Tolerância zero para auditores independentes
Reguladores reforçam fiscalização e punição às firmas de auditoria independente
, Tolerância zero para auditores independentes, Capital Aberto

Ilustração: Rodrigo Auada

A recorrência de escândalos corporativos provocados por práticas duvidosas ou erros crassos de contabilidade não identificados pelas auditorias externas — seja por negligência ou dolo — parece ter esgotado a paciência de reguladores em vários países. Na tentativa de assegurar a estabilidade dos mercados e proteger os investidores, vários deles têm endurecido as regras e reforçado a fiscalização sobre os auditores independentes.

O Financial Reporting Council (FRC), regulador de contabilidade e auditoria do Reino Unido — país que é referência em questões de governança corporativa — decidiu começar o trabalho pelo topo. Concentrou-se no grupo de auditorias conhecido pela alcunha “big four”, formado por Deloitte, EY, KPMG e PwC. A partir deste mês, essas firmas estarão sujeitas a multas mais pesadas nos casos em que for identificada incompetência na auditoria de companhias abertas relevantes em seus setores. O piso da sanção financeira dobrou, passando a 10 milhões de libras (cerca de 50 milhões de reais). A mudança chega pouco depois de o governo britânico ter sido abalado pelo inesperado colapso da construtora e prestadora de serviços públicos Carillion. A gigante centenária era responsável por obras de estádios, aeroportos e rodovias e ruiu sob o peso de uma dívida de 1,3 bilhão de libras. O valor é gigantesco se comparado ao que a companhia tinha em caixa — apenas 29 milhões de libras.

O caso da Carillion levou o FRC a abrir investigação sobre o trabalho da KPMG — última firma responsável pela auditoria externa da companhia falida — para descobrir se houve violação de padrões técnicos e éticos na auditoria que possam ter ajudado a ocultar a frágil situação da companhia. Como o escândalo da Carillion teve repercussão nacional, o Parlamento britânico convocou executivos da KPMG e da Deloitte (responsável pela auditoria interna) para dar depoimento em fevereiro deste ano. Os parlamentares queriam entender, principalmente, por que os auditores não alertaram o mercado sobre o iminente colapso da companhia, que, no ano passado, sofreu um duro baque — perdeu 845 milhões de libras em valores de contratos relativos a obras em parceria com o setor público no Reino Unido e em outros países. O episódio culminou na saída do diretor executivo da Carillion, Richard Howson, apontado como peça-chave na crise da empresa. Questionado por parlamentares sobre por que a auditoria interna não deu alertas mais contundentes sobre a perda dos contratos, Michael Jones, sócio da Deloitte, afirmou que não estava na reunião do comitê de auditoria que discutiu o assunto.

Punições emblemáticas

O FRC não está sozinho no grupo de reguladores cada vez mais intolerantes a deslizes dos auditores. Em dezembro de 2016, o Public Company Accounting Oversight Board (PCAOB), regulador das firmas que auditam companhias sujeitas à lei americana Sarbanes-Oxley, puniu a Deloitte Brasil com uma multa recorde de 8 milhões de dólares. Foi a primeira sanção decorrente de fraude — o PCAOB descobriu que o sócio-líder da firma José Domingos do Prado modificou papéis que elucidavam sua má conduta ao validar demonstrações financeiras da Gol — e de falta de cooperação em investigações aplicada a uma das big four (leia reportagem sobre o caso). No Brasil, a descoberta resultou no desembolso de outros 5,3 milhões de reais, destinados a um termo de compromisso firmado com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).


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E as punições não pararam por aí. Adicionalmente à multa, o PCAOB impediu a Deloitte de aceitar novos clientes sujeitos à Sarbanes-Oxley no Brasil até que aprimorasse sua governança. Entre as providências tomadas pela firma para atender o regulador está o aperfeiçoamento dos seus controles internos, para fechar brechas que permitissem a alteração de documentos de forma indevida, e mudanças no comitê de ética. Ele deixou de ser subordinado ao comitê executivo, passando a se submeter ao conselho de administração, que agora pode avaliar situações que envolvam qualquer funcionário — antes, ocorrências com sócios eram tratadas exclusivamente pelo CEO e pelo chairman. Além disso, o código de ética e conduta, bem como os canais internos de denúncia, foram aperfeiçoados, estando aberta a possibilidade para os funcionários, se quiserem, fazerem denúncias diretamente ao PCAOB e à CVM. Também foi estabelecido que, se houver uma fiscalização do órgão americano, os documentos solicitados não serão mais entregues pela mesma equipe que assina o balanço questionado. Como resultado dessa arrumação, em abril passado o PCAOB deu o sinal verde para o fim da interdição à Deloitte, que voltou a poder captar clientes. “Depois do que aconteceu, instituímos uma política de tolerância zero, não deixando desculpas ou justificativas passarem. É responsabilizar e desligar os envolvidos”, diz Altair Rossato, presidente da Deloitte. Entre 2005 e 2016, o regulador americano contabilizou 184 casos que resultaram em punições a auditoria, com multas variando de mil dólares até os 8 milhões da Deloitte.

Na Índia, o regulador do mercado local — Securities and Exchange Board of India (Sebi) — também castigou uma das big four com uma sanção emblemática. Suspendeu por dois anos a atuação da PwC no país, por ter verificado falha da auditoria na identificação de fraudes da falida Satyam Computer Services, estimadas em 1,7 bilhão de dólares. A empresa, que foi à bancarrota em 2009, inflou sua receita contabilizando nada menos que 7.561 notas frias desde 2003. Na avaliação da Sebi, a PwC foi negligente por não notar anomalias nos balanços financeiros da Satyam. A decisão do regulador fez a firma perder 43 clientes, empresas que figuram no rol das 500 maiores da Índia em valor de mercado.

Como não existe regulador específico para as firmas de auditoria no Brasil, a fiscalização sobre o trabalho do auditor externo fica a cargo da CVM, que, em conjunto como o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), revisa o controle de qualidade das auditorias a cada ciclo de quatro anos. Em outubro passado, a CVM editou a Instrução 591, que alterou a disposição vigente desde 1999 sobre o registro e o exercício da atividade de auditoria, com o objetivo de adotar novos requisitos para a manutenção da qualidade e confiabilidade do cadastro de auditores. Já com base na nova regra, em abril, a autarquia puniu três auditores de diferentes firmas — Exacto Auditoria, Loudon Blomquist Auditores Independentes e JPPS Auditores Independentes — com multas e suspendeu temporariamente o registro desses profissionais, impedindo-os de exercer a atividade por dois anos, por terem cometido infrações a normas técnicas consideradas de baixa complexidade. A decisão da CVM foi encarada pelo mercado como um aperto ao cerco aos auditores externos, por ter ido além da sanção pecuniária comumente aplicada pelo regulador. “Essa alternativa mostra-se mais eficiente, pois retira do mercado, desde logo, profissionais que não mostraram o padrão mínimo de conduta esperado”, disse, em seu voto no julgamento no colegiado o relator de um dos casos, o diretor Henrique Machado.

Os auditores que trabalham em bancos estão sujeitos também à fiscalização do Banco Central (BC). Desde o ano passado, o órgão passou a contar com novos instrumentos para apurar e punir infrações administrativas envolvendo diferentes atores do mercado financeiro, incluindo os auditores, em lei sancionada em novembro. Com a nova legislação (de número 13.506), o maior valor de multa que pode ser aplicada pelo BC saltou de 250 mil reais para 2 bilhões ou 0,5% da receita de serviços e de produtos financeiros apurada no ano anterior ao da infração que motivou a punição — o que for maior. O BC poderá, ainda, determinar a substituição do auditor responsável. O descumprimento da determinação pode resultar em multa de até 100 mil por dia.

Francisco Sant’Anna, presidente do Instituto de Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), vê com bons olhos a postura mais enérgica dos reguladores. “O clamor da sociedade por mais ética e transparência provocou a necessidade de melhora nos controles sobre os auditores. Isso é positivo para os processos do mercado”, avalia. “Situações graves não ocorrem todos os dias, embora sempre exista um risco. Por isso, há pelo menos uma década as firmas tendem a ampliar, ano a ano, seus investimentos em controles internos e em tecnologias para evitar equívocos”, destaca Ana Maria Elorrieta, que atuou por 35 anos na PwC.

Deficiências

O mais recente levantamento anual da International Forum of Independent Audit Regulators (Ifiar), divulgado em março, mostrou que 40% dos documentos inspecionados pelos 42 reguladores membros da entidade tinham ao menos uma deficiência. O trabalho foi feito com uma amostra de 918 casos auditados por 120 firmas em 33 diferentes jurisdições no ano passado. Entre os problemas detectados, a maioria (29%) relaciona-se a inconsistências na apresentação de evidências. Fraudes representaram 7% dos casos, ante 13% no ano anterior.

Ocorre que, como a própria Ifiar destaca, embora o levantamento seja um sinalizador de tendências, é insuficiente para a avaliação da qualidade no trabalho das auditorias. Esse ponto é importante porque o que se exige hoje da auditoria é a capacidade de oferecer uma visão isenta sobre a saúde financeira de uma empresa — ou seja, a função vai muito além da simples identificação dos problemas depois que eles já se instalaram. “O auditor não trabalha apenas em função da detecção de fraudes. Sua análise sobre as entranhas das empresas, a ‘opinião’ apresentada e os achados relevantes formam um conjunto que dá importantes sinais para o mercado”, ressalta Renato Chaves, especialista em contabilidade e governança. No caso da Carillion, por exemplo, as auditorias foram criticadas por não terem fornecido análises completas sobre a situação da companhia, em iminente estado de falência. Um dos parlamentares que participou do interrogatório de representantes da Deloitte e da KPMG chegou a dizer que não contrataria as firmas nem para “auditar a própria geladeira”, por não acreditar que elas seriam capazes de informar corretamente o que estaria dentro dela.

Não à toa, em julho de 2017, o PCAOB apresentou novas diretrizes para a elaboração dos relatórios de auditoria, com o objetivo de melhorar a consistência das informações e observações das auditorias em relação aos balanços das empresas. O órgão determinou que eles contenham mais detalhes sobre a auditoria, enumerando questões que exigiram julgamentos complexos ou subjetivos do auditor e a natureza de transações incomuns, e também a forma como a auditoria lidou com os pontos críticos. Com regras mais rigorosas sobre sua atividade e infrações que fazem doer o bolso, as auditorias têm agora razões contundentes para prestar ainda mais atenção na responsabilidade do seu trabalho.


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