Laudos problemáticos

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O pregão da BM&FBovespa está ficando mais vazio. Até 14 dezembro de 2015, sete companhias haviam concluído ofertas públicas de aquisição de ações (OPAs) para fechamento de capital. O número contrasta com o único ingresso ocorrido na bolsa no ano: o da Par Corretora. O cenário coincide com a agravamento da crise política e econômica. A turbulência debilitou os preços das ações e abriu a cancela para controladores lançarem ofertas para recomprar os papéis em circulação. Por trás de cada uma dessas OPAs estão os laudos de avaliação que, em princípio, caracterizam-se como estudos elaborados com plena isenção e rigor técnico para se apurar o valor justo de determinado ativo. Na prática, contudo, esses documentos estão distantes do estado da arte — e aprimorá-los não é uma tarefa trivial, conforme mostra o debate a seguir. Confira os melhores trechos.

CAPITAL ABERTO: Guilherme, na sua opinião, os laudos de avaliação atendem aos critérios de precisão, clareza, atualidade e objetividade estabelecidos pelo Anexo III da Instrução 361 da CVM?

Guilherme Vicente: Em termos gerais, todo laudo cumpre exatamente o que está previsto no anexo. O problema não é esse, e sim o conflito de interesses que pode resultar num laudo elaborado com parâmetros benéficos ao contratante da avaliação. Num fechamento de capital, o controlador vai comprar as ações remanescentes e, obviamente, tem interesse econômico em manipular o preço para baixo. Não estou dizendo que fará isso necessariamente, mas há um interesse evidente. Também não podemos esquecer que valuation é uma arte, não uma ciência exata. O laudo é feito por um terceiro, que elabora a avaliação com base nas premissas passadas pela administração. E esse, na minha opinião, é um ponto falho do arcabouço atual. A responsabilidade de cuidar das premissas é da administração, e ela pode estar conflitada. Tanto que, não raro, os investidores se deparam com o famoso “quem desdenha quer comprar”. O que é isso? O controlador, que conhece a empresa melhor do que todos nós, diz que “o negócio não está bom”. Aí, após um tempo, vem o anúncio de que vai comprar as ações em free float para fechar o capital da empresa. Como eu vou refutar o que a administração está dizendo? Não tem como. Mas, com certeza, há um estímulo para o controlador dizer que o negócio está pior do que realmente está.

CAPITAL ABERTO: Flavia e Walter, como os autorreguladores podem ajudar a resolver essas questões?

Flavia Mouta: A questão do conflito é sempre presente, e a Instrução 361 trata desse ponto. A norma não impede o avaliador de atuar em conflito de interesse, mas diz que ele deve declarar esse conflito e se afastar do trabalho, caso isso diminua sua independência para elaborar o laudo. Não podemos esquecer que o conflito nessa relação é inerente — o avaliador está sendo pago pelo ofertante. E eu concordo com o Guilherme quando ele diz que talvez esse seja o ponto mais difícil a ser enfrentado. Mas, trazendo a discussão para o que conseguimos fazer hoje, posso dizer que há muito o que evoluir na consistência, na coerência e na clareza desses documentos.
Na BMF&Bovespa, nós analisamos laudos de avaliação por causa da saída da companhia de segmentos especiais [Novo Mercado, Nível 2, Bovespa Mais e Bovespa Mais Nível 2].

CAPITAL ABERTO: Como é feita essa análise?

Flavia Mouta: Nós olhamos a completude das informações e analisamos também, de forma bastante crítica, as premissas, as metodologias e os critérios adotados. Temos como prática conflitar páginas distintas do laudo e analisar laudos anteriores feitos pelo mesmo avaliador. Nós já nos confrontamos, por exemplo, com laudos de um mesmo segmento de atuação nos quais o avaliador utilizava metodologias totalmente diferentes, e, nos dois documentos, dizia que aquela metodologia era a mais adequada para se avaliar aquele setor. Além disso, olhamos as demonstrações financeiras e os formulários de referência, em particular a seção com os comentários dos administradores. Já que as premissas são dadas por eles, queremos saber o que estão dizendo sobre o desempenho da empresa. Após fazermos a análise, encaminhamos nossas exigências para a companhia e ficamos à disposição para recebê-la, junto com os avaliadores, para discutir o que foi solicitado. É claro que há divergências, mas os avaliadores têm recebido nossos comentários de maneira bastante positiva.

CAPITAL ABERTO: E se a Bolsa não chegar a um consenso com o avaliador sobre alguma exigência?

Flavia Mouta: Ainda não enfrentamos essa situação. Mas hoje, enquanto nossas exigências não são sanadas, não encaminhamos para a CVM a autorização de realização do leilão no ambiente da Bolsa. Com isso, a OPA não segue adiante. Acho importante destacar que os esclarecimentos que pedimos não são para a Bolsa, são para melhorar a qualidade do laudo divulgado ao mercado. Em alguns casos, as nossas exigências já levaram o avaliador a alterar algum dado ou número, mas isso é raro. O mais comum é o aprimoramento das justificativas, como, por exemplo, a explicação das fontes das premissas adotadas. Desde julho de 2014, analisamos sete laudos. O laudo da OPA da Dasa foi o primeiro que verificamos de posse de um manual interno, no qual consta a nossa metodologia para análise dos laudos. O manual ficou pronto no segundo semestre de 2015.

Walter Mendes: As áreas de autorregulação de mercado, com o tempo, começaram a perceber que precisavam ter alguma instância para analisar a coerência e a consistência dos laudos. Acredito que o regulador imaginou que os avaliadores, preocupados com a sua imagem, elaborariam o documento da forma mais adequada possível, mas a realidade não é essa. Por isso, a BM&FBovespa, na área dela, está fazendo esse trabalho de análise dos laudos, e o CAF também se propõe a fazer isso nas OPAs que venha a analisar. Na questão do conflito de interesse, o CAF vai além da Instrução 361, ao exigir uma relação de todas as operações feitas entre a companhia e o avaliador nos 12 meses anteriores à operação. A partir disso, o CAF, como órgão de julgamento, sentencia se há ou não conflito que comprometa a independência do avaliador. Caso a resposta seja negativa, passa-se à análise do laudo, com ênfase em precisão, qualidade, clareza, consistência e coerência. Esses dois últimos itens são muito importantes, como a Flavia mencionou.

Guilherme Vicente: Nós, investidores, agradecemos muito o trabalho que a Bolsa e o CAF estão fazendo. Mas o aprimoramento dos laudos, por si só, não resolve nosso problema. Sabe por que o laudo da troca de controle é tão melhor que o de fechamento de capital? Porque há negociação. Investidores minoritários grandes o suficiente se juntam para dizer não a determinada operação e, a partir daí, criam um ambiente para se sentarem na mesa com o controlador para negociar. O problema é que, para conseguir isso, é preciso arregimentar uma parcela significativa do free float, o que não é fácil.

CAPITAL ABERTO: Quais são as dificuldades?

Guilherme Vicente: O acesso à base de acionistas é um dos temas mais difíceis que eu, como acionista minoritário ativista, vivencio. Quando esse acesso acontece, nós recebemos da empresa um calhamaço de papel, apenas com o endereço do sócio. Não tem e-mail, telefone. É um show de horror.
Eu não estou dizendo que a discussão do laudo é menor — por favor, continuem fazendo esse trabalho fantástico — mas, em termos práticos, é bem importante acharmos formas de conseguir fomentar essa articulação do free float.
Flavia Mouta: Nesse aspecto da negociação, acredito que um laudo bem feito pode ajudar o investidor, porque dá subsídio para que diga ao controlador: “Olha, isso aqui é
inaceitável”.

CAPITAL ABERTO: Ana, por que os laudos apresentam falhas de coerência e consistência?

Ana Cristina França: Fala-se muito do laudo, mas acho importante ressaltar que ele é a ponta do iceberg. Precisamos olhar o processo de avaliação como um todo, desde a contratação, porque os problemas podem começar ali, na forma como a empresa é contratada, no tempo que lhe é dado para fazer o trabalho. A falta de consistência dos laudos ocorre, muitas vezes, porque não houve tempo para revisão. E isso não é um problema exclusivo do Brasil. No último congresso sobre avaliação de que participei, nos Estados Unidos, houve uma apresentação apenas para discutir os problemas na redação dos laudos. Hoje, existe uma pressão tão grande para os laudos serem produzidos com velocidade, que o avaliador acaba tendo três dias para escrever um documento de 200 páginas. Ele investiu 29 dias fazendo as planilhas, cálculos e, depois, sobrou apenas um dia para revisar. Algumas empresas de avaliação têm feito um trabalho interno para solucionar essas questões. Na Apsis, por exemplo, criamos um sistema de qualidade, de peer review, em que um revisa o trabalho do outro. Também acho importante discutirmos a responsabilidade do avaliador em relação aos laudos. Às vezes, eles contêm tantos disclaimers [ressalvas] que, no final, você se pergunta: mas para que esse laudo serve se “não nos responsabilizamos por isso, não nos responsabilizamos por aquilo…”

Flavia Mouta: Esses disclaimers diminuíram no passado, mas, aos poucos, alguns avaliadores têm trazido de volta essas redações. Lembro que, uma vez, quando estava na CVM, pedi para o avaliador, um banco de investimento internacional, declarar que as informações utilizadas eram consistentes. Parecia uma exigência básica, tendo em vista que o próprio Anexo III diz que o avaliador só pode utilizar as informações se julgá-las consistentes. Mas esse pedido gerou uma confusão enorme. O avaliador entrou com recurso, a questão foi parar no colegiado e, depois, a exigência acabou caindo. Tecnicamente, a decisão foi correta, porque não há de fato na regulamentação uma obrigação de o avaliador declarar que as informações utilizadas no laudo são consistentes. Eu até entendo a dificuldade do banco, porque a sua matriz é lá fora e ele também precisa cumprir a legislação internacional. Se ele insere uma declaração como essa num laudo feito aqui, isso o responsabilizaria no Brasil e no exterior.

Ana Cristina França: O IVSC [International Valuation Standards Council] recomenda que as organizações profissionais de avaliação adotem seus “princípios de código de ética para avaliadores profissionais” ou desenvolvam o seu próprio, desde que observem cinco princípios fundamentais para uma boa avaliação. Um deles é a integridade. Por isso, eu defendo muito a criação de um documento único com as diretrizes que o avaliador deve observar no seu trabalho. Assim, evitaríamos ter um documento que trate sobre avaliação do CAF, um outro da BM&FBovespa. Quanto mais proteção tivermos sobre as boas práticas, mais o avaliador estará protegido e livre de pressão dos clientes.

CAPITAL ABERTO: Ana e Otávio, há clientes que abordam vocês com uma conta de chegada para o laudo? Situações como essa ocorrem?

Ana Cristina França: Isso já aconteceu com mais frequência no passado. Hoje em dia é muito raro. Mas, se ocorrer, digo o seguinte para o cliente: “Você está me contratando para resolver um problema, não para criar um problema para você e para mim”. Isso já deixa, no mínimo, a pessoa sem graça de ter feito uma colocação dessas.
No passado, os laudos já foram tratados como um produto de extrema confidencialidade. Hoje, não funciona mais assim. O documento tem uma exposição muito grande e, consequentemente, quem o elabora também. Então, a chance de o avaliador não ser muito bem fundamentado no seu trabalho é mínima. Se ele sucumbir a esse tipo de pressão, estará pisando em cacos de vidro que acabarão com o nome de sua empresa em muito pouco tempo.

Otávio Bachir: Concordo com a Ana que hoje esse tipo de coisa acontece bem menos. Nesse ponto da reputação, gostaria de voltar à questão dos prazos. Vários avaliadores independentes já me contaram que deixaram de aceitar trabalho porque teriam que fazer o laudo em um tempo muito exíguo. Mas aí o cliente procura outro avaliador que, além de cobrar menos, ainda aceita fazer o laudo no tempo quase impossível. Ou seja, não vai sair um trabalho bem feito. O avaliador que faz isso está pecando contra a reputação de sua própria empresa e também dos outros avaliadores, ao criar um descrédito com relação ao instrumento. A indústria toda sofre com isso.

 

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