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Campo aberto
Flexibilidade da lei permite a companhias sem ligação com o agronegócio capitalizarem-se com CRAs
Ilustração: Grau 180.com.

Ilustração: Grau 180.com.

É grande a chance de um morador de Mogi das Cruzes, cidade da região metropolitana de São Paulo, subir todos os dias em um ônibus pertencente à JSL para cumprir suas tarefas cotidianas. A empresa de logística opera uma boa fatia da frota de transporte público do município e também de cidades vizinhas. Como parte de uma estratégia de financiamento, em outubro passado obteve R$ 150 milhões ao lançar uma oferta de certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs). Muitos estranharam o fato de uma empresa de logística, dona de ônibus urbanos e prestadora de serviços tão diversos quanto os de coleta de lixo e de escolta de transporte, aparentemente muito longe de ter “o pé na roça”, captar recursos usando um instrumento que remete ao campo até no nome. Pois é exatamente essa flexibilidade, permitida pela legislação criadora do CRA (de número 11.076/04), que explica o atual boom do mercado de certificados de recebíveis do agronegócio. A outra razão, não menos importante, é a crise econômica. Com os bancos apertando as torneiras do crédito, as empresas são impelidas a buscar alternativas no mercado de capitais.

Em 2015, grandes empresas lançaram CRAs. Essas operações fizeram o volume de certificados de recebíveis do agronegócio emitidos pela Instrução 400 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) atingir R$ 3,7 bilhões de janeiro a outubro. O valor é superior ao registrado para os certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) no mesmo período, no total de R$ 3 bilhões. É verdade que o estoque de CRIs ainda é muito superior (ao final de setembro de 2015, a Cetip registrava R$ 59 bilhões em certificados imobiliários e R$ 4,7 bilhões em CRAs), mas a expectativa é de que a chegada de grandes companhias ao mercado de certificados recebíveis do agronegócio leve o título a corresponder mais adequadamente à enorme importância da agricultura e pecuária para a economia do País. “O campo representa cerca de 30% do PIB nacional. A construção civil corresponde a 5%. Por analogia, o estoque de CRAs deveria representar pelo menos seis vezes o estoque de CRIs”, opina Bruno Cerqueira, sócio do PMKA Advogados.

Onde está a ponte?

Entre muitas outras atividades, a JSL presta serviços de logística de transporte e de carregamento de madeira para clientes da área de celulose. Um deles é a Celulose Nipo-brasileira (Cenibra) — e foi exatamente um contrato de prestação de serviços de transporte de toras de eucalipto firmado com a empresa que permitiu à JSL obter recursos por meio do CRA. De acordo com Cerqueira, a estruturação do CRA depende da identificação de uma “ponte” que relacione a companhia cedente dos recebíveis a algum ponto da cadeia do agronegócio. “A lei permite o uso do CRA por empresas que consigam combinar quatro verbos com quatro objetos: produzir, comercializar, beneficiar ou industrializar produtos, insumos, máquinas ou implementos usados na produção agropecuária”, explica o advogado. “Essa redação abre espaço para numerosas possibilidades. A maior parte das empresas com ações no Ibovespa [hoje são 60] poderia montar um CRA, mesmo que aparentemente nada tenham a ver com o agronegócio”, acrescenta.

Os CRAs da JSL estão lastreados em certificados de direitos creditórios do agronegócio (CDCAs), oriundos do contrato de prestação de serviços assinado com a Cenibra e repassados à securitizadora Ecoagro, emissora dos papéis. A possibilidade de o CRA ser concebido com vários tipos de lastros, aliás, é outra característica do título que atrai grandes empresas. Assim, notas de crédito à exportação (NCEs) ancoram as operações da Suzano e de Fibria (cada uma de R$ 675 milhões), enquanto a BRF optou por lastrear seu CRA de R$ 1 bilhão em contratos de fornecimento. A escolha do índice de referência para o pagamento dos investidores é igualmente um campo aberto — a maior parte das operações é atrelada ao CDI acrescido de uma taxa de juros, mas é possível também montar CRAs que pagam a variação de índices de preços, por exemplo.

“Cada CRA é um CRA. O papel é estruturado de acordo com as necessidades de cada empresa, de maneira quase artesanal”, afirma o sócio executivo do grupo Ecoagro, Moacir Ferreira Teixeira. Na opinião dele, o fato de a CVM não ter criado uma norma específica para os CRAs — algo que o mercado por vezes pleiteou — é positivo. “Há mais ou menos um ano ouvi um integrante da CVM dizer que a marca do mercado de capitais é a criatividade e que uma interferência da autarquia além da observação do andamento das operações poderia engessar os CRAs. Hoje, acho que ele acertou na mosca”, diz Teixeira.

Mundo novo

Ao montar o plano de funding para um projeto bilionário de ampliação da capacidade produtiva de sua unidade de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul, a Fibria, uma das maiores produtoras nacionais de celulose, viu no CRA, com sua atraente flexibilidade, uma boa oportunidade de diversificação de fontes de financiamento. Acostumada a fechar operações diretamente com bancos ou com poucos credores com razoável rapidez, a Fibria decidiu, num ano complicado para a economia, encarar o desafio de captar recursos por meio de um instrumento bastante novo para a empresa.

A companhia queria, além de diversificar o perfil das dívidas, rechear o caixa pagando menos. Para tanto, os executivos da Fibria se dispuseram a enfrentar intermináveis horas de reunião entre os muitos agentes envolvidos na estruturação de um CRA — representantes de securitizadora, agentes custodiante e fiduciário, escritórios de advocacia, bancos, entre outros. Concluído o processo, um último teste de fogo. O bookbuilding ficou para o fim de setembro, período tenso no mercado brasileiro, por causa do agravamento da crise política, com negociações em torno de reforma ministerial e do retorno da CPMF. “Mas, no fim, deu tudo certo. Os investidores gostaram da operação, e o CRA saiu com a menor taxa registrada no mercado para operações de seis anos, de 99% do CDI”, relata o gerente de tesouraria da Fibria, David Alegre.

O excelente rating da empresa e a estrutura robusta do papel explicam a procura maior que a oferta, mesmo num período turbulento. “A emissão foi de R$ 675 milhões e tivemos demanda para R$ 853 milhões”, ressalta Alegre. Cerca de 2 mil pessoas físicas compraram o papel, com tíquete médio de R$ 300 mil. Outra produtora de celulose e papel, a Suzano, ficou satisfeita com a experiência de emitir CRAs. Segundo o gerente executivo de operações estruturadas da companhia, Guilherme Hirata, a captação foi feita a uma taxa “muito boa”: 101% do CDI, o limite estabelecido pela empresa para uma operação no mercado de capitais em 2015.

Decisão sobre CRA em dólar fica para 2016

Facilitar o acesso de investidores estrangeiros aos ativos do agronegócio brasileiro é a ideia por trás do pleito do mercado para a criação do chamado “CRA em dólar”. A inovação depende da inclusão, na Lei 11.076/04, de um artigo que autorize a emissão do título com cláusula de correção cambial. O objeto dessa correção seria a remuneração do investidor — ela poderia estar atrelada à oscilação do dólar, por exemplo, mais um índice fixo. Os lastros, segundo a proposta, seriam as Cédulas de Produto Rural (CPRs) físicas ou financeiras, representativas de produtos rurais negociados ou referenciados em bolsas de valores e cotados em moeda estrangeira. “As grandes empresas do setor pensam em dólar. Assim, faz todo sentido dar a elas a possibilidade de incluir essa referência na estrutura de financiamento via mercado de capitais”, avalia Bruno Cerqueira, sócio do PMKA Advogados. Do ponto de vista do estrangeiro, esse novo CRA eliminaria o risco cambial da operação.

A permissão quase saiu do papel no fim do último mês de outubro, depois de um acerto entre o Banco Central e o Ministério da Agricultura (e com a anuência da Fazenda), mas os players começam o ano ainda com a expectativa da aprovação do CRA em dólar. A decisão não foi adiante por uma questão burocrática. A intenção do Executivo era inserir a novidade na Medida Provisória 695, editada para permitir a compra de participação em instituições financeiras pela Caixa Econômica Federal e pelo Banco do Brasil. Em meados de outubro, entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Congresso não poderia mais agregar às MPs as chamadas “emendas jabuti”, aquelas cujo assunto não está relacionado ao tema principal do texto — exatamente a posição do CRA na MP 695. Com a reviravolta, o mercado espera que o CRA em dólar seja autorizado neste ano. No entanto, até o fechamento desta edição, em dezembro, uma MP específica para o assunto não havia sido apresentada.

De acordo com Cerqueira, do PMKA, para o CRA em dólar atrair um volume significativo de recursos de estrangeiros, a autorização do governo precisa vir acompanhada da isenção fiscal. O benefício hoje é garantido apenas aos investidores nacionais de CRA. “Mas podemos esquecer a isenção por enquanto”, antecipa o sócio-executivo do grupo Ecoagro, Moacir Teixeira, que acompanha de perto as negociações entre Legislativo (principalmente por meio da Frente Parlamentar do Agronegócio) e Executivo em torno do CRA em moeda estrangeira. Diante da dificuldade do governo em ajustar as contas, não é de se estranhar que a União esteja relutante em abrir mão do imposto. “Mas é melhor criar o instrumento. Depois, aos poucos, vamos construir o resto”, opina Teixeira. (R.A.)

Vantagem fiscal

O sucesso do CRA também pode ser atribuído a uma mudança no comportamento do investidor. De acordo com Tomaz de Gouvêa, head de mercado de capitais da XP Investimentos, o interesse das pessoas físicas por produtos como o CRA faz parte de um contexto mais amplo, de entendimento do mercado de capitais como fonte de diversificação. “Esse processo se iniciou há uns três anos, com as debêntures incentivadas de infraestrutura. Elas começaram a mostrar ao investidor que há ativos com bons ratings no segmento de crédito privado”, observa.

Existe, no entanto, um detalhe fundamental que torna os CRAs sedutores — e sem ele, certamente, não haveria tanta demanda pelo título: a isenção fiscal. Investimentos em CRIs, CRAs e debêntures incentivadas de infraestrutura, assim como em emissões bancárias de Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs), não pagam Imposto de Renda (IR). Essa é uma vantagem que incentiva o aplicador a assumir um pouco mais de risco e comprar esses papéis em vez de adquirir títulos públicos, que são tributados. “Os investidores claramente percebem as vantagens da isenção”, comenta Gouvêa.

Nesse sentido, a publicação da instrução normativa (IN 1585) pela Receita Federal, no último mês de agosto, veio para ajudar. A norma esclareceu que a isenção de IR vale para o rendimento auferido com a aquisição do papel e também para eventual ganho de capital obtido na venda do ativo no mercado secundário. “É uma ótima notícia, que deve impulsionar o mercado secundário de CRAs”, diz Gouvêa. Ele cita dados da Cetip para ilustrar a ampliação do mercado secundário de certificados de recebíveis do agronegócio nos últimos anos: foram dez negócios em 2009, volume que em 2015, até 19 de outubro, atingia pouco mais de 4 mil. Como o CRA representa uma aposta de longo prazo, é fundamental os investidores terem o conforto de sair do papel antes do vencimento se precisarem.

Inovação e credibilidade

À parte a expansão do mercado secundário, um desafio importante para o segmento de CRA é a criação de fundos específicos que invistam no título, nos moldes do que já ocorre com ativos imobiliários (por meio dos FIIs) e com as debêntures incentivadas de infraestrutura. Essas carteiras para o agronegócio — hoje inexistentes — levariam o benefício da isenção fiscal do CRA a um número muito maior de investidores. Não há, na lei, nada que impeça a formação desses fundos, mas faltavam emissões robustas que permitissem a criação de um veículo específico para o produto.

Emissores e distribuidores também pensam em outras inovações para garantir a manutenção do crescimento do mercado, como a criação do papel com lastro em dólar (leia mais no quadro) e de CRAs relacionados a reestruturação de dívidas. Uma das ideias envolve a emissão de CRAs lastreados em recebíveis de empresas em recuperação judicial. Do lado da companhia, a emissão seria benéfica por permitir que recebesse adiantado pelos recebíveis cedidos. Já o investidor teria a possibilidade de comprar um papel mais arriscado, mas com retorno mais atraente. Segundo Teixeira, da Ecoagro, em breve, o CRA-recuperação judicial será apresentado aos investidores.

A flexibilidade permitida pelo CRA é um convite para que um número variado de ofertas chegue ao mercado. Entretanto, é preciso cautela. “Temos de trabalhar para montar operações redondas, para o tipo certo de investidor, afastando a possibilidade de alguma operação ‘queimar o filme’ do mercado”, ressalta Alexei Bonamin, sócio do Tozzini Freire Advogados. A recomendação é apropriada, principalmente diante do histórico do setor — anos atrás, esquemas de pirâmide para engorda de bois e criação de avestruzes afastaram os investidores do agronegócio. Felizmente esses tempos passaram, e a chegada de pesos pesados ao mercado de CRAs mostra que a promissora relação financeira entre o campo e a cidade deve perdurar.

 

 

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