Xeque-mate na disrupção de gigantes da economia compartilhada
Pandemia atingiu em cheio os negócios de empresas como Uber, Airbnb e WeWork
Xeque-mate na disrupção de gigantes da economia compartilhada

Imagem: macrovector/ Freepik

Em fevereiro deste ano, a Uber vivia seu melhor momento no mercado de capitais desde sua oferta inicial de ações, em 11 de abril de 2019. Um mês antes de o novo coronavírus ganhar o status de pandêmico, a ação da ex-unicórnio deu um salto de 9,5% em um único dia, maior alta desde a estreia na bolsaO otimismo dos investidores foi significativo, considerando que logo após estrear na bolsa a Uber ganhou o troféu de empresa que mais perdeu valor considerando todos os IPOs americanos desde 1975. No segundo mês deste ano, o mercado se animava com os bons resultados do quarto trimestre de 2019, com o fato de a empresa ter anunciado que conseguiria operar com rentabilidade ainda em 2020 (antes do previsto) e com os planos agressivos de cortes de despesas. Os mais otimistas chegavam até a imaginar que a Uber deixaria de lado a controversa estratégia de crescimento a qualquer custo tão cara aos unicórnios da costa oeste americana — num roteiro comum entre seus pares, revolucionou um mercado (no caso, o de transporte individual), passou como um trator sobre as empresas já há muito estabelecidas, causou furor entre os reguladores, estremeceu relações trabalhistas, e tudo isso sem gerar um centavo de lucro desde a fundação (em 2009)  

Mas então veio o plot twist representado pela pandemia. O imperativo do isolamento social mundo afora atingiu em cheio as operações da empresa de corridas por aplicativo. No primeiro trimestre de 2020, a Uber registrou prejuízo de 2,94 bilhões de dólares, um valor estratosférico até mesmo para uma gigante acostumada a perder dinheiro. A esperança, por enquanto, se sustenta no fio da Uber Eats, segmento de delivery que respondeu por 53% do avanço das receitas de janeiro a março, enquanto o negócio tradicional foi responsável por apenas 2% da alta. O faturamento aumentou 14% no primeiro trimestre em relação a igual período do ano passado, para 3,5 bilhões de dólares.  

Por ironia, o delivery era considerado uma pedra no sapato da Uber antes da pandemia. Alguns investidores e analistas, como Eric Ross, da consultoria Cascend Securities, sugeriam que o mercado de entregas de refeições era acirrado demais para a entrada de um competidor tardio. Em fevereiro, segundo a agência de notícias Reuters, Ross afirmou preferir a ação da concorrente Lyft, “porque a empresa não investe em caros projetos paralelos”. Alguns meses depois, a Uber Eats já não pode mais ser considerada uma opção secundária.  

Reformulação de estratégias 

“Não sabemos quando vai chegar a vacina ou mesmo se as empresas vão sobreviver até lá. Como resposta, as companhias devem se reformular”, afirma Miguel Duarte, líder da consultoria EY para o mercado de bens de consumo e varejo. Na avaliação dele, as mais recentes perdas da Uber estão associadas ao isolamento social, e não a seu modelo de negócios. “A gênese da economia compartilhada está relacionada à descentralização de agentes; logo, a essência desses negócios não é afetada pela covid-19Se uma plataforma de jogos online fosse ‘uberizada’, por exemplo, seu faturamento não seria atingido pelo novo coronavírus porque ela consegue operar normalmente em tempos de quarentena”, explica. A operação da Uber Eats representaria, nessa dinâmica, uma maneira de manter o fundamento do negócio contornando a barreira do distanciamento social.  

A Uber não está sozinha nesse papel. As medidas de isolamento exigidas pela pandemia foram um golpe inesperado também para o Airbnb, unicórnio dsegmento de hospedagem que foi pego no contrapé da preparação para a abertura de capitalinicialmente programada para 31 de março passado. Talvez o efeito seja ainda até mais dramático nesse caso, já que o turismo encabeça a lista de setores arruinados pela pandemia e uma empresa de aluguel por temporada tem poucas alternativas de diversificação se os clientes já não circulam — diferentemente da Uber, que ainda conseguiu apelar para o delivery. A empresa cortou pela metade a estimativa de receita para 2020 e, para tentar conter os estragos, anunciou em maio a captação de 2 bilhões de dólares e implementou uma política severa de corte de custos, incluindo a demissão de 25% dos funcionários  

Assim como a Uber, o Airbnb decidiu revisar sua estratégia agressiva de crescimento: abandonou os investimentos em diversificação de negócios (em hotéis, opções de transporte e viagens de luxo) para “voltar às raízes”. Desde o início da pandemia o Airbnb passou a se concentrar na oferta de destinos mais próximos aos usuários, na extensão das temporadas e nos preços mais acessíveisA empresa informa que, no Brasil, a quantidade de reservas para períodos mais longos (acima de 28 dias) foi 24% maior em março deste ano do que em igual mês do ano passadoTambém não faltaram descontos para locações de pelo menos um mês — tática concentrada na demanda por moradias mais espaçosas para o período da pandemia, que aumentou diante do maior número de pessoas em home office.  

Contrastando com os números trágicos da covid-19, esse aquecimento de demanda, mesmo que pontual, sugere uma recuperação mais rápida do que indicavam as primeiras percepções. A ponto de o CEO da empresa, Brian Cheskyvoltar a tratar da abertura de capital. Embora tenha se esquivado de apresentar uma data, em entrevista à Bloomberg Television em 22 de junho Chesky disse que o IPO não está descartado. “Estamos nos recuperando mais rápido do que pensávamos, mas também não quero ter falsas esperanças. O mercado parece estar se melhorando, mas pode haver uma recaída.  

A exemplo de um sem-número de setores ávidos pelo retorno às atividades, o Airbnb criou um protocolo para higienização das unidades integrantes de sua plataforma, válido para suas operações em 11 paísesincluindo o Brasil. O documento foi redigido com orientação de autoridades sanitárias e envolve diretrizes para o uso de equipamentos de proteção individual para os anfitriões e seus colaboradores e um intervalo mínimo de 24 horas entre reservas.  

Alterações pós-pandemia 

A revoluçãorelâmpago nos formatos de trabalho — simbolizada pela adesão em massa, e no susto, ao home office — atingiu o cerne do negócio de outro unicórnio americano, a WeWork. A mudança repentina provocada pela pandemia foi tão bem-recebida em alguns segmentos que empresas já chegaram ao ponto de autorizar seus funcionários a trabalhar “para sempre” de forma remota, caso do Twitter. No Brasil, oito a cada dez companhias abertas já anunciaram que pretendem rever suas políticas de home office, seja para instaurar novas diretrizes (49%) ou para aprimorar as já existentes (34%), segundo pesquisa da KPMG. Além disso, é de se esperar que muitos profissionais autônomos antes usuários de espaços compartilhados prefiram, pelo menos por algum tempo, continuar na segurança de suas próprias casas.  

“A WeWork fazia muito sentido quando as pessoas precisavam de um escritório para trabalhar. Com o sucesso do home office, haverá cada vez menos demanda por espaços empresariais de forma geral”, observa Duarte. Vale lembrar que a WeWork já chegou combalida aos tempos de pandemia. Em 2019, uma série de problemas financeiros provocou a tentativa fracassada de abertura de capital e a saída de seu CEO e fundador, Adam NeumannA crise desencadeada pelo novo coronavírus não só intensificou as dificuldades como colocou em xeque o próprio modelo do negócio.  

A flexibilidade, tão cara à chamada economia compartilhada e um dos alicerces da WeWork, parece ter se voltado contra ela própria em decorrência da pandemiaA empresa tem contratos de arrendamento de edifícios que preveem o “bloqueio” dessas áreas por, em média, 15 anos. Ocorre que os usuários do serviço da WeWork têm a opção de fazer contratos mensais — ou seja, claramente se configura um descasamento temporal, com evidente prejuízo à arrendatária. A empresa não divulga a quantidade de contratos rescindidos por conta da pandemiamas há episódios ruidosos. Na última semana de maio, a IBM anunciou que pretende desocupar um espaço de 6,5 mil metros quadrados da WeWork em Nova York. No Brasil, WeWork anunciou em maio o fechamento de duas de suas cinco unidades no Rio de Janeiro, restando agora 28 localidades no País, sendo 19 em São Paulo.   

WeWork, entretanto, não se dá por vencida. Em entrevista à revista Exame no início de junho, o diretorgeral da divisão brasileiraLucas Mendes, afirmou que a empresa tem sido procurada para oferecer soluções personalizadas de escritórios conforme as companhias veem a necessidade de reduzir os espaços de locação. Existe a possibilidade de os escritórios compartilhados se tornarem uma boa opção para reuniões.  

Os últimos meses mostraram que quarentena ofuscou o brilho de muitos expoentes da economia compartilhada, ou agravando problemas que já enfrentavam ou ameaçando o próprio core desses negócios antes celebrados por sua natureza disruptiva. Agora eles vão ter que provar, para investidores e usuários, que têm condições de exibir uma outra característica que virou clichê nesses tempos estranhos: resiliência. No fim, disruptivo mesmo foi o novo coronavírus. 


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