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Sinais de uma bolha?
O conceito é novo e os riscos são grandes, mas as captações via emissão de criptomoedas disparam mundo afora
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

“Segurança é uma superstição. Ela simplesmente não existe na natureza. Evitar o perigo não é mais seguro a longo prazo.” A frase é um registro de Helen Keller, escritora do Alabama. Apesar de ser surda e muda desde bebê, ela saiu de casa jovem, explorou o mundo e tornou-se, no século 19, a primeira pessoa com deficiências auditiva e de fala nos Estados Unidos a graduar-se em uma universidade. O aspecto crucial da afirmação de Keller, bem conhecido por todo investidor experimentado, é como equilibrar as perspectivas de ganhos com os riscos envolvidos. Pois foi apoiado em uma inovação disruptiva — a invenção da tecnologia de blockchain (leia mais no quadro) — que um conjunto de plataformas de investimento e crowdfunding criou um modelo de captação de recursos fundamentado numa equação tão sedutora quanto arriscada: as ofertas públicas de moedas virtuais (criptomoedas), ou initial coin offers (ICOs).

Exemplos de sucesso não faltam. Quem comprou, em janeiro de 2015, moedas no lançamento da ethereum (leia mais no quadro), uma plataforma usada para criação e administração de contratos online, viu seus ativos se valorizarem 750 vezes no prazo de dois anos. Em contrapartida, muitos outros investimentos, caso dos oferecidos pelo sistema de compra e venda de criptomoedas Confido, revelaram-se uma fraude. Após captarem 340 mil dólares, no início de 2017, os fundadores da Confido desapareceram e o valor dos ativos virtuais vendidos hoje é zero.

Os conceitos são novos e merecem detalhamento. Uma analogia com os IPOs (ofertas públicas iniciais de ações) é uma maneira simples de explicar o funcionamento dos ICOs. Em vez de emitir ações em uma bolsa de valores, cumprindo todos os requisitos regulatórios relacionados a uma abertura de capital tradicional, os ICOs envolvem a venda de frações de uma empresa sob a forma de “moedas virtuais” exclusivamente pela internet — e, mais importante, por enquanto sem crivo de regulação. Mais do que isso: esses ativos podem ser transacionados em plataformas online que operam como bolsas de valores virtuais — nelas, pessoas do mundo todo podem comprar e vender seus ativos sem interferência de autoridades ou órgãos fiscalizadores.

Acesso fácil

Do ponto de vista do empreendedor, o ICO representa uma forma simplificada de capitalização. Em um modelo tradicional, o dono de uma jovem empresa visita fundos de investimento, toma cafezinho com dezenas de gestores de venture capital e faz apresentações (pitches) em aceleradoras até conseguir chamar a atenção de uma ou duas pessoas que acreditem no negócio a ponto de nele aportar capital. Já no ICO, ele vende “moedas digitais” — que representam uma espécie de contrato virtual, chamado de token — em plataformas de comercialização de criptomoedas, recebendo em troca geralmente bitcoins. “Nesse modelo, o empreendedor pulveriza o investimento que recebe e pode captar no mundo inteiro, uma vez que um site pode ser acessado por um investidor que fisicamente esteja em qualquer parte”, afirma a sócia do escritório de advogados HCO Law, Anne Chang, que assessora empresas brasileiras interessadas em emitir moedas virtuais.

Para o investidor, o caminho é fácil. Ele só precisa escolher entre os numerosos sites de negociação disponíveis na web — como CoinBase ou Bitstop — e fazer um cadastro. A partir daí tem acesso aos tokens das startups mais criativas do Vale do Silício, de Israel ou da Europa. Um exemplo prático: um investidor pode comprar dez tokens de uma empresa canadense, que equivaleriam a 0,1% de seu capital, e aguardar sua valorização. Depois de quanto tempo quiser pode vendê-los livremente para terceiros, por meio das mesmas plataformas em que os adquiriu.

Disparada e freios

As ofertas de moedas virtuais causam estranheza aos que não estão familiarizados com a vanguarda do mundo digital, mas elas são um sucesso estrondoso. A consultoria Coindesk estima que, só no primeiro semestre de 2017, foram captados por meio de ICOs 1,13 bilhão de dólares em todo o mundo. A ascensão vertiginosa desse método de captação desregulado levou autoridades monetárias de diversos países a restringir as operações. Governos de China, Rússia e Coreia do Sul proibiram a emissão de tokens e a captação via ICOs em seus mercados até que os reguladores locais criem regras específicas. Nos Estados Unidos, o fato de celebridades promoverem ICOs comercialmente levou a Securities and Exchange Commission (SEC), o regulador do mercado de capitais americano, a censurar publicamente famosos que emprestam sua imagem para anúncios dessas operações.

A SEC foi impelida a se manifestar depois que a Centra Tech, uma empresa com sede em Miami, emitiu criptomoedas para financiar o projeto de criação de um cartão de débito para pagamento de contas com bitcoins — a mais disseminada das moedas virtuais. A ideia parecia boa: com o cartão em mãos, uma pessoa poderia pagar despesas com bitcoins em qualquer estabelecimento integrante da rede da bandeira Visa. Para divulgar a novidade, a empresa contratou Floyd Mayweather Jr., um ex-boxeador americano e instagrammer que posta fotos com diamantes e barras de ouro, e DJ Khaled, artista que já gravou com Justin Bieber. Juntos, Khaled e Mayweather Jr. somam 28 milhões de seguidores nas redes sociais e, com o slogan “torne-se rico como nós” convenceram pessoas físicas a colocar o equivalente a 30 milhões de dólares na conta da Centra. O sucesso da captação jogou luz sobre a startup. Reportagem do jornal The New York Times revelou que a empresa não tinha nem acordo com a Visa nem tecnologia para converter bitcoins em dólares em tempo real. A repercussão negativa fez o valor das moedas desabar e quem colocou dinheiro na empresa ficou com um item virtual sem valor. Apesar do rumoroso escândalo e da bronca pública, a SEC não proibiu a emissão de ICOs nos Estados Unidos.

Terreno instável

No Brasil, as autoridades públicas recomendam prudência com as moedas virtuais. Otávio Damaso, diretor de regulação do Banco Central, afirma que os investidores devem ficar atentos ao fato de que as criptomoedas não são emitidas por órgão oficial ou lastreadas em ativos reais. “Seu valor decorre exclusivamente da confiança conferida pelos indivíduos e seu emissor. Essas transações não são reguladas ou supervisionadas pelo Banco Central”, reforça Damaso. Apesar do alerta, o diretor do BC diz que a emissão de ICOs não é ilegal no Brasil. “Apoiamos as inovações financeiras e as acompanhamos com atenção. Por enquanto, não representam riscos relevantes para o sistema financeiro nacional”, diz Damaso.

No último mês de outubro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) emitiu uma nota para estabelecer limites para a captação via ICOs. O órgão observa que “estimula o empreendedorismo e a introdução de inovações”, mas chama a atenção para o fato de que, se a emissão representar venda de “valores mobiliários” deve cumprir regras específicas, estabelecidas em lei. Por isso, muitas startups têm procurado escritórios de advocacia para desenhar um modelo legal que evite que suas ofertas sejam enquadradas como valores mobiliários. A captação não pode gerar a promessa de dividendos ou de direito de voto na administração da empresa, por exemplo. De todo modo, como a tecnologia é novíssima e não há jurisprudência a respeito, as fronteiras entre o que é ou não é um valor mobiliário no campo das criptomoedas permanecem cinzentas.

Para Antonio Berwanger, superintendente de desenvolvimento de mercado da CVM, é possível emitir moedas virtuais que configurem valor mobiliário se seguidas algumas normas, que também são aplicadas à captação em programas de crowdfunding: não captar mais que 5 milhões de reais por período de investimento e publicar de forma clara e acessível por qualquer pessoa as regras de governança e riscos envolvidos na venda das moedas virtuais. “Pessoalmente, não tenho restrições ao uso de tecnologia e inovação, mas defendo que tudo seja feito com cuidado e respeito à lei”, destaca Berwanger, que diz acompanhar de perto a evolução dos ICOs no Brasil. “No momento, vejo várias características de bolha nesse fenômeno”, diz o superintendente da CVM. De todo modo, como ICOs são itens virtuais, eventuais proibições locais podem se revelar inócuas — afinal, uma empresa brasileira pode captar recursos registrando sua oferta na Austrália, na Suíça ou em qualquer país que autorize esse tipo de operação, escapando da vigilância da CVM.

Pela tangente

Para evitar complicações, a startup brasileira Original My encontrou uma saída criativa para se capitalizar via ICOs sem correr riscos de incomodar a autoridade reguladora brasileira. A empresa, especializada em assinaturas digitais, certificação e registro de documentos em blockchain, emitirá moedas que, na prática, dão direito ao uso de seus serviços com descontos que chegam até a 85% do preço de tabela. Em vez de garantir dividendos ou direito a voto, o que configuraria emissão de valor mobiliário, os itens virtuais servirão apenas para pagamento dos serviços da Original My. “Estamos conversando com os reguladores para garantir que tudo ocorra dentro das regras, mas basicamente nosso ICO funcionará como uma espécie de adiantamento de vendas”, afirma o CEO da empresa, Osório Júnior. De acordo com a documentação publicada pela startup, o objetivo do ICO é a captação de 2 milhões de reais, aporte que será usado em expansão comercial e no desenvolvimento da plataforma de registros da companhia, que já opera há dois anos. Se tudo correr dentro do prazo, a Original My será a primeira empresa nacional a captar no Brasil usando a tecnologia de moedas virtuais.

“Quando ouço alguém dizer que colocará dinheiro em ICOs, a primeira pergunta que faço é se o investidor leu com atenção o whitepaper oferecido pelo emissor”, afirma a advogada Chang, referindo-se à documentação que detalha as características daquele projeto, seu modelo de negócios e as regras de transações de seus ativos. Para a especialista, os riscos vão além de fraudes ou da inconsistência dos modelos de negócios apresentados — podem também envolver questões relacionadas à plataforma tecnológica. “Sabemos que a blockchain é uma tecnologia altamente segura. Mas se sua customização para uma empresa específica for malfeita, brechas de segurança podem ficar abertas, permitindo a um hacker roubar moedas. É como se alguém se apropriasse das ações de uma companhia que um investidor detém”, alerta.

Para o fundador da plataforma de equity crowdfunding Broota, Frederico Rizzo, de fato há uma lista de cuidados a serem tomados antes do investimento — como confirmar se a empresa tem ativos reais que lastreiem a emissão, se o modelo de negócios já foi testado e se a tecnologia por trás da moeda oferecida é segura (de forma a impedir a ação de hackers). “Há muitas empresas que fazem ofertas com publicidade agressiva, usando celebridades para promover suas moedas. Penso que ninguém deve investir na empolgação, só porque ICO é moderno ou inovador. É preciso refletir sobre os fundamentos econômicos da oferta”, pondera Rizzo. Apesar das ressalvas, ele diz que o modelo tem muitas características positivas. “Uma das vantagens é a desburocratização do mercado de investimentos, o que permite que boas ideias saiam do papel financiadas por pessoas físicas e pequenos investidores que acreditam nelas. O ICO também permite a empreendedores captar recursos com menor nível de esforço e sem precisar expor detalhes de seu modelo de negócios a pretensos investidores”, diz Rizzo.

Como escreveu Helen Keller, segurança total é apenas uma superstição, verdade ainda mais cristalina no ambiente de startups, em que investidores apostam em dezenas de empresas iniciantes esperando que o sucesso de poucas delas pague as perdas geradas nas outras e ainda deixe dividendos em caixa. No incipiente mercado das moedas virtuais, porém, os riscos são tão grandes que devem ser tomados com farta moderação, ainda que a ascensão das bitcoins e o uso cada vez mais diversificado da tecnologia blockchain apontem para a consolidação desse inovador mecanismo de captação.

Você sabia?

– Blockchain é uma tecnologia aberta, livre para o uso de qualquer pessoa ou desenvolvedor, considerada altamente segura. Um item criado com a tecnologia blockchain deixa registros em múltiplos computadores e, por isso, é praticamente imune a fraudes. É considerada mais barata e segura que outras formas de organização de transações financeiras, características que devem transformá-la em uma tecnologia dominante no futuro. Blockchain é a base tecnológica da criação das moedas virtuais.

– Ethereum é uma plataforma capaz de executar contratos inteligentes (em que se “assina” um contrato virtualmente, por meio de uma senha) e aplicações descentralizadas usando a tecnologia blockchain. É considerado um serviço sem possibilidade de censura, fraude ou interferência de terceiros. Acredita-se que o modelo poderá, no futuro, substituir os contratos de papel assinados entre empresas e pessoas, por ser mais simples, econômico e imune a falsificações.


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