Fundos imprevisíveis
Episódios de volatilidade e risco sistêmico levantam debate sobre os perigos dos ETFs
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Grau 180

Foi no fim da década de 1980 que os fundos de investimento em índice (ETFs, na sigla em inglês) apareceram no mercado internacional — e logo eles se disseminaram. Hoje, há cerca de 6,6 mil listados no mundo todo, abrigando 3,69 trilhões de dólares em ativos, de acordo com dados da consultoria ETFGI. Apesar de essa indústria movimentar uma montanha de dinheiro, os ETFs estão longe de conquistar unanimidade. Ao mesmo tempo em que são enaltecidos como opção barata de investimento — e com bom retorno —, eles carregam as acusações de incentivo à passividade dos investidores, aumento da volatilidade dos mercados e criação de risco sistêmico. Nenhuma dessas críticas é exatamente nova, mas as duas últimas ganharam força depois que alguns estudos acadêmicos e a própria realidade jogaram lenha na fogueira.

O entendimento da mais recente cruzada contra os ETFs depende da lembrança do que aconteceu nos mercados em 24 de agosto de 2015. Naquele dia, a preocupação com uma possível desaceleração da economia chinesa derrubou os principais índices de ações dos Estados Unidos. Para se ter uma ideia, o Dow Jones caiu 1.089 pontos poucos minutos após a abertura do pregão, uma oscilação muito longe do habitual. Diante de momentos de tamanha volatilidade, as plataformas de negociação das bolsas americanas estão programadas para acionar um sistema chamado “limit up, limit down” (Luld). Ele interrompe a compra e venda de ações que subiram ou caíram mais de 5% em cinco minutos pelo mesmo período (também cinco minutos).

Implementado por exigência da Securities and Exchange Commission (SEC) após o “flash crash” de 2010 — episódio em que negociações de alta frequência fizeram o índice Dow Jones cair 9% em minutos, sem nenhuma razão econômica que justificasse o tombo —, o Luld vinha funcionando bem, com cerca de dez interrupções por dia, considerando todas as bolsas do país. Porém, no fatídico 24 de agosto de 2015, foram 1.278 paradas. As pausas adicionaram pitadas de pânico, incerteza e dificuldade de precificação no mercado. Como resultado, ficou difícil para os investidores fazer operações de arbitragem — são elas que, no dia a dia, corrigem distorções que possam comprometer a aderência dos ETFs aos fundos que eles espelham. Sem esse mecanismo funcionando adequadamente, enquanto o S&P500 (que reúne as principais empresas americanas) caiu 5,3% no dia 24, o ETF iShare Core S&P500, por exemplo, despencou 26%. Essa situação, ressaltam os críticos dos fundos de índice, contribuiu para gerar ainda mais volatilidade no mercado e, consequentemente, mais interrupções, num círculo vicioso.

Virou cassino?

Os gestores de ETFs, por sua vez, abominam essa interpretação. Até porque ela vai contra o principal mantra da indústria: os fundos de índice não causam volatilidade, apenas refletem a volatilidade da cesta de ativos que reproduzem. Professor da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, Itzhak Ben-David tem uma opinião diferente, que reforça as acusações. Em 2014, ele e outros dois pesquisadores — Francesco Franzoni e Rabih Moussawi — publicaram o estudo “Do ETFs Increase Volatility?”, no qual apresentam evidências de que os ETFs aumentam significativamente a volatilidade dos ativos que abarcam.

Mas por que isso acontece? Ben-David explica que, na prática, os ETFs se tornaram uma maneira simples e barata para se especular e lucrar com a arbitragem dos ativos no “day trade” — essas operações acontecem, por exemplo, quando o investidor percebe que a cota do ETF está sendo negociada a R$ 110 e os ativos subjacentes a R$ 100. Nessa situação, ele vende sua cota de ETF e, simultaneamente, compra os ativos, porque sabe que a tendência é os preços se encontrarem. Ao fazer isso, ele obtém lucro fácil e ainda ajuda a eliminar a distorção entre o preço do ETF e o do índice.

Por isso, esses fundos atraem cada vez mais investidores focados no curto prazo, nem um pouco interessados em fundamentos. A esses investidores, em geral pessoas físicas, se somam hedge funds que, muitas vezes, também fazem operações com ETFs sem nenhum sentido econômico no longo prazo — e em quantidades muito mais expressivas. Operando em conjunto, esses atores acabam por exercer pressões sobre os preços dos ETFs e sobre as cotações dos ativos que compõem as carteiras, afirmam os pesquisadores. “Os fundos de índice se tornaram mais uma roleta no cassino das negociações de curto prazo”, observa Ben-David.

No dia a dia, diz o professor, a “jogatina” com o ETFs gera ruídos nos preços dos ativos, rapidamente corrigidos pelas operações de arbitragem. O problema é que nos momentos de estresse e imprevisibilidade esse mecanismo não funciona tão bem quanto deveria — e, para piorar, quem poderia ajudar sai de cena, afirma Ben-David, referindo-se à atuação dos chamados agentes autorizados (APs, na sigla em inglês).

Normalmente representados por instituições financeiras, como Credit Suisse e Morgan Stanley, os APs são escolhidos pelas gestoras de ETFs para atuar de forma semelhante à de um formador de mercado, solicitando a criação ou o resgate de cotas dos fundos de índice. O papel desses agentes é importante, já que, assim como acontece com as ações, os preços dos ETFs variam ao sabor da oferta e da demanda. Ocorre que, se muitos investidores compram determinado ETF, a sua cota pode se valorizar mais que a cesta de ativos que ele espelha. É nessa hora que os APs entram em ação. Identificada a sobrevalorização do ETF, esses agentes compram os ativos que formam a cota do fundo no mercado, fazem a entrega desses papéis para a gestora e, em troca, recebem cotas do fundo, que então são vendidas no mercado com lucro. Já quando o ETF está subvalorizado, os APs fazem o processo inverso — compram cotas do fundo de índice, pedem o resgate para a gestora e, em troca, recebem os papéis que essas cotas representam para vendê-los em bolsa. Ao fazer essas operações, os APs mantêm a liquidez dos ETFs e corrigem distorções entre o preço do ETF e o do ativo que ele espelha. Em troca, ficam com os ganhos obtidos com as operações.

O trabalho desses agentes seria perfeito, observa Ben-David, não fosse por um detalhe: quando o mercado está instável, os APs preferem esperar a poeira baixar antes de solicitar a criação ou o resgate de cotas. O problema é que, ao saírem de cena, acabam agravando o descolamento entre o preço do ETF e de seus ativos subjacentes. Por isso, Ben-David defende a criação, pela SEC, de regras que obriguem os APs a fazer seu trabalho sempre que houver certa distância entre o preço do ETF e o dos ativos de referência, não importando as condições de mercado.

Arriscados demais?

Criadores ou não de volatilidade, os ETFs usualmente não representam um grande risco para o mercado, na opinião do professor do departamento de matemática da New York University (NYU) Marco Avellaneda. Ele argumenta que seria exagero pensar que eles poderiam causar risco sistêmico, uma vez que, para isso, precisariam ter potencial para provocar uma crise na economia real — algo improvável, já que eles são apenas fundos, completamente isolados do patrimônio das respectivas gestoras e que não se alavancam.

A questão, entretanto, é que a indústria de ETFs não é composta apenas dos fundos de índices comuns. Há também aqueles que tomam dinheiro emprestado para investir, na tentativa de oferecer retornos maiores ao investidor — eles formam a categoria dos chamados ETFs alavancados. Para entender a controvérsia envolvendo esse produto, é preciso retroceder a 9 novembro de 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Três dias após a eleição, o preço do ouro caiu 3,5%, enquanto o maior ETF ligado à commodity — o Vector Gold Miners ETF, negociado na bolsa Nyse Arca, de Chicago, sob a sigla GDX — recuou 14%. Já um outro fundo, o Direxion Daily Gold Miners Bull 3X ETF (fundo de índice alavancado que se “inspira” no GDX) despencou 41%.

Negociado na Nyse Arca com a sigla NUGT, o Direxion promete entregar retorno triplicado em relação ao GDX. Funciona da seguinte forma: quando o investidor coloca 100 dólares no fundo, o gestor pega mais 200 dólares emprestados no mercado. Com os 300, o gestor negocia os ativos subjacentes ao GDX e repassa o lucro sobre o total ao cliente, que só investiu os 100. Assim, se os ativos subjacentes se valorizarem 10% em um dia, o investidor leva 130 dólares em vez de 110. Contudo, se no dia seguinte os ativos caírem 10%, o investidor fica com apenas 97 dólares, em vez de 100: afinal, 330 dólares menos 10% resultam em 297 dólares, dos quais 200 dólares são do fundo.

Com o objetivo de manter essa estratégia funcionando, o NUGT está sempre comprando ou vendendo três vezes mais do que o valor aportado nele, o que tem potencial para pressionar os preços dos ativos subjacentes para cima ou para baixo, impactando o mercado inteiro. Como nos três dias após a eleição de Trump o preço do ouro caiu e as ações ligadas à commodity também, o NUGT precisou se desfazer de diversos papéis para entregar o retorno negativo do GDX triplicado. Transformou-se, com isso, em uma poderosa força vendedora. O resultado? As ações de algumas das empresas negociadas pelo NUGT caíram muito. Os papéis da canadense Silver Wheaton, por exemplo, desvalorizaram-se cerca de 25% em dois dias.

Dado o potencial de estrago desse produto, não é de se estranhar que poucas gestoras o ofereçam. Dados da consultoria ETFGI mostram que os ETFs alavancados, de commodities, de gestão ativa e compostos de outros produtos, respondem por apenas 8% do volume total de recursos investidos em ETFs; os outros 92% estão sob gestão de fundos de índice de ações e renda fixa. “O maior problema é que o investidor comum não entende como os ETFs alavancados funcionam e pode perder muito dinheiro”, diz Avellaneda.

Uma das principais provedoras de ETFs do mundo, a Vanguard oferece alguns fundos de índice alavancados, mas reconhece que eles são complicados. Por isso, segundo Charles Thomas, diretor de ETFs da gestora para os Estados Unidos, a Vanguard tem como política explicar exaustivamente os riscos do produto antes de permitir o investimento e recomendá-lo apenas a investidores mais experientes, que compreendam seu funcionamento. Já a BlackRock, com mais de US$ 1 trilhão sob gestão na forma de ETFs, prefere nem ofertar fundos de índice alavancados, por considerá-los arriscados demais para os investidores comuns.

Regulação específica

No Brasil, os ETFs alavancados são proibidos. As duas instruções da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que regulam os ETFs — a de número 359, de 2002, e a 537, de 2013 — deixam claro que esses produtos podem ter apenas ações e títulos de renda fixa. “Quando o assunto é regulação de fundos listados em bolsa, nenhum país é tão avançado quanto o Brasil. As normas brasileiras deixam muito claro o que é um ETF, diferentemente do que ocorre nos EUA”, diz Karina Saad, diretora de operações da BlackRock na América Latina e nos países ibéricos.

Nos Estados Unidos, os ETFs não têm regulamentação própria. Eles seguem a mesma norma dos fundos mútuos, o Investment Company Act, de 1940, o que abre a possibilidade de investimento em uma gama enorme de ativos. Para Avellaneda, isso não é um problema, mas o regulador deveria pensar em restringir o acesso de ETFs alavancados a investidores qualificados, dada sua complexidade.

Já na opinião de Ben-David, restringir o acesso não resolve o problema. Segundo ele, o perigo reside mais na arquitetura perigosa dos ETFs alavancados do que no comportamento dos investidores. É pouco provável, contudo, que alguma regra envolvendo os ETFs seja publicada nos próximos anos, tendo em vista que Trump já avisou que vai trabalhar para desregulamentar o mercado de capitais. A SEC, contudo, se mantém atenta aos fundos de índice mais complexos. Em 14 de fevereiro, anunciou que o banco Morgan Stanley pagaria uma multa de 8 milhões de dólares por ter recomendado o investimento em ETFs inversos (tipo que oferece retorno oposto ao do índice que espelha) a seus clientes sem ter esclarecido devidamente os riscos.

Até agora, os ETFs parecem fazer parte do mesmo time das negociações de alta frequência: sob condições normais de temperatura e pressão, tudo corre normalmente. Mas quando pressões externas atingem o mercado, o caos se instala, com consequências imprevisíveis.


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