados, não poderiam votar. De outro lado, há quem entenda que o conflito a que se refere esse dispositivo legal é “material” — o acionista não precisa deixar de votar mesmo que esteja conflitado, mas se deverá apurar casuisticamente se o voto do acionista conflitado levou a companhia a experimentar perdas, que deverão ser apuradas e indenizadas.

A questão já rendeu debates acalorados no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e nos bancos acadêmicos, sem que se tenha chegado a uma definição sobre a interpretação a ser adotada. Particularmente, afilio-me ao lado que entende que o conflito a que se refere o dispositivo legal anteriormente mencionado é material, e por um motivo muito simples: não se pode extirpar desarrazoadamente o direito de voto do controlador, pois os conflitos de interesses são inerentes às sociedades anônimas; ademais, há consequência legal para o controlador que vote de maneira abusiva, mas não se pode dizer o mesmo dos minoritários — não se pode deixar exclusivamente nas mãos deles a tomada de decisões que também afetarão os maiores investidores (os majoritários).

Importante ressaltar que a Lei das S.As. dá ao acionista detentor de ações com direito de voto a faculdade de eleger os administradores. Não há qualquer restrição nesse sentido, mesmo em caso de conflito de interesses.

Pode-se indagar, todavia, se, pela gravidade da situação, não seria o caso de endurecer a interpretação da lei de maneira a não permitir que acionistas envolvidos em escândalos de corrupção votem, já que isso pode, em tese, prejudicar a própria companhia. A lei não prevê essa consequência e é possível dizer que nosso direito societário não está devidamente equipado para lidar adequadamente com situações desse tipo. Ela se limita a prever a possibilidade de se impor ao acionista o dever de indenizar em caso de exercício abusivo do direito de voto, o que deverá ser apurado a posteriori. Portanto, não se deve endurecer a interpretação por esse motivo.

Se de fato foi jogada a maldição para vivermos “em tempos interessantes”, parece que ela se concretizou.


*Marcelo Godke Veiga ([email protected]) é sócio de Godke Silva & Rocha Advogados

 


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