Monopólio ameaçado
As possibilidades de a BM&FBovespa ganhar uma rival se tornam cada vez mais reais, assim como as chances de ela ter de abrir seus portões para a concorrente entrar

, Monopólio ameaçado, Capital AbertoDurante um tempo, as bolsas de valores uniram–se para ganhar musculatura. A Nyse, de Nova York, arranjou uma parceira europeia, a Euronext. No Brasil, a BM&F e a Bovespa juntaram as operações. Agora, a estratégia de concentração de mercado começa a enfrentar limitações. Enquanto europeus embargam fusões de grandes grupos, brasileiros assistem a empresários anunciarem planos de quebrar o monopólio da BM&FBovespa no País. Depois de a Bats, operadora norte–americana de bolsas de valores e plataformas eletrônicas de negociação, e a Claritas, gestora de recursos paulistana, divulgarem um acordo, um ano atrás, para o desenvolvimento de um pregão alternativo no Brasil, foi a vez de a Direct Edge, também dos Estados Unidos, apresentar um projeto audacioso: erguer uma bolsa de valores no Rio até o fim de 2012.

A ameaça mais óbvia para a frustração desses intentos é a existência de uma única central de liquidação e compensação de ações no Brasil, sob a propriedade privada da BM&FBovespa: a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC). Nesse cenário, um novo player que venha a atuar no segmento teria, em princípio, duas possibilidades: criar uma central de liquidação própria ou usar os serviços da CBLC. A BM&FBovespa já deixou claro que se opõe à ideia de abrir sua clearing para a concorrência. Quando consultado sobre os planos recém–anunciados pela Direct Edge, Edemir Pinto, presidente da Bolsa, escreveu em nota à CAPITAL ABERTO: “Estamos fazendo grandes mudanças tecnológicas até o final de 2012; então, se alguém vem a mim e pede para usar os nossos serviços, não vou ser capaz de ajudar. Eles terão que construir seu próprio sistema. (…) Não vou priorizar fazer meus serviços disponíveis a terceiros.” Todavia, se antes parecia claro que a Bolsa poderia fechar a porta na cara de quem viesse a solicitar seus serviços de clearing, agora ganha força a hipótese contrária: a de que a BM&FBovespa terá de se envolver bem mais do que gostaria com uma possível rival.

À primeira vista, pode parecer estapafúrdia a ideia de a dona do maior pregão da América Latina ceder sua estrutura a competidores. Para a Direct Edge, contudo, essa hipótese é, sim, plausível. Anthony Barchetto, diretor de estratégia da terceira maior operadora de bolsas de valores dos Estados Unidos, disse em entrevista à CAPITAL ABERTO que espera, inclusive, usar o sistema da Bolsa sem pagar muito caro por isso. A Bats preferiu não falar das suas intenções no País, alegando estar em período de silêncio. De acordo com reportagem publicada no Financial Times em 16 de janeiro, a empresa ainda considera a implantação de uma plataforma de negociação em território verde–amarelo. A gestora Claritas disse que não comenta o assunto. Mas, quando apresentou sua proposta pela primeira vez, o plano era criar uma câmara de compensação própria.

PONTO CRUCIAL — O serviço de clearing é considerado elemento–chave para a viabilidade comercial de uma bolsa de valores. Tanto que ele foi um dos itens que estragaram o casamento mais esperado dos últimos tempos nessa área: o da Nyse Euronext, controladora de várias bolsas norte–americanas e europeias, com a Deutsche Börse, da Alemanha. Nos Estados Unidos, não houve problema. A fusão foi aprovada por todas as instituições envolvidas. Porém, uma negativa em alto e bom som veio da divisão de competição da Comissão Europeia. Em nota oficial divulgada em agosto de 2011, o vice–presidente responsável pela área, Joaquín Almunia, chamou atenção para o fato de que as duas maiores operadoras de derivativos da Europa iriam se juntar, causando uma concentração prejudicial à eficiência do mercado. Além do eventual aumento de preços que a união poderia trazer, Almunia demonstrou preocupação com a queda dos investimentos em inovação dos sistemas de negociação e de clearing, uma vez que os dois principais competidores passariam a trabalhar juntos e teriam menos incentivos para prestar um serviço melhor. Se a fusão saísse, a Eurex Clearing, câmara de compensação de derivativos pertencente à Deutsche Börse e à suíça SIX Swiss Exchange, iria unir forças com a Nyse Liffe Clearing.

Nas tratativas com a União Europeia, as bolsas propuseram se desfazer das sobreposições em derivativos — a Deutsche venderia suas operações nos países em que a Nyse Euronext atua e vice–versa — e também permitir que competidores tivessem acesso aos serviços da Eurex Clearing. A União Europeia, entretanto, achou que a proposta não compensava o risco de concentração de poder econômico nas mãos de apenas uma bolsa de valores na Europa.

É uma infração à ordem econômica impedir o acesso de um concorrente às instalações essenciais

QUESTÕES CONCORRENCIAIS — No que depender dos entendimentos históricos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), é possível que a BM&FBovespa tenha de oferecer os serviços da CBLC à concorrência, assim como se propuseram a fazer Nyse e Deutsche Börse. Juridicamente, essa hipótese pode ser enquadrada na doutrina de “essential facilities” (em uma tradução livre, instalações essenciais), surgida nos Estados Unidos e também aplicada no direito concorrencial brasileiro. Ela discorre sobre situações em que um monopolista usa o controle de um gargalo de mercado para impedir a competição. Nesses casos, é comum que o detentor desse bem ou serviço seja forçado a fornecê–lo a um competidor.

, Monopólio ameaçado, Capital AbertoNo Brasil, o artigo 21 da Lei 8.884 deixa claro que é uma infração à ordem econômica impedir o acesso de um concorrente às fontes de insumo, matérias–primas, equipamentos ou tecnologia, e aos canais de distribuição. Um exemplo disso é uma rede de distribuição de energia elétrica ou de telefonia compartilhada por diferentes companhias. Se esse compartilhamento não existisse, a ligação entre linhas telefônicas de operadoras diferentes seria dificultada ou até inviabilizada, obrigando os consumidores a terem uma linha de cada operadora ou a contratar o serviço de apenas uma empresa. “Normalmente, a autoridade concorrencial determina que serviços essenciais e que não têm necessidade de serem duplicados sejam compartilhados por duas ou mais empresas, mediante o pagamento de uma taxa para a responsável por aquele bem”, explica a advogada Evy Cinthia Marques, do escritório Felsberg e Associados. De acordo com esse entendimento, a prestação do serviço de clearing a um concorrente poderia se tornar compulsória, uma vez que a estrutura já existe e não faria sentido — seja pelo custo ou pelas dificuldades operacionais — criar outra.

Em 2008, quando a BM&F, plataforma de negociação de mercadorias e contratos futuros; e a Bovespa, de negociação de ações, resolveram se unir, o Cade não impôs barreiras. O argumento, na época, foi que as duas bolsas não atuavam no mesmo segmento e, portanto, não haveria concentração do mercado. Além disso, a autoridade antitruste entendeu que o segmento de bolsas era global e, por isso, as empresas poderiam se listar em outros países, garantindo a competição entre as praças de negociação.

Essa visão pode enfraquecer a tese da “essencialidade” do serviço de clearing. Isso porque, num mercado internacionalizado, um novo player de bolsa de valores poderia supostamente contratar uma câmara de compensação e liquidação em qualquer canto do planeta. Um ponto a ser analisado, porém, é o custo da contratação de uma clearing externa. O prestador desse serviço teria de se adaptar às sofisticadas regras brasileiras de compensação e liquidação, como a exigência de identificação do beneficiário final, que poderiam encarecer brutalmente a operação — novamente, um gargalo de mercado. Questionado sobre o assunto, o Cade evitou se pronunciar. A autoridade afirmou que prefere esperar a manifestação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a respeito.

A CVM contratou a consultoria britânica Oxera Consulting para avaliar as condições de competição do mercado de capitais brasileiro. Um dos objetos de análise é a Instrução 461, de 2007, que regulamenta os mercados de valores mobiliários. Ali estão as principais regras que uma bolsa de valores deve seguir para atuar no Brasil. De acordo com Otávio Yazbek, diretor da autarquia, os ingleses estudam se algum dos pontos do documento pode trazer obstáculos à consolidação de um novo player. “Estamos dispostos a discutir e modificar artigos que venham a criar dificuldades”, diz.

Apesar da boa vontade em estimular a concorrência, o diretor deixa claro que há questões sobre as quais a autarquia não vai transigir. Uma das principais é justamente o reconhecimento do beneficiário final em cada transação. No Brasil, os agentes que lançam a ordem original de compra ou venda são nominalmente identificados pela Bolsa, e esse é um predicado importante do sistema brasileiro na comparação com outros mercados. Nos Estados Unidos, por exemplo, não funciona assim. No rol de negociações, consta apenas a corretora que intermediou a transação. “Reconhecer o beneficiário final pode trazer uma dificuldade técnica, mas não vamos abrir mão disso. Faz parte de nosso arcabouço regulatório”, observa Yazbek.

Se a norma 461 coloca algumas pedras no sapato, ela também contém um trunfo para os interessados em competir com a BM&FBovespa. O artigo 18 deixa espaço aberto para a interpretação de que o fornecimento do serviço de clearing para concorrentes já seria obrigatório. Um dos trechos do texto cita que as bolsas de valores atuantes no Brasil devem “estabelecer entre si mecanismos e regras que viabilizem a compensação e a liquidação de operações cursadas fora de seus ambientes e sistemas de negociação”.

Segundo Yazbek, a intenção da CVM ao criar a regulamentação não era obrigar a BM&FBovespa a ceder a central depositária, mas sim garantir a troca de informações necessárias entre as plataformas para que a transferência de valores mobiliários de uma para outra pudesse ocorrer. No entanto, como o que vale é o que está escrito, o verbo “viabilizar” pode ser interpretado de forma mais ampla, conforme alguns advogados ouvidos pela reportagem. “Está claro no artigo que as operações de compensação e liquidação não podem ser negadas. As bolsas têm de dar um jeito de fazê–las funcionar”, afirma Eduardo Asperti, do Felsberg e Associados.

Na opinião de Gabriel Nogueira Dias, sócio do escritório Magalhães, Nery e Dias, o assunto sobre a concorrência das bolsas de valores no Brasil tende a ser resolvido entre as partes. Ele afirma que, normalmente, as empresas não querem sofrer o incômodo de um processo no Cade e, por essa razão, sentam para conversar com a concorrência antes de chegar a esse ponto. “É provável que a BM&FBovespa faça isso”, avalia.

PRECEDENTE EXTERNO — Se a Bolsa vier a prestar o serviço de clearing para um concorrente, outra questão a ser discutida será o preço cobrado. Compensação e liquidação são tarefas arriscadas. A CBLC assume o risco de fazer uma negociação ser realizada, mesmo que depois o comprador do ativo se revele incapaz de pagar o que comprou. Tudo indica que seria preciso cobrar caro, mas não é o que se vê na Austrália, por exemplo. Em 2011, a Australian Stock Exchange (ASX) enfrentou a chegada do grupo Chi–X Global, pertencente a um consórcio formado por bancos, como seu concorrente.

Da mesma forma que a BM&FBovespa, a ASX é dona da clearing. As duas operadoras firmaram um acordo no qual a Chi–X se comprometeu a desembolsar 10 mil dólares australianos (em torno de R$ 18,5 mil) para ingressar no sistema. O grupo assinou também um contrato de 60 meses, aceitando pagar 275 mil dólares australianos (R$ 506 mil) anuais pelo serviço.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a ASX informou à CAPITAL ABERTO que a taxa anual foi definida com base em um valor que “recupera parcialmente os custos da ASX em desenvolver e operar o serviço”. Declarou também que, se três ou mais operadores de mercado começarem a fazer uso dele, vai reduzir o valor para cada um “de acordo com os seus objetivos de recuperação de custos”.

A intenção da CVM não era obrigar a BM&FBovespa a ceder a central depositária, mas sim garantir a troca de informações

CONCORRÊNCIA PARA O BEM? — A ideia de monopólio e concentração econômica não é simpática aos mais liberais, contudo, quando se trata de bolsa de valores, há uma questão delicada envolvida. Modelos plurais, em que várias bolsas e plataformas de negociação atuam concomitantemente, mostraram–se arriscados nos últimos anos. A multiplicidade de praças de negociação reduz o poder de fiscalização do regulador e abre espaço para pontos cegos, nos quais as transações podem vir a ocorrer de forma pouco transparente.

O secretário geral da World Federation of Exchanges (WFE), Peter Clifford, considera que, em países nos quais há maior concentração em uma ou em poucas bolsas — como o Brasil —, há mais poder de supervisão e segurança nas negociações. Nesses locais, a preocupação com a robustez de uma estrutura de clearing para garantir a estabilidade de mercados complexos, como o de derivativos, por exemplo, é mais presente. “Nos últimos anos, ficou mais comum a visão de que uma bolsa faz parte do interesse nacional e é importante para manter a estabilidade”, explica. Conciliar a abertura do mercado com a preservação da segurança é, pelo visto, o desafio dos reguladores.

Conteúdo extra

Clique e assista a entrevista em vídeo com o advogado Gabriel Nogueira Dias sobre concorrência entre bolsas


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