Pesquisar
Close this search box.
Ávidos por água
Por que a inusitada commodity virou a menina dos olhos de Michael Burry e de outros gestores americanos e europeus
Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Um dos filmes indicados ao Oscar em 2016, “A Grande Aposta” rememora a história de investidores que se deram bem com o colapso do sistema de financiamento imobiliário americano em 2008. O primeiro a prever a catástrofe — e a tentar ganhar dinheiro com ela — foi o então gestor de hedge fund da Scion Capital Michael Burry, interpretado no filme pelo excepcional Christian Bale. Após esmiuçar dados sobre hipotecas, ele percebeu que o mercado imobiliário seria devastado por uma onda de inadimplência, simplesmente porque os bancos concediam empréstimos aos clientes sem checar sua capacidade de pagamento ou exigir garantias. O desastre gerado por essa inconsequência é de conhecimento mundial. O que nem todo mundo sabe é o que aconteceu com Burry depois que seu prognóstico se concretizou. Nas cenas finais de “A Grande Aposta”, o espectador recebe uma dica. O perspicaz gestor estaria se dedicando ao investimento em uma commodity inusitada: água.

A excentricidade gerou curiosidade, inclusive da imprensa. Afinal, como se investe em água? Em entrevista ao site NYmag.com, em dezembro de 2015, Burry explicou que estuda esse tipo de investimento há pelo menos 15 anos. Segundo ele, a estratégia não é aplicar dinheiro no insumo diretamente, já que isso envolveria questões políticas e litígios diversos, mas por meio de outras atividades. Uma possibilidade é o aporte de recursos no cultivo de alimentos em áreas ricas em água para depois colocá-los à venda em regiões com escassez hídrica. Outra é o investimento na produção de garrafas de vinho, cuja fabricação consome o equivalente a outras 400 garrafas de água. Essa água embutida na cadeia de produção de alimentos e bebidas, chamada pelos ambientalistas de “água virtual”, é o foco de Michael Burry.

Nicho em expansão

Além do aclamado investidor, outros gestores avaliam o ativo. Populares nos EUA e na Europa, os “water funds” formam uma categoria de crescente visibilidade — e não é difícil entender a razão. Estudo publicado pelo McKinsey Global Institute revela que, até 2030, a demanda por água limpa no mundo crescerá 40%, e há agravantes: apenas 3% da água na Terra é doce e menos de 1% está disponível para uso. Esse cenário, um tanto apocalíptico, é um oásis para os fundos de água — embora atuem num nicho específico, contam com um cardápio variado de investimento. A demanda elevada é um convite ao aporte em companhias de saneamento e tratamento de água. Ao mesmo tempo, a certeza de que a água será um recurso cada vez mais escasso incentiva o investimento em empresas com políticas para seu uso racional, além de desenvolvedores de tecnologias para o setor. Nesse último grupo, figuram, por exemplo, provedores de soluções para redução de perdas na distribuição ou aumento da eficiência da irrigação na agricultura.

Segundo estimativa da Calvert Investments, gestora de recursos americana que pilota o pioneiro e um dos mais robustos fundos de água do país, o Calvert Global Water Fund (CFWAX), as carteiras têm, globalmente, cerca de US$ 8 bilhões de ativos sob gestão. Lançado em 2008, o CFWAX tem patrimônio de US$ 465 milhões e investe em diversos países, incluindo o Brasil: 1,74% da carteira está em papéis da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e da Sabesp. “Investir em ações de empresas cuja estratégia está focada em água é diferente de se investir em qualquer outro portfólio de equity. Surgem opções que não fariam parte de uma carteira convencional”, explica Matt Sheldon, gerente de portfólio da Calvert. “Além disso, a segmentação dá ao investidor a chance de promover soluções de impacto e direcionar seu capital para empresas que estão fazendo o melhor nessa área de atuação”, completa.

Fundos de água - interna 2

Quem também navega por esse nicho é a gestora americana Water Asset Management, que igualmente escolheu uma companhia brasileira para seu portfólio — nesse caso, a Natura. Desde que passou a integrar o Dow Jones Sustainability Index (DJSI), da Bolsa de Nova York, em 2014, a fabricante de cosméticos tem sido abordada por gestores de fundos socialmente responsáveis fora do Brasil. Foi num roadshow no exterior que executivos da Natura conheceram os gestores da Water Asset Management, que tem US$ 352 milhões de ativos sob gestão. “Nossa política de gestão hídrica ganha destaque com essa tendência de investimento responsável, capitaneada por fundos de pensão, fundos soberanos e outros investidores com perspectiva de resultados no longo prazo”, afirma Fabio Cefaly, diretor de relações com investidores da Natura. Desde 2010, a companhia mantém um projeto dedicado ao mapeamento dos impactos da produção sobre os recursos hídricos, que analisa todo o ciclo de vida dos produtos, do consumo de água que demandam nas fábricas (média de 0,45 litro por item) até os efeitos que podem causar nos rios após o consumo.

Cefaly está certo quanto à preferência dos investidores de longo prazo pelas atividades que não prejudicam o ambiente e, em última instância, a sociedade. Em 2015, o fundo de pensão do governo sueco AP4, dono de um patrimônio de US$ 33 bilhões, convidou gestoras de recursos para montarem portfólios de private equity concentrados no “desafio da escassez global de água”. A iniciativa segue a diretriz do fundo de priorizar a alocação em companhias reconhecidas por uma boa gestão da água e que criem soluções tecnológicas para a crise hídrica.

Fator de risco

O incentivo do AP4 para que as gestoras se voltem ao desafio da escassez de água é mais do que válido. As incertezas em relação à disponibilidade e à qualidade do insumo são percebidas como fator de risco para as empresas em geral e já causam prejuízos concretos. Essa situação fica evidente no relatório “Accelerating Action”, publicado em outubro de 2015 pelo Carbon Disclosure Project (CDP). Conhecida por incentivar as companhias de capital aberto a serem transparentes sobre a gestão de gases de efeito estufa, a organização internacional também procura coletar informações sobre o uso de recursos hídricos.

De acordo com a sexta edição do relatório, a crise hídrica no mundo levou a perdas financeiras de US$ 2,5 bilhões no ano passado — o número considera as respostas de 405 companhias abertas listadas em bolsas de vários países. Das empresas, 27% reportaram prejuízos decorrentes de escassez de água e 65% afirmaram estar expostas a algum tipo de risco hídrico. Uma delas foi a EDP, da área de energia. A empresa, controlada pela EDP Energias de Portugal, apontou a seca e a subsequente crise de abastecimento em São Paulo como causa de uma redução de até US$ 223 milhões na receita. No total, as companhias enumeram 3.201 diferentes riscos ligados a água em suas operações.

“O interesse dos investidores pelo tema aumentou, e as companhias estão percebendo isso”, diz Juliana Lopes, diretora do CDP na América Latina. Uma prova, afirma, é o crescimento do número de empresas participantes do relatório sobre riscos hídricos. Em 2011, quando a publicação surgiu, 150 empresas se dispuseram a responder às questões; em 2015 foram 405. Estão no grupo companhias brasileiras como Ambev, Braskem, Petrobras, CPFL Energia, Tractebel Energia, Cemig e Klabin. Na prática, as informações compiladas têm ajudado analistas de mercado e investidores institucionais em suas análises de compra e venda de ações baseadas em critérios sociais, ambientais e de governança (ESG, na sigla em inglês). Esse público passou a olhar o item água principalmente depois que o Fórum Econômico Mundial listou a escassez hídrica como um dos dez maiores fatores de risco para os negócios em seu relatório de 2015.

Foi também no ano passado que um grupo de sete instituições financeiras da Europa e dos Estados Unidos se uniu à Declaração do Capital Natural (iniciativa da ONU para valoração e precificação de ativos ambientais — água, carbono, biodiversidade) para a criação de uma ferramenta que auxilia os analistas a incorporar a ameaça da escassez hídrica às análises de risco de crédito de bonds corporativos. Participaram do projeto UBS, Calvert Investments, Pax World, J.Safra Sarasin, Banorte e Bancolombia. Já o Morgan Stanley produziu, em 2015, uma série de estudos com foco no impacto da crise hídrica em três setores: mineração e produção de commodities minerais (em que o custo do insumo tende a se tornar mais significativo em razão dos grandes volumes utilizados), indústria de alimentos e geração de energia elétrica.

Interesse comum

No Brasil ainda não há fundos especializados em água, mas as gestoras de private equity com foco em infraestrutura estão atentas a oportunidades na área ambiental, especialmente nos nichos de energia renovável e tratamento de efluentes. Um exemplo é a Pátria Investimentos, cujo fundo Pátria Infraestrutura tem feito aportes nesses dois campos — em 2012, investiu na Nova Opersan, empresa de tratamento de efluentes com operações em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Santa Catarina.

O investimento, que pode chegar a R$ 600 milhões até 2017, permitiu à Nova Opersan comprar seis empresas do segmento nos últimos três anos, o que a tornou um player importante na área de saneamento industrial, com crescimento de 30% em 2015. “Com a retração da economia e as limitações de crédito, muitas empresas estão vendendo seus ativos na área de tratamento de água. Isso oferece oportunidades para a Nova Opersan crescer”, ressalta Felipe Pinto, diretor do Pátria Infraestrutura.

Apesar do déficit de saneamento existente no Brasil, o Pátria não planeja investir em concessões nessa área — está atento, contudo, a oportunidades em países como Colômbia, Peru e Chile. No Chile, o saneamento é operado por companhias privadas, o que faz com que o país tenha 95% do seu esgoto tratado. No Brasil, o marco legal do saneamento (Lei 11.445/2007), que tramitou por quase duas décadas no Congresso, delegou aos municípios a responsabilidade de estruturar suas diretrizes e formar consórcios ou parcerias público-privadas (PPPs) para universalizar o serviço, o que abriu caminho para as concessões — hoje, a participação de empresas privadas é da ordem de 10%. “A regulação do setor de saneamento e abastecimento de água ainda não está madura, o que desestimula investimentos em grande escala”, diz Pinto. Entre os problemas está o fato de nem todos os municípios terem estruturado agências reguladoras, como determina a lei, para fiscalizar o cumprimento dos planos de saneamento. Outra dificuldade é a burocracia na liberação de recursos pelo governo federal, cujo trâmite pode levar até dois anos. Ainda bem que, além da área de saneamento, há muitos outros nichos ligados a água em que os investidores podem se esbaldar.


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.