Contabilidade democrática
Fenc nasce com o desafio de buscar entendimentos em torno das melhores práticas contábeis e de promover o alinhamento com padrões internacionais

ed03_p024-026_pag_2_img_001A busca persistente de consensos defendida pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva desde as eleições e materializada na forma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico Social – órgão composto por um total de 82 representantes das mais diversas esferas da sociedade – começa a ganhar adeptos fora da seara política. Depois de inúmeras divergências para solução de questões técnicas e de conflitos de legitimidade para tomada de decisões, profissionais de contabilidade decidiram abraçar a idéia dos consensos e montar um comitê de formulação de normas contábeis com representantes de diversas instâncias do governo e da iniciativa privada.

Assim foi concluída no final de setembro a minuta do estatuto que cria a Fundação de Estudos e Normas Contábeis (Fenc), uma espécie de laboratório de normas e procedimentos em contabilidade. Em sua estrutura, não faltam fóruns para incorporar os mais diversos agentes de mercado. A começar pelo conselho curador, órgão máximo da fundação, formado por representantes dos contadores, auditores, empresários, profissionais de investimentos e acadêmicos, além das bolsas (Bovespa e BM&F) e o governo federal (Comissão de Valores Mobiliários e Banco Central). Abaixo do conselho curador vem o conselho consultivo, para o qual estão sendo convidados representantes da Receita Federal, de agências reguladoras, entidades de classe, da Fundaçãodas Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), além de companhias abertas e outros interessados.

O comitê já está previsto no projeto para reforma da parte contábil da Lei das S.As. Mas a idéia dos fundadores da Fenc é fugir à demorada discussão da lei no Congresso e criar soluções para implementar o comitê antes de a lei ser aprovada. A legitimidade da fundação estaria na representação dos diversos segmentos do mercado e seu papel ficaria restrito ao estudo e à divulgação de padrões. A regulamentação efetiva para aplicação das normas seria dada pela entidade competente em cada caso, seja ela o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), a CVM ou uma entidade reguladora. “O comitê tem a função de encontrar definições comuns entre os participantes. O regulamento fica por conta das entidades competentes”, afirma.

Hoje, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) é o órgão responsável pela elaboração das normas técnicas e conta com o apoio do Instituto Brasileiro de Contabilidade (Ibracon), a associação de classe dos auditores independentes. “A idéia é criar um fórum de discussão mais amplo, com o apoio de outros órgãos, para que haja harmonização das regras”, diz Antonio Carlos Santana, superintendente de normas contábeis da CVM. Outro objetivo da Fenc é buscar a harmonização dos procedimentos contábeis no Brasil com os que estão sendo definidos internacionalmente pelo Iasb – International Accounting Standards Board.

DÚVIDAS QUANTO À NECESSIDADE DE LEI – As chances de a Fenc emplacar sem a aprovação da Lei das S.As ainda são discutíveis. Guy Andrade, presidente do Ibracon, acredita que, mesmo com a força do mercado, a Fenc precisará ser referendada por lei. Para isso, ele espera que o projeto de mudança nas normas contábeis seja aprovado o quanto antes. O texto, de número 3.741, está em discussão na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados e vem esbarrando no lobby das empresas de capital limitado, as quais se empenham para derrubar a cláusula que lhes obriga a divulgar balanços.

Um dos pontos do projeto autoriza a CVM a celebrar convênio com entidades de direito privado para estudo e divulgação de normas e padrões de contabilidade, podendo adotar os pronunciamentos e demais orientações técnicas. Essas entidades deverão ser majoritariamente compostas por contadores. A Fenc se propõe a ser a principal delas, sustentada pelo poder de congregar as demais.

Mas o texto da lei não era esse desde o início. Na versão inicial, falava-se na criação do Comitê Superior de Estudos e Normas Contábeis (que chegou a levar a sigla Cosenc). O grupo seria composto por integrantes do mercado e trabalharia em conjunto com a CVM na elaboração e divulgação de normas e padrões de contabilidade.

Na época, houve discussão em torno da divisão de poder que passaria a existir entre a CVM e o comitê, o qual não tinha um perfil claro para se caracterizar como público ou privado. Algumas emendas enviadas ao congresso na época recomendavam que essa função fosse do Conselho Federal de Contabilidade (CFC). Mas o próprio CFC foi contra a aprovação do comitê na forma como estava sendo apresentada a proposta. Depois de muita discussão, o texto foi alterado e o novo formato, no qual se encaixa a Fenc agora, amenizou as diferenças.

POR REGRAS MAIS ESTÁVEIS – A falta de regras claras e de entendimentos em torno dos melhores padrões contábeis em nada contribui para o bom funcionamento do mercado. Pelo contrário, aumenta inseguranças e diferenças entre as práticas adotadas, o que acaba por confundir e prejudicar os investidores. A proposta de um comitê único e o desafio de buscar consensos para as diferenças de pontos de vista em torno das melhores práticas pode evitar que o Brasil volte a experimentar situações vividas anos atrás.

As empresas aéreas se viram em um dilema quando o Departamento de Aviação Civil (DAC) baixou uma norma permitindo que o leasing das aeronaves fosse contabilizado no ativo aos poucos, na medida em que fosse pago. Algumas companhias do setor eram abertas e, pelas regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), tinham que escolher entre dar tratamento de compra à operação, e registrar o valor integral no ativo, ou lançá-la como aluguel e contabilizar a despesa mensalmente.

Na época, a contabilização do leasing no Brasil já era diferente do que previam as normas internacionais, que só permitia o registro como compra. A regra do DAC trouxe uma terceira alternativa e confundiu ainda mais os balanços. A CVM precisou baixar uma circular condenando o uso das normas do departamento de aviação nas demonstrações contábeis das companhias abertas.

EM LINHA COM PADRÕES INTERNACIONAIS – A demanda por padrões de contabilidade internacionais ganhou força depois dos escândalos ocorridos com grandes empresas americanas e européias. Desde a sua formação, em 2001, o Iasb tem progredido nos esforços de desenvolver a uniformização dos padrões de contabilidade globais para os mercados de capitais mundiais.

Em 2002, várias jurisdições, incluindo Austrália, União Européia e Rússia, anunciaram que adotariam padrões internacionais até 1 de janeiro de 2005. No caso da União Européia, não apenas as companhias abertas, mas todas as cerca de 7 mil grandes ou médias empresas da região estarão migrando para as normas do Iasb.

Em setembro do ano passado, o Iasb e seu correspondente nos EUA, o Financial Accounting Standards Board (Fasb), firmaram um acordo para trabalhar na busca da convergência entre as práticas americanas e as internacionais e o desenvolvimento em comum de padrões futuros. Se entrar na ativa de fato, a Fenc poderá ser mais uma agente dessa harmonização.

A idéia dos idealizadores da Fenc é criá-la nos moldes do Fasb e do Iasb, ambos representados por diversas categorias de profissionais envolvidos com a utilização de padrões contábeis. A autonomia para emissão de normas é que poderá ser diferente. O Fasb edita as normas sem a interferência da Securities and Exchange Commission, a CVM norte- americana, que tem apenas o poder de veto. No caso do Iasb, a autonomia é ainda maior, já que as regras por ele emitidas são definitivas. No caso brasileiro, os instituidores da Fenc esperam que as normas criadas na fundação sejam também validadas pelos órgãos competentes, uma vez que todos participarão em conjunto da sua elaboração.

PRINCÍPIOS OU REGRAS? – Mesmo antes de entrar em funcionamento, a fundação já discute os caminhos que pretende seguir na elaboração das normas contábeis brasileiras. Não há como escapar da discussão que vem envolvendo contadores em todo o mundo desde que os escândalos contábeis nos Estados Unidos colocaram à prova todos os sistemas mais tradicionais. Deve a contabilidade seguir um modelo baseado em regras bem definidas e específicas ou em uma declaração de princípios gerais, mais focada na essência do que na forma?

Fenc é lançada no Brasil a partir de modelos internacionais como o Fasb e o Iasb

Os dois modelos – o primeiro mais semelhante com a contabilidade desenvolvida no mercado norte-americano e o segundo mais alinhado com o formato anglo-saxão – foram discutidos em profundidade pelo congresso dos Estados Unidos durante a preparação da lei Sarbanes-Oxley – lançada em meados de 2002 para regular o comportamento das corporações em resposta aos escândalos deflagrados pela Enron. Os legisladores norteamericanos tinham receio de que o modelo de padrões contábeis calcado em exceções e interpretações pudesse ter favorecido os esforços dos executivos para estruturar transações que provocassem um resultado contábil desejado e ainda tivessem permitido que a companhia desse pouca transparência aos impactos dessas operações nos balanços. Para tirar a dúvida, solicitaram à SEC o estudo de viabilidade de um sistema baseado em princípios e menos em regras definidas.

Comitê nasce com o desafio de formular uma “política de forma ou essência” para as normas contábeis

O estudo, encerrado em julho, concluiu que um modelo baseado apenas em princípios traria dificuldades para a fiscalização porque oferece poucas indicações para o julgamento da aplicação desses princípios. Concluiu também que um sistema muito calcado em regras freqüentemente se torna um veículo para escapar do princípio contido na regra.

A SEC acabou optando por um modelo intermediário, baseado em conceitos e acompanhado de evidências claras do objetivo das regras. Esse modelo deve contemplar ainda detalhes suficientes para a aplicação consistente da norma, poucas exceções e pouco uso de premissas baseadas em percentuais. Segundo a SEC, esse sistema não é divergente daquele que vem sendo adotado pelo Fasb.

Até o fechamento dessa edição, o estatuto da Fenc estava sendo analisado por diversas entidades do mercado e algumas ainda avaliavam sua participação no grupo. Segundo Marcio Martins Villas, a idéia é iniciar as atividades do comitê o quanto antes. Além do conselho curador e do conselho consultivo, a Fenc terá um conselho fiscal e uma diretoria, a ser composta por profissionais contratados no mercado. No modelo desenhado pelos fundadores, os custos de administração da Fenc serão financiados por empresas e entidades patrocinadoras.


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