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A volta do pêndulo
Depois de Google e Alibaba, Brasil aceita rediscutir o paradigma “uma ação, um voto”

a-volta

O Google, buscador mais popular da internet, parece ter respostas para tudo. Inclusive para as discussões em torno do emblemático conceito de “uma ação, um voto”. Desde 2004, quando estreou na Nasdaq, seu papel acumula alta de mais de 500%. Os números resultam da expansão da gigante de tecnologia, que diversificou suas atividades e hoje domina o mercado de e-mails gratuitos, por meio do Gmail, além de ser dona do YouTube, maior plataforma de compartilhamento de vídeos do mundo. Com seu desempenho espetacular, o Google também contesta um dos estandartes da boa governança corporativa. A proteção à figura do dono, amparada por uma estrutura acionária que desiguala direitos ao atribuir vantagens a quem comanda o negócio, pode ser boa não só para a companhia como para todos os seus sócios.

O Google nasceu com duas classes de ações (“dual class”, no jargão em inglês). As mais poderosas conferem poder de voto dez vezes superior ao dos demais acionistas e ficam nas mãos de Larry Page e Sergey Brin, fundadores da companhia. Isso permite que a dupla concentre 61% dos votos tendo em mãos apenas 16% dos papéis em circulação — típica situação de desequilíbrio ostensivamente combatida pelos preceitos da melhor governança. Nas duas últimas assembleias, minoritários propuseram a migração para o modelo de “uma ação, voto”, mas não conseguiram adesão suficiente. Em abril, os controladores resolveram aprofundar o modelo, emitindo uma terceira espécie de ações. Chamada de classe C, ela é parecida com a preferencial brasileira: não dá direito a voto, mas confere a seus detentores dividendos mais generosos.

A companhia de Page e Brin não está sozinha. Ao longo da última década, algumas das mais opulentas ofertas de ações do mercado americano emitiram duas classes de ações. O formato foi usado nas emissões de LinkedIn, Groupon, Zynga e Facebook. Mark Zuckerberg, fundador da rede social, tem papéis que lhe reservam poder de voto dez vezes superior ao das ações vendidas na oferta inicial, em 2012. O mais novo integrante do grupo de privilegiados é Jack Ma, criador do Alibaba. Ele tem cerca de 9% do capital da companhia, mas a controla ao lado de outros 26 sócios-fundadores. A mágica é explicada pela posse de uma ação que lhes rende a indicação da maioria das vagas do conselho. Os investidores deram de ombros para o desequilíbrio entre a participação econômica e o poder político dos fundadores do Alibaba. Com uma captação de US$ 25 bilhões, o site de comércio eletrônico ostenta o título de maior IPO do mundo.

Além de ampliar a lista de companhias emissoras de duas classes de ações, o Alibaba pôs o mercado para refletir a respeito dessa estrutura: ela deve ou não ser aceita pelas bolsas de valores? O pregão de Hong Kong há 26 anos impede a listagem de companhias com classes de ações distintas, mas chegou a repensar a regra diante da oportunidade de abrigar o IPO gigantesco. No fim, manteve-se firme a seus valores e negou a companhia. Sorte da Bolsa de Valores de Nova York, que se tornou a casa da maior oferta inicial de ações do globo, em setembro.

É possível, no entanto, que futuramente outras empresas com duas classes de ações tenham uma recepção mais calorosa da Bolsa de Hong Kong. Depois de dizer não ao Alibaba, ela preparou uma consulta pública para saber se o mercado estaria disposto a tolerar um modelo que escape do conceito de “uma ação, um voto”. Para a resposta afirmativa, seguia outra pergunta: todas as companhias teriam direito a adotar essa estrutura ou apenas aquelas cujos negócios requerem a manutenção do dono? A preocupação da bolsa tem uma explicação clara: as empresas de tecnologia representam 70% das companhias continentais chinesas que recorrem aos Estados Unidos em busca de permissão para emitir duas classes de ações. A consulta terminou em novembro, e as conclusões serão submetidas a um novo debate público.

Tolerância
Embora a legislação societária brasileira impeça ações ordinárias de ter direitos de voto diferentes entre si, a discussão internacional reavivou aqui o debate sobre o princípio de “uma ação, um voto”. Ao deixar que as companhias dividam o capital em ações ordinárias e preferenciais, a lei dá aval à disparidade entre os investidores: de um lado, ficam os donos de ONs, com poder de voto em todas as matérias; do outro, os preferencialistas, com vantagens econômicas, mas sem voz nas assembleias. Esse formato permite que um empresário levante recursos com investidores e mantenha-se no controle com apenas 25% do capital.

a-volta2O status da melhor governança, no entanto, é reservado ao Novo Mercado, segmento criado pela BM&FBovespa para abrigar as companhias de práticas mais avançadas — entre elas, a concessão de voto a todas as ações. Nas aberturas de capital ocorridas a partir de 2003, os investidores exigiram a listagem no Novo Mercado, abrindo exceção apenas para casos em que a companhia tinha uma boa desculpa. Por exemplo, uma exigência regulatória de preservação do controle em poder nacional.

Iniciativas recentes mostram que esse dogma está perdendo força entre os participantes do mercado. Em setembro, a BM&FBovespa oficializou a criação do Bovespa Mais Nível 2. Até então, o segmento de acesso, voltado para ofertas de menor porte, aceitava apenas companhias com ações ordinárias. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) também trilha o caminho da flexibilização. Prova disso são as sutis mudanças que o Código das melhores práticas de governança, principal publicação da entidade, vem sofrendo ao longo dos anos. A edição vigente, lançada em 2009, inovou ao reconhecer exceções à regra de “uma ação, um voto”, ainda que somente em situações justificadas. Agora, o código está sendo reformulado e a possibilidade de afrouxar a regra está na mesa.

Um grupo de profissionais capitaneado por Maria Helena Santana, ex-presidente da CVM, discute o capítulo 1 da publicação, sobre propriedade. Ainda não há uma proposta de nova redação; a tendência é que a intolerância à desigualdade seja abrandada. “Em determinadas situações, a ação não dar direito a voto pode não ser ruim”, observa Eliane Lustosa, vice-presidente do IBGC. Ela afirma que o controle garantido pela emissão de ações ordinárias e preferenciais, quando bem exercido, é capaz de gerar benefícios. A nova versão do código será lançada no segundo semestre, durante o congresso anual do instituto.

As vantagens de formatos mais flexíveis que o previsto no Novo Mercado também estão na pauta dos coordenadores das ofertas públicas. “Hoje podemos reconhecer quanto o mercado de capitais brasileiro avançou. Não precisamos encarar o Novo Mercado como modelo único, a ser aplicado para todas as companhias em todos os cenários. É a volta do pêndulo”, diz Jean Arakawa, sócio do escritório Mattos Filho.

Para que o movimento fique claro, falta ao repertório brasileiro uma companhia se aventurar fora do Novo Mercado sem o discurso da regulação setorial como bengala. A Votorantim Cimentos poderia ter sido essa desbravadora, mas cancelou o IPO por falta de condições de mercado. A companhia planejava estrear no Nível 2. A ausência de ofertas também deixa no ar se existe, de fato, uma tendência de flexibilização. Ao menos no discurso, porém, o preconceito com as estruturas díspares é menor. “Se existe uma tendência, o mercado será soberano. Não vejo hoje nenhum tipo de aversão do investidor a analisar e eventualmente precificar essas estruturas”, considera Renato Antunes, chefe da área de análise do Brasil Plural.

a-volta3Caminho válido
E que benefícios podem advir da desigualdade? O principal é assegurar que o controle acionário permanecerá reservado aos cérebros que inventaram o negócio e o fizeram deslanchar. Do outro lado da balança, cabe ao investidor fazer exigências que evitem o mau uso desse poder, afirma Luiz Spinola, vice-presidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca). “Minoritários, provedores de dinheiro e intermediários devem requerer disclosure, um estatuto social bem feito e conselheiros independentes”, completa.

E não é só para o lado do controlador que pesa a balança das ações mais poderosas. O dual class também vem sendo adotado para valorizar o acionista de longo prazo e perpetuá-lo na empresa. É o que acontece na França, por exemplo. Lá, o investidor que mantenha por dois anos a posse ininterrupta das ações é premiado com a duplicação de seu poder de voto. A regra, prevista na lei societária, vale para todas as companhias abertas, exceto aquelas que optarem por um sistema distinto em seus estatutos.

A prática, no entanto, é controversa. “Dar mais votos para acionistas de longo prazo pode levar a que fundos passivos controlem a empresa”, pondera Antunes. A situação seria inusitada e contraproducente: o poder de decisão acabaria nas mãos de investidores que, de antemão, não têm nenhum interesse ou mesmo experiência para assumir um papel político relevante. Na outra ponta, Simon Wong, sócio da consultoria londrina Governance for Owners e professor da Escola de Direito da Northwestern University, de Chicago, defende o modelo francês. Essa é uma forma, em sua visão, de reduzir a influência dos acionistas de curto prazo, cada vez mais presentes nas companhias devido à tecnologia de negociação em alta frequência. Se na década de 1950 um investidor americano permanecia com uma ação por oito anos, atualmente esse tempo é de meros 2,7 segundos.

Precauções
Apesar dos casos de sucesso, estudos apontam que o investidor impõe descontos à companhia cujo papel prevê benefícios diferenciados. Uma pesquisa realizada pela consultoria ISS analisou o comportamento das empresas que integram o S&P 500 por dez anos, dividindo-as em dois grupos, conforme a estrutura acionária adotada. As que emitiram duas classes de ações apresentaram não só um retorno menor, como também mais volatilidade, incidência superior de transações com partes relacionadas e deficiências de controles internos mais frequentes. “Gestores institucionais e ativistas, assim como consultorias de voto, não aprovam a oferta de duas classes de ações”, comenta Ivan Clark, sócio da PwC. O motivo da rejeição é simples. “O modelo de duas classes é uma estrutura de governança inferior. Por isso, você precisa de um bom argumento para comprar essa ação”, justifica Fernando Pires, da Dynamo.

O professor Alexandre Di Miceli da Silveira, doutor pela FEA-USP, sempre foi um voraz defensor do padrão “uma ação, um voto”. Hoje, pondera que o mercado precisa evoluir. Para isso, as discussões devem ir além do questionamento quanto a ser contra ou a favor de cada modelo. “O conceito de ‘uma ação, um voto’ é um valor fundamental da boa governança que deve ser preservado ou não? Ou o valor mais importante é a proteção ao investidor, com a possibilidade de adotar o dogma para assegurar essa finalidade?”, questiona. Caso o mercado prefira a segunda opção, ele observa que existem medidas paliativas para mitigar os eventuais danos provocados pelo desalinhamento. O Alibaba é, novamente, um exemplo. Apesar de os fundadores dominarem o conselho de administração, seu poder de voto é igualado ao dos demais investidores em matérias-chave para a companhia.

Outra sugestão é predefinir um tempo de vida para a desigualdade. “Mecanismos societários que sejam revistos pelos acionistas depois de determinado período podem ser muito bons”, avalia Pires, da gestora Dynamo. No exterior, as regras de caducidade — também conhecidas como cláusula do pôr do sol — são apontadas como a solução para muitos dos potenciais problemas gerados pelas classes distintas de ações. Nesse sistema, o fundador pode até receber um papel superpoderoso, mas não ficará com ele para sempre nem o transferirá para herdeiros. O prazo evita, entre outros males, os efeitos do entrincheiramento do dono ou o risco de uma segunda geração menos talentosa desfrutar privilégios que não se reverterão em favor da companhia.

A favor ou contra, todos concordam em um ponto: estruturas que possibilitam a diferença de voto entre acionistas exigem transparência ainda mais robusta e carga elevada de prestação de contas. Isso posto, emissores e investidores assumem, cada um, os seus riscos. Combinado, afinal, não sai caro.

Ilustrações: Marco Mancini/Grau180.com


Logo_GD_Rel_SocietariasA desigualdade de voto foi tema do primeiro encontro do Grupo de Discussão Governança Corporativa, realizado pela Capital Aberto em São Paulo. Veja mais aqui.


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