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A fraude do auditor da Delloite — e a multa inédia de US$ 8 milhões
Como uma falsificação de documentos se transformou na inédita multa de US$ 8 milhões aplicada pelo PCAOB à Deloitte
Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Quem entrou, na segunda-feira, dia 5 de dezembro de 2016, na sede da Deloitte no Brasil, em São Paulo, foi “recepcionado” por Altair Rossato. No posto desde junho passado, o presidente da firma aparecia em um vídeo transmitido ininterruptamente em todos os televisores espalhados por salas, halls e corredores. A comunicação direta com os 5,5 mil funcionários fazia parte da estratégia da subsidiária brasileira para lidar com a maior turbulência que já enfrentou no País: naquela mesma segunda-feira chegava ao mercado a notícia de que a Deloitte desembolsaria cerca de R$ 32,5 milhões em penalidades por fraude em documentos e emissão de relatórios falsos.

A maior punição veio dos Estados Unidos. O Public Company Accounting Oversight Board (PCAOB), regulador das firmas que auditam companhias sujeitas à Lei Sarbanes-Oxley (SOx), receberá US$ 8 milhões. A multa é emblemática: trata-se da primeira sanção decorrente de fraude e falta de cooperação em investigações aplicada a uma das quatro grandes firmas mundiais de auditoria, as chamadas Big Four (grupo composto de Deloitte, EY, KPMG e PwC). No Brasil, a Deloitte desembolsará outros R$ 5,3 milhões, resultado de um termo de compromisso firmado com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O PCAOB acusa o sócio-líder da Deloitte José Domingos do Prado de ter modificado papéis que elucidavam sua má conduta ao validar demonstrações financeiras da Gol. A descrição das falhas e da adulteração dos papéis é parte do relatório divulgado pela equipe de investigação do PCAOB no início de dezembro.

Dinheiro a mais

Um dos equívocos da auditoria teria acontecido na conta de reserva de recursos para manutenção de aeronaves e equipamentos. Em 2009 e 2010, esses ativos somavam R$ 522,7 milhões e R$ 456,7 milhões, respectivamente — o equivalente a 6% e 5% do total de bens e direitos. Em 2009, os auditores perceberam que a Gol falhava em rastrear o uso desses recursos, o que os impedia de atestar a veracidade dos números reportados pela companhia. Os controles não funcionavam bem e havia grandes chances de os números estarem superestimados. Baseado na promessa da Gol de que contrataria um analista para conferir o valor das reservas no ano seguinte, Prado consentiu que a companhia reportasse os números incertos.

Como prometido, a aérea apurou os ativos em 2010, confirmou que eles estavam mesmo errados e começou a estorná-los nos balanços trimestrais — num total de R$ 116,5 milhões em baixas. Ainda assim, terminou aquele ano com um residual de R$ 52,6 milhões em ativos não estornados e decidiu “baixá-los” apenas nas demonstrações do ano seguinte, quando novamente os diluiria ao longo dos trimestres. Em 2010, portanto, os ativos foram mais uma vez computados a valores incorretos. A Deloitte, de acordo com o órgão supervisor, falhou não apenas ao consentir com a postergação da baixa do valor residual como ao ignorar a possibilidade de haver nessa atitude um indicativo de fraude por parte dos executivos da Gol.

A Deloitte também teria validado falhas, segundo o PCAOB, no cômputo das receitas de venda de passagens aéreas. Nos seus papéis de trabalho, a auditoria observou uma diferença significativa entre o sistema de reservas dos bilhetes e o da contabilidade, que apontava um total de R$ 38,3 milhões a mais na linha de receitas, o equivalente a 10% do lucro antes de impostos. A equipe de auditores recomendou à companhia concluir o ajuste ainda em 2010, mas os gestores preferiram fazer suas próprias análises sobre o erro antes de reconhecê-lo no balanço. A Deloitte anotou a provável superestimativa em seus papéis, mas não declarou sua impossibilidade de comprová-la no parecer da auditoria. A firma teria ainda observado problemas técnicos no sistema de informações financeiras da Gol, mas sem ir adiante em avaliar a gravidade dessas deficiências, segundo o PCAOB.


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As duas situações fizeram com que, aos olhos do órgão supervisor, a Deloitte emitisse um relatório fora dos padrões do PCAOB sobre as demonstrações financeiras da Gol e seus controles financeiros. De acordo com o comitê, o sócio líder da auditoria e sua equipe sabiam das incertezas existentes tanto sobre as contas de reservas para manutenção de aeronaves quanto em relação às receitas com a venda de passagens. Os padrões de conduta do PCAOB, segundo o relatório, foram violados por causa da falta de cuidado profissional e de ceticismo. Além disso, a firma de auditoria não obteve evidências suficientes sobre os números reportados e não averiguou os controles contábeis da Gol.

Bandeira vermelha

Durante o primeiro trimestre de 2011, a Gol concluiu suas análises sobre o erro na apuração das receitas com as vendas de passagens de 2010. Identificou que não teriam sido computados apenas R$ 38,3 milhões indevidamente, mas R$ 56,8 milhões. No balanço do primeiro trimestre, entregue às autoridades brasileiras e estrangeiras, o valor foi subtraído do total das receitas para correção do equívoco.

A mudança nos números chamou a atenção da Securities and Exchange Commission (SEC), o órgão regulador americano. Em dezembro do mesmo ano, a agência enviou uma carta à companhia pedindo explicações sobre dados diversos da demonstração anual de 2010 e das trimestrais de 2011, entre eles o estorno de R$ 56,8 milhões nas receitas. Questionava como a norma IAS 8 dos padrões internacionais (IFRS), relativa às situações de mudanças de estimativas e erros contábeis, tinha sido aplicada no caso. No seu parágrafo 44, a norma descreve como a companhia deve proceder quando é impossível determinar o período específico dos efeitos de um erro contábil. Diz a regra que a companhia deve estornar o erro na conta de patrimônio líquido do balanço seguinte. A carta da SEC trazia, segundo a narrativa da investigação iniciada anos depois, o álibi que Prado precisava para justificar sua inoperância diante dos erros dos gestores da Gol no cômputo das receitas.

Gato no telhado

Em março 2012, o conselho do PCAOB avisou que iniciaria uma inspeção dos trabalhos de autoria da Deloitte Brasil. Três seriam as empresas avaliadas — e uma delas era justamente a Gol. O procedimento é padrão: periodicamente, o órgão supervisor avalia o trabalho das firmas que auditam companhias emissoras de valores mobiliários nos Estados Unidos. O PCAOB seleciona demonstrações financeiras já apresentadas ao mercado e as refaz, avaliando a qualidade e a confiabilidade do serviço de auditoria.

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De acordo com as regras do PCAOB, os papéis de trabalho da auditoria devem conter uma data de conclusão depois da qual a documentação não pode ser apagada ou descartada dos arquivos. São permitidas, porém, inclusões de documentos — desde que com as respectivas datas registradas, assim como os nomes de quem as arquivou e as justificativas para os complementos.

As investigações do PCAOB mostraram que, a partir do anúncio da inspeção do balanço da Gol, em março de 2012, até outubro de 2013, quando o órgão supervisor pediu o arquivo completo com os papéis de trabalho do balanço de 2010 da Gol, Prado e seus subordinados fizeram diversas alterações fraudulentas nos papéis de trabalho. O sócio líder inicialmente pediu aos seus gerentes que alterassem os papéis e, depois, complementou ele mesmo o trabalho, segundo o relato da investigação. Ao todo, 70 documentos foram alterados — 56 relativos ao balanço anual de 2010 e 14, aos trimestrais.

As mudanças nos documentos teriam dois objetivos principais: esconder o consentimento dos auditores da Deloitte em relação à decisão da Gol de manter em seu balanço de 2010 os R$ 52,6 milhões que não existiam em depósitos para manutenção das aeronaves (e estorná-los apenas no balanço seguinte) e forjar a aparência de que o time havia considerado o IAS 8 para tratar o erro no cômputo das receitas de vendas de passagens. Além dos papéis de auditoria, os sócios da firma alteraram uma apresentação feita à Gol durante a auditoria. O intuito teria sido incluir o IAS 8 como justificativa para as decisões tomadas e enganar os inspetores.

Os documentos da Gol não foram os únicos adulterados, segundo o relato dos investigadores. Foram descobertas falsificações também nos papéis da Oi (na época, Tele Norte Leste), a segunda empresa escolhida para o trabalho de revisão (o nome da terceira não foi revelado). Quando solicitados a entregar os documentos para o PCAOB, os sócios responsáveis perceberam que os arquivos — gravados em CDs — não incluíam alguns documentos. Para resolver o problema, revela o órgão supervisor, gravaram um novo CD com as penúltimas versões da papelada e retroagiram o relógio do computador para fazer parecer que o disco tinha sido produzido na data original de arquivamento.

Em junho de 2014, o conselho do PCAOB informou à firma que a inspeção de rotina havia sido transformada em uma investigação. No mês seguinte, os gerentes foram convidados a depor sobre as suspeitas e, novamente, fizeram uma apresentação usando os documentos falsos. Confrontado pelo órgão supervisor, que a essa altura já o acusava claramente de ter adulterado os documentos, Prado refutou todas as afirmações.

Hora da verdade

No fim de 2014, a Deloitte Brasil começou uma investigação interna sobre o episódio. Com a ajuda dos executivos de sua unidade antifraude nos Estados Unidos e de uma firma independente, apurou as diferenças entre os papéis de trabalho originais e os entregues aos inspetores. Deflagrou, finalmente, as 70 falsificações. Reconheceu que Prado havia consentido com a contabilização de ativos irreais e forjado o uso do IAS 8 como sustentação para sua atuação negligente. Um ano depois, um total de 12 executivos da firma — entre eles, três sócios seniores — haviam sofrido sanção do PCAOB e sido demitidos da Deloitte Brasil.

Conforme a investigação avançou, outros sócios da firma envolveram-se na encrenca. Maurício Pires, líder da área de risco, e Wanderley Olivetti, responsável pela área técnica da auditoria, acobertaram, segundo o PCAOB, a má conduta da equipe de Prado. A prova definitiva do envolvimento dos dois foi a apresentação de uma gravação feita por André Paulon. Gerente à época dos fatos e depois promovido a sócio, Paulon admitiu ter alterado documentos e registrou, em seu celular, a instrução recebida dos superiores para a remoção das provas.

O PCAOB impôs sanções individuais aos 12 envolvidos. Prado recebeu a punição mais severa: a proibição permanente para atuar como associado de uma firma de auditoria registrada no PCAOB. O executivo foi afastado das suas atividades na Deloitte ainda em 2015 e desligado definitivamente neste ano, mas sem que o real motivo de sua saída fosse divulgado. Meses depois, tornou-se sócio-líder de auditoria da Grant Thorton. Num encontro com a reportagem da CAPITAL ABERTO na época, Prado contou apenas que havia se aposentado da Deloitte e que, apesar da intenção de se dedicar à carreira acadêmica, optou por voltar ao mercado de auditoria. Diante da divulgação do caso, a Grant Thornton anunciou sua saída no dia 7 de dezembro.

Olivetti e Pires estão proibidos de atuar em firmas registradas no PCAOB nos próximos cinco anos. Outros nove funcionários da firma foram individualmente punidos pelo PCAOB, com sanções que incluem a proibição temporária de atuação e multas individuais de até US$ 20 mil. Todos os citados foram desligados da Deloitte nos últimos meses.

Procurada, a Gol não atendeu ao pedido de entrevista. Informou em nota que não há qualquer indício de benefício à companhia ou impacto sobre os balanços arquivados na CVM e na SEC. Prado também não retornou os contatos feitos pela reportagem. Rossato, atual presidente da firma de auditoria, conversou longamente com a CAPITAL ABERTO para transmitir a sua perspectiva dos fatos.

Arrumação da casa

A pena imposta pelo PCAOB à Deloitte vai muito além do desembolso de cerca de R$ 30 milhões — despesa que, segundo a firma, será suportada pelos recursos em caixa. Nos dias seguintes à divulgação do resultado das investigações do órgão americano, o presidente, Altair Rossato, visitou 16 clientes de peso e falou diretamente com seus CEOs. A meta era explicar, cara a cara, o imbróglio no qual a firma se meteu e como os problemas seriam remediados.

Como parte do acordo com o PCAOB, a Deloitte se comprometeu a fazer uma série de melhorias em sua governança. Entre as providências já tomadas está o aperfeiçoamento do controle interno. Foi graças a falhas no sistema que ocorreu a adulteração dos documentos da Gol — ao solicitar autorização para ajustes específicos e justificados, José Domingos do Prado teve acesso integral ao arquivo da companhia aérea. A brecha, ora fechada, permitiu a alteração indiscriminada das dezenas de documentos. Além disso, em caso de fiscalização, a entrega dos documentos ao PCAOB não mais poderá ser feita pela equipe de auditores que assina o balanço.

O comitê de ética também foi aperfeiçoado. Deixou de ser subordinado ao comitê executivo, passou para debaixo do chapéu do conselho de administração e ganhou amplitude. Avaliará casos envolvendo qualquer funcionário — antes, ocorrências com sócios eram tratadas exclusivamente pelo CEO e pelo chairman. A Deloitte revisou ainda seu código de ética e conduta (a reforma já estaria prevista) e aperfeiçoou os canais internos de denúncia. Se quiserem, os funcionários podem inclusive relatar problemas diretamente à CVM e ao PCAOB. Para complementar a arrumação da casa, a firma reforçou o conselho de administração com membros independentes.

Nos próximos meses, a Deloitte ficará sob a vigília de um monitor externo, como parte de um acordo com o PCAOB. O observador validará a implantação das melhorias e atestará a qualidade das demonstrações financeiras referentes ao encerramento de 2016. A expectativa é que ele permaneça no posto até meados deste ano, quando os balanços dos clientes da firma serão entregues à CVM e à SEC. O nome do observador — um ex-auditor experiente e com reconhecida reputação — já havia sido escolhido em meados de dezembro, mas depende do aval do PCAOB.

Passar no crivo do monitor externo é fundamental para que a Deloitte reconquiste o direito de captar clientes sujeitos à Sarbanes-Oxley. Por causa do rodízio obrigatório de firmas, instituído pela CVM em 2009, a troca de auditor deve ser feita em intervalos de cinco anos. Na dança das cadeiras, a Deloitte perderá três clientes em 2017 e, não fosse a sanção, poderia participar da disputa de oito contas. Para reduzir a perda de mercado, no entanto, o PCAOB permitiu que a auditoria prossiga na disputa de três delas.


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