Pesquisar
Close this search box.
Capitalizando o problema
Instituições cedem recebíveis em discussão judicial para lançamento de FIDCs-NPs e, com as cotas dos fundos, enriquecem seus balanços

, Capitalizando o problema, Capital Aberto

 

Nos anos 80, marcados pela hiperinflação e pela falta de transparência no mercado de capitais, as entidades de previdência foram obrigadas pelo governo a comprar títulos do Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND), criado para investir no crescimento do Brasil. Na década seguinte, o índice de correção dos títulos foi mudado, e essas fundações ficaram a ver navios: em vez dos 40% de correção esperados, receberam zero. A saída foi entrar na Justiça para buscar ressarcimento, mas até hoje elas não viram a cor do dinheiro. A ação, no valor de R$ 8 bilhões, corre há quase duas décadas. Enfastiadas com tamanha burocracia, as fundações enxergaram no mercado de capitais um possível aliado para recuperar ao menos parte das perdas.

A Evocati Asset está estruturando um fundo de investimento em direitos creditórios não padronizados (FIDCs-NPs) para comprar os créditos dos fundos de pensão. O veículo deve nascer com patrimônio de R$ 2,5 bilhões e será distribuído por meio da Instrução 476/09 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A diferença entre o patrimônio do fundo e o valor da ação deve-se ao deságio com que o FIDC adquiriu os recebíveis. As próprias fundações subscreverão as cotas e levarão duas vantagens: ao não deter mais expectativas de direitos, mas sim cotas de um fundo, poderão contabilizá-las no balanço (no ano passado, uma orientação da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) proibiu as fundações de contabilizarem essas expectativas em suas demonstrações financeiras). Além disso, o FIDC assumirá a responsabilidade de acompanhar na Justiça o andamento da ação, explica Antonio Afonso de Oliveira Neto, diretor de fundos da Evocati.

Com essa solução, um público que raramente adquire ativos desse tipo passará a tê-los em carteira. O movimento, porém, é quase inevitável. Com a queda dos juros, a busca por aplicações de maior risco e potencial de retorno passa a ser uma necessidade para os fundos de pensão. Até dezembro, a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ), uma das maiores fundações do País, por exemplo, não possuía nenhuma aplicação em FIDC-NP, segundo informação de sua assessoria de imprensa. Atualmente, os principais investidores desse produto são os gestores de recursos.

Hoje, há vários fundos no mercado que compram precatórios ou mesmo direitos decorrentes de processos judiciais contra a União. De forma simplificada, esses veículos funcionam da seguinte forma: quem moveu a ação na Justiça cede ao fundo a expectativa de crédito futuro (ou seja, o ressarcimento que irá receber do Estado caso ganhe a causa) com um deságio, já que o dinheiro ainda não é líquido e certo. O desconto pode oscilar entre 35% e 60% do valor de face da indenização, a depender de a ordem de pagamento da dívida (precatório) ter sido expedida ou não e da urgência do vendedor dos créditos em receber os recursos.

Em outubro, a Uqbar, empresa especializada em dados sobre finanças estruturadas, contabilizava a existência de dez FIDCs-NPs lastreados em créditos em discussão judicial, com patrimônio somado de R$ 533 milhões. Há dois anos, eram cinco fundos, com valor de R$ 307 milhões. O crescimento ocorreu, principalmente, em 2011. No ano passado, o montante administrado e o número de veículos mantiveram-se praticamente estáveis.

Existem dez FIDCs-NPs lastreados em créditos em discussão judicial, com patrimônio de R$ 533 milhões

MERCADO A DESBRAVAR — Dado o elevado número de ações contra a União, é amplo o espaço para lansçamento de FIDCs-NPs que compram créditos em discussão judicial. O tamanho desse nicho no momento é ínfimo se comparado com o patrimônio total dos FIDCs-NPs. Regulados pela Instrução 444/06, da CVM, esses fundos podem ser compostos de ativos diversos, como créditos não performados (oriundos de serviços e produtos que ainda não foram prestados ou entregues), créditos podres (inadimplentes até o momento de sua cessão ao fundo), precatórios (instrumentos que determinam o pagamento de uma dívida do governo) e recebíveis de empresas em recuperação judicial. Em outubro, o patrimônio dos FIDCs-NPs era de R$ 8,6 bilhões, descontado o gigantesco fundo do sistema Petrobras, cujo valor de R$ 9 bilhões distorce o mercado. Isso significa que os FIDCs lastreados em recebíveis em discussão judicial representam hoje pouco mais que 6% dos FIDCs não padronizados. “Várias ações judiciais que começaram nas décadas de 60, 70 e 80 estão agora se consolidando. Com a demora na Justiça, elas deixam de ser interessantes para os titulares das ações e abrem oportunidades de investimento em precatórios”, diz um gestor.

Um exemplo são os processos contra o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que foi extinto em 1990 e sucedido pela União. Eles são estimados em R$ 4,5 bilhões. As usinas reclamam uma indenização decorrente de perdas geradas pela intervenção do instituto em sua atividade. O IAA fixava os preços para o açúcar e álcool, mas, em muitos casos, os valores eram considerados insuficientes para cobrir os custos das usinas. A ação movida contra a União requer o ressarcimento desse prejuízo. Algumas usinas começaram a ganhar a causa no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), e, desde então, os gestores estão de olho nesses créditos.

Os recebíveis originados pela dívida do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS) também foram capturados pelos gestores de FIDCs. Criado pelo governo federal na década de 1970 para incentivar a aquisição da casa própria, o FCVS se responsabilizava por ressarcir as instituições financeiras caso houvesse saldo devedor no fim dos contratos de financiamento concedidos. Como essa situação acontecia com frequência, devido a um descasamento entre o índice usado para reajuste das prestações e o utilizado para correção dos saldos devedores dos empréstimos, a dívida do fundo se tornou colossal. Em valores atuais, ela é estimada em R$ 20 bilhões.

A União parcelou o pagamento desse montante em 30 anos. Seu recebimento, contudo, não é nada trivial. O banco precisa enviar toda a documentação do financiamento para exame da Caixa Econômica Federal, que, após a avaliação, autoriza a liberação do crédito caso esteja tudo em conformidade. Quando isso ocorre, o Tesouro paga às instituições por meio de títulos do Tesouro Nacional chamados CVS. “Esse processo demora, em média, dois anos”, ressalta Alexandre Rosa, diretor da Graça Participações, que lançou dois FIDCs-NPs para comprar os recebíveis — um com patrimônio de R$ 500 milhões, e o outro, de R$ 21 milhões. A gestora adquire os direitos no estágio em que eles ainda precisam ser autorizados pela Caixa e se responsabiliza por todo o processo com o banco. O maior FIDC-NP da Graça direcionado a esse fim já recuperou 42% dos créditos que adquiriu, segundo Rosa, considerando o valor de face desses ativos.

A demora no pagamento dos recebíveis é um dos motivos para esse mercado crescer lentamente

LONGO PERCURSO — A demora para o pagamento dos recebíveis em discussão judicial é um dos principais motivos para esse mercado crescer tão lentamente. A ação que reivindica os créditos do fundo da Evocati, por exemplo, movida há cerca de 20 anos pelas fundações que integram a Associação Brasileira das Entidades de Previdência Privada (Abrapp), obteve sinal positivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor dos fundos de pensão, mas a dívida ainda não foi paga. A União entrou com uma ação rescisória solicitando uma revisão de valores. E mesmo que o imbróglio seja resolvido em benefício das fundações, elas não devem receber o dinheiro tão cedo. O governo terá uma década para fazer o pagamento, que poderá ser parcelado em até dez vezes.

Essa situação torna elevado o risco jurídico desse tipo de operação. Apesar de a possibilidade de não pagamento ser praticamente nula, já que em algum momento a União, os estados e municípios tendem a honrar seus compromissos, há a possibilidade de ocorrerem mudanças nas regras do jogo até que a execução da dívida seja ordenada, alerta um gestor que está estruturando um FIDC-NP. Essa situação não seria nova. No fim de 2011, a Emenda Constitucional 62, apelidada de “PEC do Calote”, determinou que o pagamento dos precatórios pode ser parcelado. Antes, ele era quitado de uma só vez.

Vale lembrar que, para ser pago, o precatório tem de entrar primeiro no orçamento da União, dos estados ou municípios, em um processo sujeito a ampla pressão política. E nem depois disso o pronto recebimento é garantido. Ainda é possível o Estado entrar com mais um recurso — uma ação rescisória, por exemplo —, a despeito de a ação já ter passado pelas instâncias mais elevadas do Judiciário.

OLHO NAS DÍVIDAS — Diante da complexidade dos fundos de recebíveis lastreados em créditos em discussão judicial, Salvatore Milanese, sócio-líder de reestruturação da KPMG no Brasil, considera que o crescimento dos FIDCs-NPs deverá ser impulsionado por dívidas menos encrencadas — como, por exemplo, os empréstimos inadimplentes. Os valores das ações contra a União, embora elevados, ainda são pequenos se comparados à carteira de créditos não pagos dos bancos. Esse mercado só não é maior porque muitas das grandes instituições financeiras ainda não venderam seus financiamentos “podres”. Milanese estima que, em razão do risco envolvido, os investidores de FIDCs-NPs lastreados em créditos inadimplentes buscam obter retornos de, pelo menos, 30% ao ano.

Na visão de Guilherme Ferreira, sócio da Jive Investments, gestora de dois FIDCs-NPs que compram empréstimos inadimplentes, os bancos começarão a girar com mais frequência seus créditos vencidos, transferindo-os para fundos. Ao fazer isso, as instituições financeiras ficam liberadas para fazer novos empréstimos e deixam a gestão dos atrasados sob a alçada do fundo. Para Ferreira, tanto a necessidade de os bancos limparem seus balanços para se adaptarem ao Acordo da Basileia III como o aumento da inadimplência serão catalisadores das cessões de créditos podres: “Esperamos ver esse mercado crescendo exponencialmente”, aposta o gestor.


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.