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Voto plural longe do consenso
Polêmico e arriscado, sistema de duas classes de ações tem chances de emplacar no Brasil
Voto plural ainda longe do consenso no Brasil

Ilustração: Rodrigo Auada

Não faz muito tempo, a oferta pública inicial de ações (IPO) de uma empresa, para ser bem aceita pelos investidores, precisava assegurar equilíbrio entre poderes político e econômico. Isso significa que o fundador concorda em obedecer ao princípio básico de governança de que cada ação ofertada ao acionista deve dar direito a um voto. Simples assim. O modelo continua predominante, mas a revolução das empresas e ideias disruptivas permitiu que os “zuckerbergs” inovassem também na forma de acessar o mercado de capitais e passassem a oferecer duas classes de ações, ou dual class share — por aqui também conhecido como voto plural ou superON. A estrutura, muito utilizada no mercado americano, cria uma categoria especial de papéis para o fundador, com direitos de voto muito superiores aos que são ofertados aos investidores. No Brasil, a ferramenta é proibida pela Lei das S.As. No entanto, esse é um cenário que agentes do no mercado de capitais e parlamentares já tentam mudar.

No exterior, as ações com superpoderes de voto eram estruturas coadjuvantes até o IPO do Google, em 2004. O buscador emitiu duas classes de ações: uma com direito a um voto por papel, para os investidores, e outra para os fundadores, com direito a dez votos por ação. O objetivo principal era permitir que Larry Page e Serguey Brin mantivessem a soberania de sua visão sobre o negócio sem sofrer pressão dos acionistas por lucros a curto prazo — algo muito diferente do que acontece quando os investidores têm condições de interferir nos rumos da companhia. A justificativa caiu como uma luva para os congêneres do Vale do Silício e o instrumento foi adotado por Facebook, Groupon, LinkedIn, Snap e Trip Advisor. Em quatro dos últimos cinco anos, pelo menos um terço dos IPOs em tecnologia seguiu a dupla classe de ações, de acordo com estudo da Universidade da Flórida.

No Brasil, o debate sobre a adoção da dual class share só aportou com força nos últimos dois anos — não por acaso, período em que a bolsa de valores nacional perdeu os robustos IPOs de Stone, Arcos Dorados (franqueadora do McDonald’s na América Latina) e XP Investimentos para pregões dos Estados Unidos. A ausência do sistema de dupla classe de ações no Brasil foi, a propósito, um dos argumentos citados pelo CEO da XP, Guilherme Benchimol, para optar pela bolsa americana Nasdaq em detrimento da B3.

A resposta da bolsa brasileira foi quase instantânea. Um dia após a abertura de capital da XP, a B3 divulgou um estudo, gestado havia cerca de um ano, que procurava descobrir se a permissão do voto plural seria uma saída para evitar a exportação dos IPOs. A pesquisa concluiu que o principal causador do fenômeno de evasão é o valuation, que costuma ser muito maior fora do País. Em sua estreia nos Estados Unidos, por exemplo, a XP captou 2,25 bilhões de dólares — o nono maior volume considerando as principais bolsas ao redor do mundo e o quarto maior do mercado americano em 2019, segundo a empresa de dados FactSet.

Outro ponto observado no estudo é a quantidade de investidores com apetite para ações de empresas com ativos de tecnologia, que é significativamente menor no Brasil em comparação aos Estados Unidos. Ainda assim, o supervoto tem seu peso. “O voto plural, apesar de não ser protagonista, foi a estrutura utilizada por todas as companhias brasileiras que abriram capital no exterior recentemente”, observa Flavia Mouta, diretora de Emissores da B3. Entre os três entraves verificados pelo estudo, o voto plural é o mais passível de intervenção imediata. E é nisso que a bolsa concentra, agora, seus esforços. “O objetivo é levar essa discussão para o mercado, para, a partir daí, mudar a lei”, informa a diretora.

Novo Mercado

“Uma ação, um voto” é um dogma da governança corporativa, cristalizado, no Brasil, no ano 2000 com a criação do Novo Mercado, segmento especial da bolsa (na ocasião, ainda Bovespa) destinado a empresas que se comprometem com a adoção de padrões elevados de governança. Só podem se listar no Novo Mercado companhias que emitem exclusivamente ações ordinárias, as que garantem o direito de voto. Aquelas que optam por emitir também ações preferenciais — as PNs, sem direito a voto, mas com prioridade na distribuição de dividendos — ficam de fora.

O mecanismo vingou: hoje o Novo Mercado abarca 139 empresas e é o segmento especial de governança com a maior quantidade de companhias da bolsa (também existem na B3 o Nível 1 e o Nível 2, com exigências menos rigorosas). Essa hegemonia, entretanto, pode estar ameaçada. O Projeto de Lei 10.736/18, que prevê a implementação do voto plural no Brasil, coloca na mesa a possibilidade de existência de uma ação ordinária com votos superiores, a chamada superON. A estrutura facilita a configuração de uma situação de governança ainda inédita no Brasil: um papel com o mesmo direito de retornos não entregar os mesmos direitos políticos. O projeto, de autoria do deputado Carlos Bezerra (MDB-MT), ainda precisa passar por avaliações de comissões da Câmara dos Deputados.

A B3 já sinalizou que a nova opção não estaria disponível no Novo Mercado — empresas desse segmento continuariam preservando suas atribuições atuais. Ainda assim, críticos do projeto se mostram apreensivos com a possibilidade de o voto plural criar uma competição ao Novo Mercado, à medida que tem regras de governança menos rígidas. Presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), Fábio Coelho faz parte do grupo dos que acham que o Novo Mercado pode sair enfraquecido caso o projeto seja aprovado como está. “A maneira como o PL está desenhado representa uma deterioração das regras de governança do País. O texto é superficial e não contempla as salvaguardas necessárias”, avalia. O projeto prevê a adoção do mecanismo sunset clause, uma cláusula de caducidade para as ações com supervoto que limita sua duração em até seis anos. Na opinião de Coelho, é necessário ir além. Uma sugestão, considera, seria retirar algumas decisões tomadas em assembleia — como a aprovação de contas, por exemplo — do rol dos poderes do supervoto.

O Brasil tem ainda uma peculiaridade que pode complicar a discussão sobre o voto plural: o histórico de falta de proteção ao investidor. “O Judiciário brasileiro não é conhecido por ter bom enforcement. O voto plural seria, por consequência, um mecanismo novo que entraria em um sistema que já tem vários problemas antigos”, explica Viviane Muller Prado, pesquisadora e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV). Em 2016, Prado conduziu um estudo sobre a compensação a investidores pelas perdas sofridas no mercado de valores mobiliários e não encontrou um único caso em que tivessem sido ressarcidos em dinheiro por falha informacional, por exemplo. Caso o cenário se mantenha, o investidor tem grandes chances de ficar de mãos atadas em situação de abuso de controle por parte de um fundador com superpoderes de voto.

Em outro polo, Maria Helena Santana, ex-presidente da Comissão de Valores de Mobiliários (CVM) e uma das responsáveis pela criação do Novo Mercado, afirma que a proteção ideal ao investidor não está restrita a determinado segmento de governança. “O próprio Novo Mercado não foi capaz de, por si só, prevenir situações de concentração de poder”, destaca. Segundo ela, a alavancagem de controle proposta pelo voto plural já existe na prática — com holdings no exterior que controlam empresas do Novo Mercado, esquemas de pirâmides societárias, ações superpreferenciais e até poison pills que acabam concentrando o controle. “Não faz sentido não adotar a solução mais transparente. Além disso, não são todas as empresas que serão capazes de convencer o mercado de que vale a pena apostar nesse tipo de estrutura”, conclui.


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Lições do exterior

A discussão sobre o voto plural não está pacificada nem mesmo nos Estados Unidos, país modelo para esse tipo de relação. A estrutura de dual class share é constantemente combatida pelo Council of Institutional Investors (CII), agremiação de investidores institucionais que contam com 4 trilhões de dólares em ativos administrados e reúne associados baseados dentro e fora dos EUA — juntos, eles administram cerca de 25 trilhões de dólares. Desde sua criação, nos anos 1980, o CII defende que todas as ações ordinárias de uma companhia aberta devem ter direitos de voto iguais. A entidade chegou a solicitar que as bolsas americanas Nyse e Nasdaq proibissem a listagem de empresas com concentração de poder.

Em 2017, o CII voltou a questionar as bolsas pelo que considerou ser o pior momento do direito de voto no mercado americano: o IPO da Snap, dona da rede social Snapchat, que listou ações sem direito a voto — fato até então inédito nos Estados Unidos. A Snap foi bem avaliada, mas acabou se provando um perigo para os investidores. Desde sua estreia, há três anos, as ações da companhia têm lutado para se manter acima dos 17 dólares precificados no IPO, em parte por atitudes equivocadas do CEO, Evan Spiegel. O executivo insistiu em uma mudança de design do Snapchat mesmo após uma petição de 1,2 milhão de pessoas ter pedido que a companhia reconsiderasse a alteração. O resultado foi a perda de 2% dos usuários ativos diários (algo entre 191 a 188 milhões de contas) em apenas um quadrimestre.

Existe também o temor de que a estrutura do voto plural não funcione a longo prazo. Uma análise feita em 2017 por especialistas da Escola de Direito de Harvard e da Universidade de Tel Aviv verificou que as vantagens da estrutura, como a confiança no talento dos fundadores, tendem a diminuir ao longo do tempo, enquanto os riscos potenciais tendem a aumentar. O caso de Mark Zuckerberg é emblemático. Ele pode ter sido a melhor cabeça para conduzir o Facebook da fundação da empresa ao IPO em 2012, mas sua atuação recente diante dos escândalos de vazamento de dados na plataforma vem sendo alvo de críticas — e nada garante que sua visão será a melhor para a empresa nos próximos 20 ou 30 anos. A solução ideal, segundo a análise, seria a adoção do mecanismo sunset clause (a já citada cláusula de caducidade), que limita o tempo de duração das ações com supervoto.

Mais uma salvaguarda necessária é decidir o destino desses papéis caso o fundador morra ou queira vendê-los. Na opinião de Andréia Casquet, professora do Insper e pesquisadora na área de ações superpreferenciais, é necessário que as ações com voto plural percam a característica do superpoder de voto caso sejam herdadas ou adquiridas via mercado de capitais. “Quem aposta em um fundador não quer colocar o negócio na mão de um terceiro. Assim, é imprescindível que os possíveis destinos dessas ações estejam claros para o investidor desde o começo”, explica.

Popularidade crescente

Mesmo com as restrições, os senões e as opiniões divergentes, o mecanismo de dual class share só cresce em popularidade. Atualmente, 11 das 20 maiores bolsas do mundo permitem a estrutura. As últimas a se render às ações com supervoto foram as bolsas de Hong Kong e Singapura, principalmente por conta da pressão competitiva de outros mercados. Em 2012, Singapura perdeu o IPO do time de futebol inglês Manchester United, que pretendia captar o equivalente a 633 milhões de libras no mercado do país emitindo duas classes de ações ordinárias — o que era proibido na época. Já Hong Kong acabou perdendo a listagem da gigante chinesa Alibaba para a americana Nyse. O IPO da bigtech chinesa, concretizado em 2014, foi o segundo maior da história, movimentando 25 bilhões de dólares.

“Quando os Estados Unidos adotam uma prática como o voto plural, não existe maneira de impedir que a estrutura se espalhe. É como dar murro em ponta de faca”, afirma Guilherme Afonso Ferreira, sócio da Teorema Gestão de Ativos. Segundo ele, a adoção do voto plural é importante para que o Brasil não continue a perder bons IPOs nacionais para o exterior. “O mercado brasileiro está crescendo e tem capacidade para acolher a nova estrutura”, diz.

Enquanto os participantes do mercado tentam chegar a um consenso sobre o assunto, a CVM se movimenta para facilitar o acesso dos brasileiros a papéis de empresas nacionais que se listam no exterior. Em dezembro do ano passado (coincidentemente no mesmo dia do IPO da XP), o regulador colocou em audiência pública a possibilidade de flexibilizar as regras dos brazilian depositary receipts (BDRs). A proposta elimina a restrição para a emissão de BDRs por empresas que tenham a maior parte dos ativos e receitas no Brasil. Caso já estivesse em vigor, a regra permitiria a listagem de recibos de ações da XP na B3, por exemplo.

A flexibilização proposta pelo regulador é pertinente, já que as discussões em torno das superONs são bastante complexas e envolvem uma série de ajustes e transformações do que se considera hoje como boa governança. Caso a estrutura seja adotada, ainda caberá às empresas convencer o investidor que vale a pena assinar uma procuração em nome de determinado fundador. Será uma escolha entre o risco de ficar de fora de um bom negócio e a ameaça de aportar capital numa empresa que tem um acionista superpoderoso.


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