Contabilidade injusta?
Crise financeira expõe as fraquezas de conceitos prestigiados como a marcação a mercado dos ativos e o fair value

, Contabilidade injusta?, Capital AbertoA crise financeira desmontou paradigmas com um golpe duro. A solidez das instituições financeiras, a transparência das companhias listadas e até o modelo de livre mercado foram colocados em xeque. Nem mesmo a contabilidade passou ilesa. O respeitado conceito de marcação a mercado, mais especificamente quando relacionado a ativos financeiros — ações, bônus, títulos do governo, derivativos, etc. —, também passou a ser questionado. O critério visa a imprimir mais realidade aos balanços ao reproduzir contabilmente o “preço justo”, ou seja, aquele pelo qual um ativo seria efetivamente negociado no momento em que os dados são fechados. Era, até então, considerada uma forma transparente, eficaz e muito objetiva de reportar os bens e direitos de uma companhia. Em tempos de crise, no entanto, o modelo se revelou frágil. O preço de negociação deixou de ser um valor tido como justo e virou sinônimo de perdas astronômicas e irreais. Aí entraram em cena as pressões políticas, a tentativa de clarear os dispositivos já previstos pelas normas em vigor e até mesmo a flexibilização de algumas exigências.

O início de tudo foram os prejuízos que os bancos norte-americanos começaram a registrar com a eclosão da crise dos créditos imobiliários de alto risco. Em março deste ano, a seguradora AIG, que apresentava perdas significativas, já sugeria aos reguladores dos Estados Unidos que repensassem a exigência da marcação a mercado. O pedido fez efeito. No superpacote de ajuda financeira elaborado pelo governo norte-americano, além da ajuda bilionária aos bancos, foi prevista a possibilidade de a Securities and Exchange Commission (SEC) suspender o uso da prática para emissores determinados ou para classes de ativos financeiros. A SEC também ficou encarregada de, em três meses, entregar ao congresso norte-americano um levantamento sobre o impacto do valor justo sobre as instituições financeiras, abordando, inclusive, se as regras deveriam ser modificadas.

A notícia caiu como uma bomba no mercado. Paralelamente, os principais órgãos responsáveis pela emissão das normas contábeis –– que introduziram os conceitos de valor justo e marcação a mercado –– começaram a se movimentar. Antes mesmo da aprovação da ajuda emergencial pelo Congresso dos Estados Unidos, o Financial Accounting Standards Board (Fasb), órgão responsável pela emissão de normas contábeis nos Estados Unidos, emitiu orientações sobre o cumprimento da regra 157, que trata da marcação a mercado de ativos financeiros. Esclareceu o que estaria subentendido na norma. Isto é, que o princípio de marcar a mercado para reproduzir o valor justo vale apenas quando os preços de negociação são considerados eficientes. Negócios feitos sob estresse, portanto, não refletiriam o valor justo de um ativo.

No dia 13 de outubro, o International Accounting Standards Board (Iasb), responsável pela emissão das normas no padrão internacional, o IFRS, anunciou emendas nas regras IAS 7 e IAS 39. O IFRS, ao contrário das normas contábeis dos Estados Unidos, não fazia concessões ao uso do valor justo. De acordo com o norte-americano Fasb, há situações especiais em que a empresa pode mudar a classificação de um ativo para “não disponível para negociação” e contabilizá-lo pelo valor do custo atualizado. O Iasb, grande defensor do valor justo e da predominância da essência sobre a forma, nunca previu esse tipo de regalia. Agora, pressionado pelas empresas européias que não queriam ver seus balanços fazendo feio ante os dos Estados Unidos, ele flexibilizou as normas, para surpresa dos contadores. Abriu às empresas com ativos não disponíveis para negociação a mesma possibilidade da marcação “a mercado” pelo custo prevista pelo Fasb.

Valor justo é considerado ineficaz em situações de turbulência, exatamente quando se torna crucial ter um registro confiável

MENSAGEIRO OU AUTOR? — Logo após os anúncios, Iasb e Fasb divulgaram nota conjunta para anunciar a criação de um grupo consultivo, formado por especialistas e investidores. O objetivo do time é garantir que os problemas decorrentes da crise econômica sejam avaliados de forma coordenada no campo da contabilidade. O assunto, diante da situação do mercado, é complexo, mas a discussão sobre a pertinência do valor justo em certos momentos não é nova. “Nos sete anos em que fui trustee do Iasb, este foi um tema recorrente”, comenta Roberto Teixeira da Costa, que até o fim do ano passado representou a América Latina no órgão que emite as normas contábeis internacionais.

Ao assistir à flexibilização das regras, os investidores entenderam que as autoridades estariam abrindo mão também do conceito de valor justo. Mas o fato é que marcar a valor de mercado é apenas a forma mais tradicional de se chegar ao valor justo. Quando não há liquidez, podem ser usadas alternativas para se chegar a ele, como a referência de transações de ativos de características semelhantes, a projeção de fluxo de caixa e modelos matemáticos.

O sucessor de Teixeira da Costa no Iasb, o ex-ministro Pedro Malan, entrou na discussão. “Culpar o valor justo é culpar o mensageiro”, disse em seminário promovido pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), em São Paulo. Desde então, a frase foi repetida inúmeras vezes por especialistas em contabilidade. O motivo não poderia ser outro: em tempos de crise, contabilizar ativos a preços de mercado significa reconhecer perdas significativas, mas o critério contábil não é o responsável por tais prejuízos.

Indiretamente, contudo, seus efeitos podem, sim, acentuar a crise. É o chamado efeito em espiral. Acontece, por exemplo, quando um ativo perde valor de mercado e seus detentores começam a reconhecer prejuízos. Se o banco, dono de tais ativos depreciados, decide vendê-los, mesmo com os descontos impostos pelo mercado, cria um novo preço de referência. Outra instituição, em situação semelhante, ao fazer a mesma operação, não conseguirá o preço obtido no negócio anterior. Ou seja, para conseguir vender os títulos, terá de aceitar um desconto ainda maior –– e dará ao mercado um preço de referência ainda mais baixo. Assim, em cascata, os valores ficam cada vez mais baixos até que deixam de refletir a realidade.

Em princípio, as decisões tomadas por Fasb e Iasb não significam que a marcação a mercado esteja com os dias contados. “O que os organismos fizeram foi interpretar o que já estava na norma. O conceito de fair value afasta a idéia de que preços de liquidação sejam considerados justos”, diz o professor Nelson Carvalho, da Fipecafi. Para o especialista em contabilidade internacional, a marcação a mercado, além de não ser a culpada pelo agravamento da situação financeira global, tem o mérito de ter trazido à tona as deficiências do crédito hipotecário americano. “Não fosse o valor justo, a crise só teria sido descoberta daqui a alguns anos, e em um estágio muito pior”, afirma.

CAMPO FÉRTIL PARA SUBJETIVIDADES — Se, de um lado, o valor justo evidenciou a crise, de outro a crise também escancarou os problemas do valor justo. O primeiro (e mais importante) deles é a fragilidade do conceito em situações de forte abalo do mercado financeiro, justamente quando é crucial ter uma avaliação correta de preços. O segundo ponto é a subjetividade. Sem poder recorrer à marcação a mercado, a alternativa apresentada pelas autoridades para se chegar ao valor justo é a adoção de estimativas e outras referências. No caso dos instrumentos oriundos de crédito imobiliário, que têm vencimento no longo prazo, torna-se ainda mais difícil avaliar qual seria o preço correto. Um ativo que valia 100 e, hoje, se negociado sob estresse, não passaria de 5, na verdade estava superavaliado a 100 e estaria subestimado a 5. Mas é um desafio considerável determinar qual número, no intervalo entre 5 e 100, representa o valor verdadeiramente justo.

“Achamos que esse alto nível de subjetividade pode postergar o aparecimento de perdas”, diz Maria Helena Petterson, sócia da área de auditoria da Ernst & Young. Para garantir a qualidade das informações que serão fornecidas ao mercado, Tadeu Cendón, da PricewaterhouseCoopers (PwC), invoca o que ele chama de subjetivismo responsável. “Não vale dizer que o ativo agora vale x ou y sem ter um argumento consistente”, declara. Carvalho endossa a opinião e lembra que os próprios destinatários das informações contábeis têm um papel a cumprir. “A empresa tem de explicar como fez a avaliação, mas o sancionador é o mercado.”

Por enquanto, as discussões seguem, principalmente, entre os participantes do mercado americano e os do europeu. “O envolvimento técnico defende a continuidade da marcação a mercado”, comenta Cláudio Sertório, sócio da área de financial services da KPMG. O especialista lembra que a contabilidade é uma metodologia com começo, meio e fim, e tirar uma parte pode trazer distorções.

NO OLHO DO FURACÃO — Com tantas dúvidas e mudanças, fica ameaçada a carga de realidade que o IFRS supostamente imporia aos balanços, um dos seus maiores atributos. E, detalhe: o Brasil entrará na contabilidade internacional bem no olho desse furacão. Por enquanto, no País, os ativos financeiros, exceto aqueles detidos por bancos ou seguradoras, ainda são contabilizados pelo menor valor segundo os critérios de custo ou valor de mercado. O cenário mudará no fim do ano quando, pela primeira vez, as companhias brasileiras contabilizarão seus ativos financeiros pelo valor justo. A minuta da nova regra, elaborada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), está em audiência pública.

Tal qual fez o Iasb, as autoridades brasileiras incluíram a possibilidade de reclassificar ativos financeiros, exceto derivativos, e contabilizar pelo custo atualizado nessas situações. Essa é apenas a primeira parte da norma sobre os instrumentos financeiros, visando a atender às exigências da Lei 11.638. No ano que vem, as regras IAS 32, 39 e IFRS 7 serão integralmente introduzidas no País.

COM DERIVATIVOS NÃO SE BRINCA Mesmo quando fazem concessões à marcação pelo valor de mercado, as regras internacionais nunca as aplicam aos derivativos. Diante das notícias de que Sadia e Aracruz registraram perdas significativas com esses instrumentos, a pergunta que fica é: teria a contabilidade internacional denunciado, mais prematuramente, os riscos que as companhias assumem? “Sim, teríamos tido uma maior visibilidade das operações”, afirma Leonardo Ferreira, sócio da Deloitte, em Londres. Segundo ele, foram justamente casos como os registrados no Brasil que levaram os americanos a adotar a marcação a mercado.

Por isso, no ponto que diz respeito aos derivativos, a CVM resolveu se antecipar à minuta elaborada com o CPC. Editou, no último dia 17 de outubro, a Deliberação 550, que exige das companhias abertas, a partir dos informativos do terceiro trimestre, a disponibilização de informações mais objetivas e completas sobre as posições em derivativos, além dos impactos decorrentes da exposição em três cenários possíveis (ver também matéria na página 10). Feito isso, restará aos analistas de mercado investigar os riscos sinalizados e avaliar se os ganhos com esses instrumentos em períodos de bonança compensam os prejuízos que podem ocorrer se tudo der errado. A resposta vai depender do apetite de cada um para o risco. E os contadores não terão nada a ver com essa história.


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