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Olho gordo da Receita
Atento a operações convencionais — e a outras menos ortodoxas — do mercado de capitais, Fisco quer tapar brechas que reduzam a arrecadação

A Receita Federal não tem dado moleza para os participantes do mercado de capitais. Em tempos de vacas magras — o governo já admite que não cumprirá a meta de 2,3% do PIB para o superávit primário deste ano —, busca fechar qualquer fenda que possa significar dinheiro a menos no cofre do Leão. Operações de reestruturação societária, fundos de investimentos usados para planejamento tributário e, mais recentemente, companhias que distribuíram proventos acima do lucro fiscal estão na mira do Fisco.

O aproveitamento de ágio — a diferença positiva entre o preço pago por uma companhia e o valor contábil de seus ativos — tem sido um dos principais alvos da Receita. Pelas regras tributárias vigentes, é possível deduzir da base de cálculo do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) o valor correspondente ao ágio empregado na aquisição de empresas. O benefício é considerado uma vantagem competitiva do Brasil, já que não existe em outros países. No entanto, diversas companhias que usufruíram a benesse, como BM&FBovespa, Natura, Oi, Tim e Vivo, foram autuadas.

A última empresa a tornar a cobrança pública foi o Itaú Unibanco. Em comunicado ao mercado emitido em agosto, o conglomerado financeiro confirmou que, em junho, recebeu um auto de infração de R$ 18,7 bilhões por causa do aproveitamento fiscal do ágio gerado pela fusão de Itaú e Unibanco, em 2008. O valor é mais que o dobro do lucro líquido do banco no primeiro semestre, de R$ 7,1 bilhões.

A instituição, no entanto, classifica como “remotas” as chances de perda. Conta a seu favor a Gerdau ter conseguido, no ano passado, decisão favorável do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) sobre uma cobrança de impostos referente ao benefício fiscal do ágio produzido a partir de uma reestruturação promovida entre empresas do grupo siderúrgico, em 2004. O histórico de decisões da Receita, porém, não é uniforme. Na fusão de BM&F e Bovespa, por exemplo, a autoridade questionou o uso fiscal do ágio pago na fusão.

A mão pesada do Fisco tem deixado o mercado inquieto. “O objetivo é apenas o de aumentar a arrecadação”, crava um especialista em contabilidade, diante das polêmicas em torno da amortização do ágio. O coro dos insatisfeitos engrossou com os rumores de que a lei que substituirá o Regime Tributário de Transição (RTT) oficializará o fim do benefício, em vigor desde a década de 1990. Em discussões com o mercado, a Receita teria demonstrado a intenção de mudar as regras vigentes. A amortização não seria totalmente extinta, mas a demonstração da expectativa de rentabilidade futura, que é a contrapartida do benefício, ganharia novas exigências. Até o fechamento desta edição, o texto final da lei aguardava aprovação da Casa Civil.

 

No bolso do acionista

O imbróglio da tributação de dividendos é outro sinal da voracidade do Fisco. Considerada estapafúrdia por diversos participantes do mercado, a proposta foi inicialmente exposta em um parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, divulgado em abril. De acordo com o documento, somente estão isentos os dividendos distribuídos até o limite do lucro fiscal, ou seja, o lucro registrado na demonstração financeira formulada para o Fisco. Desde a conversão para o padrão IFRS, as companhias produzem duas versões dos seus números: uma para apresentar aos acionistas e outra para a Receita. Linha de raciocínio semelhante seria aplicada à base de cálculo para a distribuição de juros sobre capital próprio (JSCP). De acordo com uma resposta dada pelo Fisco, em maio, à consulta de um contribuinte, os JSCP devem ser pagos sobre o patrimônio líquido (PL) apurado para fins fiscais, e não sobre o PL societário. Procurada pela reportagem, a Receita não atendeu à solicitação de entrevista.

Os ruídos provocados pela intenção de tributar proventos cresceram ainda mais no mês passado. A Receita negociava com o mercado a edição de uma Medida Provisória para pôr fim ao RTT, mas surpreendeu a todos e publicou a Instrução Normativa 1.397, com esclarecimentos sobre o regime transitório (leia matéria). Quanto à distribuição de dividendos e juros sobre capital próprio, o Fisco ratificou o entendimento manifestado pela Procuradoria. E foi além. Reforçou que as companhias deverão preparar, a partir de 2014, dois balanços completamente distintos: um para fins societários e outro para a Receita, que apontará o PL de acordo com as regras vigentes em 2007, antes da chegada dos IFRS. Atualmente, as companhias não têm a obrigação de elaborar um balanço específico para o Fisco. Elas apenas fazem as reconciliações necessárias por meio do Controle Fiscal Contábil de Transição (Fcont).

Cobranças ameaçam existência das corretoras

As corretoras também estão na linha de tiro da Receita. Elas vêm sendo autuadas por não ter pagado impostos sobre os ganhos de capital obtidos na desmutualização da Bovespa e da BM&F, em 2007. No processo, as instituições trocaram os seus títulos patrimoniais das bolsas — obrigatórios para atuarem no mercado — por ações das sociedades criadas. Como ressaltou, em artigo na capital aberto, a advogada especializada em contencioso tributário do escritório Cunha Ferraz, Juliana de Souza, na hipótese de as cobranças seguirem adiante, há o risco de colapso financeiro das corretoras. Segundo a advogada, as autuações ultrapassariam, juntas, a casa de centenas de milhões de reais — e não é segredo para ninguém que, desde a desmutualização, elas vêm amargando seguidos resultados negativos.

Próximo alvo

A vigilância cada vez mais rigorosa do Fisco sobre as operações do mercado de capitais é consequência de uma curva de aprendizado. “Atualmente, os órgãos fiscalizadores de todo o mundo se comunicam e observam quais são as brechas que originam oportunidades tributárias. No Brasil, não é diferente”, avalia Ana Cláudia Utumi, sócia do escritório Tozzini Freire.

Entre os profissionais consultados pela reportagem, é consensual a expectativa de que os fundos de investimentos serão o novo foco da Receita. Há dez anos, o patrimônio da indústria de fundos no Brasil era de pouco mais de R$ 500 bilhões, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Hoje, são R$ 2,3 trilhões, cifra que equivale a pouco mais da metade de toda a riqueza gerada no País — em 2012, o Produto Interno Bruto (PIB) somou R$ 4,4 trilhões. Parte do crescimento da indústria tem relação direta com os descontos tributários concedidos nos últimos anos.

Atualmente, fundos de investimento imobiliário (FIIs), em participações (FIPs) e em direitos creditórios (FIDCs), além de debêntures e instrumentos de securitização, integram o grupo de produtos que oferecem isenção do imposto de renda incidente sobre ganhos. Em busca dos descontos tributários, as operações com fundos de investimento ficaram cada vez mais criativas e, em alguns casos, exageram na dose a ponto de despertar a atenção do Fisco.

Os FIPs, por exemplo, foram criados para investimentos em participações, mas têm sido usados como instrumento de gestão patrimonial devido aos seus benefícios fiscais. Sob um FIP, a valorização do ativo não enseja o pagamento de imposto de renda ao beneficiário. O princípio é que os ganhos obtidos com as vendas de empresas serão sempre usados para investimentos em novos ativos. A regalia fiscal, no entanto, tem levado alguns agentes a usar esses veículos para fazer uma simples transação de compra e venda de empresa, por exemplo. Se vendessem a companhia diretamente, sem a cobertura de um fundo, teriam que pagar IR sobre a diferença entre o valor de custo do ativo e o valor recebido na venda. Com o FIP, podem contabilizar o ativo a valor de mercado no fundo (sem que a mais-valia represente incidência de impostos) e, ao transferi-lo, não computar ganho, livrando-se do tributo. A manobra pode ser considerada uma infração porque, nesses casos, o FIP teria sido usado apenas como veículo de fachada.

“Cada estrutura jurídica tem uma lógica e uma finalidade. Quando isso não é respeitado, vira abuso — palavra que vem do latim e significa uso errado, excessivo”, analisa Alexandre Tadeu Navarro, sócio de Navarro Advogados. O especialista reconhece que a discussão é ampla e profunda. “Ninguém está obrigado a pagar a alíquota maior ou se abster da busca de eficiência. O que não podemos é ir para o outro extremo, do abuso de direito”, afirma.

Na mira do Leão também se encontram os fundos imobiliários, que, desde 2004, isentam os cotistas pessoas físicas da tributação dos ganhos. Somente do FII Península, cujo principal beneficiário é Abilio Diniz, a Receita Federal cobra um total de R$ 78,2 milhões em tributos, segundo o relatório mensal de acompanhamento processual arquivado no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A cifra equivale a 7,55% do patrimônio líquido do fundo, de R$ 1,03 bilhão. De acordo com o Fisco, apenas em relação a 2005 o Península lhe deve R$ 9,4 milhões em IR e CSLL. A decisão do Carf foi desfavorável ao fundo que, no momento, aguarda ser intimidado para apresentar recurso.

O questionamento da Receita remonta à origem do Península. O fundo foi criado em junho de 2005, após o grupo francês Casino adquirir parte da Companhia Brasileira de Distribuição, dona do Pão de Açúcar — cujo controle, até então, era apenas do empresário Abilio Diniz e de seus familiares. Cerca de 60 imóveis da companhia não entraram na negociação e foram colocados no FII. As lojas passaram a ser alugadas para o Pão de Açúcar, e a renda foi convertida em benefício dos cotistas do fundo. Porém, como o empresário é o principal beneficiário do veículo, a Receita entendeu que deveria invocar a Lei 9.779, de 1999. A regra impõe a mesma tributação aplicável às pessoas jurídicas ao investidor que for dono de mais de 25% das cotas e também “construtor, incorporador ou sócio do empreendimento imobiliário investido”.

 Zé com zé

As analogias inventadas para economizar impostos, em geral, são arriscadas. Um exemplo é a tentativa de replicar nos fundos imobiliários que investem em ações (possibilidade prevista na Instrução 472) a isenção sobre proventos aplicável aos cotistas de fundos de ações tradicionais. Não há uma norma que assegure aos cotistas de FIIs o mesmo benefício. “Entendo que é possível agir da mesma forma, mas a lacuna gera insegurança jurídica”, diz Carlos Ferrari, do NFBC Advogados. “Ainda estamos formando uma jurisprudência”, completa Diego Miguita, do Vaz, Barreto, Shingaki e Oioli Advogados.

Os fundos atraíram R$ 2,3 trilhões e, com eles, a mira do Leão

Os fundos de ações convencionais também podem cair nas garras do Leão. Uma estratégia que passou a ser adotada por gestores de recursos é o aluguel de papéis às vésperas do pagamento de proventos para apurar ganhos tributários. Diferentemente dos dividendos, os JSCP não pagam imposto na fonte. Se o beneficiário é um investidor pessoa física, a alíquota é de 15%; no entanto, se é um fundo, não há o desconto. Por conta disso, alguns gestores passaram a procurar detentores de ações logo antes dos pagamentos de proventos para oferecer-lhes um bom negócio: o dono das ações as aluga para o fundo, que, por sua vez, receberá os JSCP sem pagar imposto; o fundo repassa a esse acionista um valor maior do que ele receberia em JSCP se debitasse o imposto e fica com a diferença. O saldo da negociata é positivo para fundo e acionista — e negativo, claro, para a Receita.

A transação é, em princípio, legal, mas, como se difundiu e ganhou volume, a Anbima divulgou, em março, um parecer de orientação aos associados no qual ressaltava itens do seu código, entre eles o de preservação dos propósitos econômicos das operações feitas pelos gestores. “O assédio de assets dispostas a alugar carteiras de ações foi tão grande que diversos clientes nos procuraram para saber se deveriam emprestar seus papéis”, conta um advogado. O receio de alguns investidores é que a transação venha a ser questionada: o Fisco pode cobrar impostos até cinco anos depois do fato gerador do tributo.

Entre a criatividade malandra do mercado e o apetite voraz de arrecadação da Receita certamente há um ponto de equilíbrio. Os fatos recentes mostram que, para uma convivência pacífica, é urgente encontrá-lo.

 


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