Escuta atenta e saúde psíquica devem ser foco dos líderes empresariais
Abordagem psicanalítica abre espaço para verdadeira transformação nas relações de trabalho no pós-pandemia
A empresa ética

Imagem: Freepik

A escuta atenta é uma das principais ferramentas de que a psicanálise dispõe para ajudar as pessoas que buscam a técnica (ou terapia, ou filosofia, ou ciência, as definições variam) criada por Sigmund Freud quando querem enfrentar melhor os desafios que a vida impõe e seguir adiante. Uma boa relação analista-analisando favorece o processo, criando e reforçando a ideia de confiança mútua. Pois a mesma dinâmica pode ser aplicada às relações internas nas empresas, dos líderes com seus colaboradores. Se já valiam antes da revolução causada pela pandemia, esses conceitos ganham ainda mais relevância diante da consolidação do teletrabalho, da confusão causada pela mistura — muitas vezes indigesta — de vida doméstica e profissional e da angústia que atingiu as pessoas sem discriminação de posto ou cargo.

A extrapolação dos conceitos e práticas psicanalíticas para o mundo corporativo está no cerne do trabalho de Hamilton Frediani, psicanalista e consultor especializado em liderança, sócio-fundador da Clínica Corporativa. Numa conversa na Conexão Capital, ele relatou o que tem escutado no consultório e na lida com empresas durante essa pandemia. São conteúdos, segundo ele, que já nos permitem imaginar como será o mundo do trabalho quando a crise passar. “E sempre imaginamos melhor do que prevemos. Mas dá para imaginar com base em algumas coisas que já sabemos”, afirma Frediani.

O psicanalista ressalta a importância de as empresas verdadeiramente incorporarem a atenção à saúde psíquica dos colaboradores, fator que integra a receita para a construção da confiança — e os líderes têm papel fundamental nesse ponto. Os líderes, aliás, estão postos à prova como raramente se vê. Atingidos pela onda da pandemia como todos, os seus comandados incluídos, eles agora precisam reforçar os aspectos que os aproximam de uma liderança mais humana. Afinal, são eles pessoas, com sentimentos e vulnerabilidades (conhecidas ou escondidas). “Em que outra situação que não o home office um colaborador poderia ver na tela um recorte da casa do chefe, uma xícara, um varal, crianças circulando? Essa circunstância imposta pela pandemia aproxima as pessoas”, analisa Frediani. A seguir, os principais trechos da conversa.

Como vai ser o mundo?

Pelo que tenho ouvido no consultório e nas conversas com as empresas, há três grupos principais quando se trata da reação à pandemia. O primeiro é o que quer o mundo antigo de volta, de pessoas que continuam sofrendo da mesma maneira como sofriam no início da pandemia. São os resistentes. O segundo grupo é o alinhado à ideia do novo normal, apostando num modelo híbrido que vai misturar o melhor do formato antigo e do formato novo. Classifico essas pessoas de “adaptativas”. Há, ainda, os que vivem com a perspectiva de um novo anormal, em que o mundo deve estar constantemente sob a ameaça de outras pandemias. Eles se apoiam na ideia de que a pandemia de covid-19 não foi um meteoro, algo absolutamente imprevisível — muitos já alertavam para a possibilidade de um vírus se espalhar como está acontecendo.

Benefícios e malefícios do novo formato de trabalho

Já é possível observar algumas coisas nesse sentido. Para as empresas, eu vejo como principais benefícios uma maior conectividade entre as equipes e um aumento de agilidade para se tomar decisões. Até por urgência e imposição das circunstâncias, muitos ritos foram deixados de lado. Os pontos de atenção da perspectiva das empresas são a segurança de dados e de conversas. Já para os colaboradores, depende do fato de terem ou não filhos e da idade dos filhos — a experiência é muito diferente entre esses casos. Mas um ponto positivo é a maior flexibilidade para se integrar as vidas pessoal e profissional. Do lado negativo, destaco um aspecto bastante importante: longe do escritório, as pessoas podem ter medo de perder laços, de serem esquecidas no caso de uma promoção, por exemplo. É um medo de “despertencimento”. A extrema instrumentalização do trabalho no sistema remoto acaba tirando a espontaneidade.

Papel das empresas e dos líderes

Passado algum tempo da pandemia, com a situação se acomodando, já dá para notar que muitos CEOs e líderes estão conseguindo lidar com o próprio ego — tenho lido declarações de CEOs que antes seriam improváveis. Nesse movimento, os líderes acabam confiando mais nas suas equipes e abrindo espaço para as pessoas tomarem iniciativas. Essa é uma dinâmica muito saudável. É recomendável que as empresas reconheçam a situação, estimulando o diálogo. Elas devem estabelecer regras claras, mas não imutáveis. O momento pede flexibilidade, espaço para adaptações. Vale lembrar que esse é um movimento de dupla mão: as pessoas também devem se colocar, questionar, participar. Ocorre que mais diálogo pode gerar mais conflitos. Outro ponto de gerenciamento para os líderes.

“Cafezinho” faz falta?

Muitas pessoas afirmam que o trabalho remoto praticamente anula a interação das pessoas, já que não permite, entre outras coisas, o momento do cafezinho. Mas o engraçado é que tenho ouvido o oposto disso: as pessoas parecem estar se falando mais. Aquele líder que antes não conversava muito com sua equipe agora está mais disponível; grupos que não conseguiam se reunir agora estão conectados. Tenho a impressão de que se obtém mais quórum no sistema remoto. E é muito importante que essas conexões existam, já que a pandemia tirou das pessoas parte de sua autonomia, de sua potência. Não acredito que a atual situação tenha provocado perda de empatia. Me parece que essa crise achatou as diferenças entre as pessoas em relação às próprias vulnerabilidades, à potência, ao poder — estão todos mais ou menos nivelados. A questão é como as lideranças aproveitam a oportunidade para se aproximar dos colaboradores, deixando de lado a figura de super-herói. Isso é o que na Clínica Corporativa chamamos de competência psíquica.

Saúde mental

Com a pandemia ficou ainda mais evidente que as questões psíquicas dos colaboradores não devem ser tratadas exclusivamente da porta para fora. Elas são sim problemas das empresas, considerando que o trabalho é parte importante da vida das pessoas. Cabe dizer que a pandemia não necessariamente criou problemas psíquicos, mas pode ter agravado um mal-estar que já existia. As empresas não podem evitar que um colaborador sofra, mas pode gerir a situação de forma a não agudizar o quadro, num processo de redução de danos. Mas não vale só criar um 0800 de apoio psicológico, é preciso fazer mais. A preocupação com sofrimento psíquico das pessoas deve estar na agenda corporativa.

Interação virtual

É verdade que nas reuniões e conversas pelas plataformas virtuais há uma perda de comunicação facial, linguagem muito importante nos encontros presenciais. Mas percebo que nas reuniões online as pessoas se escutam mais: afinal, diante daqueles quadradinhos bidimensionais não dá mesmo para todos falarem ao mesmo tempo, como poderia acontecer numa sala. Aqui também há um papel de grande relevância do líder. É ele que, nesses encontros virtuais, faz a moderação, atua como curador do conteúdo. Com isso pode fazer o grupo funcionar bem.

Impulsores de confiança e cooperação

Para que as empresas alcancem esses dois pontos há, na nossa visão, seis aspectos essenciais. O primeiro é o significado do trabalho para cada colaborador, que nisso vai basear sua atuação na empresa, nos grupos e nos projetos. A ideia é que exista conexão entre o colaborador e a empresa; psiquicamente o trabalho precisa ter uma ligação com um propósito. Em seguida vem o senso de direção, que engloba metas, prazos e resultados — a previsibilidade, mesmo que para um curto intervalo, é importante para o psiquismo. O terceiro aspecto é a sensação de pertencimento, que envolve perguntas relacionadas ao papel de cada um, seguida da noção de interdependência, ligada ao suporte que se oferece ao ambiente e que dele se recebe. O senso de avanço é o quinto ponto, e abarca o acompanhamento do trabalho de cada colaborador. Por fim, mas não menos importante, o reconhecimento, que costumo sintetizar na ideia do valor do ser. Esses aspectos impulsores já eram importantes antes da pandemia e agora ganharam ainda mais relevância.

Lições da pandemia

A situação deixou claro que os líderes precisam desenvolver uma inteligência capaz de incorporar o contraditório. Eles devem lidar com a falta, com a falha, o contrário da onipotência; aceitar uma produtividade instável, a ambivalência das pessoas. Aí está a humanização do mundo corporativo. A psicanálise nos ajuda a compreender que as forças que sustentam ideias que já não servem normalmente estão debaixo do tapete dos líderes. É de lá que precisamos tirá-las, num amplo processo de transformação interna. Vale para as pessoas, vale para as empresas.


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