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O dia seguinte dos negócios pós-pandemia
Crise atual põe em evidência adoção de critérios ESG e valorização de stakeholders
Novo capitalismo é o caminho para empresas pós-pandemia

Ilustração: Beto Nejme

Menos de um semestre após a confirmação do primeiro caso de covid-19, já é possível dizer que o novo coronavírus deixou marcas profundas nas relações sociais e nas economias de praticamente todos os países. A doença, que até o fechamento desta edição havia atingido cerca de 3 milhões de pessoas pelo mundo, levou um sem-número de empresas a reavaliar seus modelos de negócios e suas práticas de governança, principalmente quanto à digitalização e à atenção dada aos impactos das operações sobre o entorno. Em tempos de pandemia, investidores e opinião pública cobram a adoção de um novo capitalismo, um estágio revigorado do modelo econômico que continuaria a valorizar o lucro, mas sem menosprezar critérios sustentáveis. Nesscontexto, as companhias têm sido convocadas a demonstrar o que estão fazendo pelas sociedades e por que merecem continuar a ser sustentadas por elas. 

Não é factível, no entanto, a existência de um plano prévio na manga para lidar com um obstáculo dessa magnitude. Segundo previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI), a recessão causada pela pandemia será a maior da história desde a Grande Depressão da década de 1930, com retração de 3% no PIB mundial. Para conter a crise sanitária e financeira, as empresas se viram obrigadas a acatar rapidamente as medidas de isolamento social determinadas pelos governos paralisar parcial ou integralmente as operações — e raras foram as que estiveram de maneira imediata à altura do desafio. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), 90,2% dos executivos brasileiros afirmam que suas empresas não estavam preparadas para adotar as mudanças exigidas pela pandemia. 

Proteção do stakeholder 

Uma vez instaurado o pânico inicial com a queda de faturamento, o primeiro objetivo das companhias foi proteger o caixa. Em tempos de normalidade, isso significa captar recursos e cortar gastos, incluindo demissões de funcionários e enxugamento de fornecedores. Mas bem na linha do capitalismo mais voltado aos stakeholders, alguns empresários acreditam que o momento atual pede outro tipo de resposta. Um bom exemplo surgiu no Brasil. Em 3 de abril foi lançado o movimento “#nãodemita”, integrado por 40 grandes companhias nacionais, como Ânima Educação, Magazine Luiza, Itaú, Suzano, Bradesco e GPA. O intuito é criar uma corrente de empresas comprometidas não demitir por algum tempo durante a crise.  

“Assim como é fundamental que se faça o isolamento para achatar a curva de contaminação da covid-19, é preciso também que os empresários entendam a necessidade de diminuir a curva de desempregados para preservar a economia”, defende Daniel Castanho, presidente do conselho de administração da Ânima e idealizador do movimento. Até o fechamento desta reportagem, o “#nãodemita” já contava com a adesão de ao menos 4 mil empresas. Elas garantem a manutenção do quadro de funcionários até o final de maio. Ainda não é possível prever quando as organizações poderão voltar ao ritmo pré-pandemia, mas a recomendação do grupo é utilização, enquanto for possível, de linhas de crédito e outras soluções oferecidas pelo governo para preservar os colaboradores. 

Na opinião de Luiza Helena Trajano, presidente do conselho de administração do Magazine Luiza, a responsabilidade social das grandes empresas também envolve fazer cortes “de cima para baixo”. “Estamos priorizando a redução de salários da diretoria antes de pensar em cortar funcionários. A mudança deve começar com quem tem mais poder, e os consumidores e investidores certamente vão valorizar as companhias que estão preservando postos de trabalho”, disse Trajano durante o Festival Alma, evento digital de negócios conscientes. No início de abril, a varejista reduziu entre 25% e 80% os salários do alto escalão — os maiores ajustes foram nas remunerações do diretor executivo e do vice-presidente de operações.  

Para as companhias que não podem evitar demissões, diminuir o salário da alta cúpula é ainda mais significativo. A questão é reputacional: ainda que a diminuição nos rendimentos dos executivos não represente um grande incremento de resultados do ponto de vista financeiro, o simbolismo da medida é importante para a imagem da empresa num momento em que o desemprego promete bater recordes. Nos Estados Unidos, uma reportagem publicada pelo The Wall Street Journal mostrou que pelo menos 336 grandes empresas abertas americanas já anunciaram mudanças nos salários e bônus dos executivos do C-suite, grupo que inclui o CEO e os demais Cs do alto escalão das companhias. “Toda a retórica das organizações de que as pessoas são seu principal investimento agora é colocada à prova. É uma oportunidade ímpar de reforçar esses valores”, afirma o conselheiro consultivo e professor de educação executiva na Fundação Dom Cabral Américo Figueiredo.  

Capitalismo de stakeholder 

A valorização de funcionários e outras partes interessadas faz parte da corrente de investimento que integra critérios ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) e também da recente onda de reconhecimento dos stakeholders como parcela relevante do ecossistema das organizações empresariaisO movimento foi impulsionado pela pandemia, mas não começou com ela. Em agosto de 2019, a palavra “stakeholder” já havia ganhado ampla projeção quando a Business Roundtable, associação que reúne CEOs de grandes empresas globaisanunciou que era hora de igualar os acionistas aos demais envolvidos no negócio da companhia — referindo-se a clientes, colaboradores e fornecedores. A declaração foi uma guinada simbólica na direção do novo capitalismo, que passa a ter um epíteto diferente: capitalismo de stakeholder. A mudança começou a relegar às páginas da História a máxima do economista Milton Friedman de que o objetivo primordial de qualquer empresa é dar lucro para seus acionistas — narrativa que perdurou durante muitas décadas no epicentro capitalista.  

A BlackRock, maior gestora de recursos do mundo (ativos de pelo menos trilhões de dólares) saiu do campo do discurso e assumiu um compromisso para, entre outros pontos, implementar aspectos ESG em seus fundos de investimento de gestão ativa até o final deste ano. Com a pandemia, a tendência é de que as empresas sigam cada vez mais o exemplo da gestora e decidam que é hora de colocar em prática seus discursos, ampliando o escopo de atuação sustentável sobretudo no campo social. Em webinar promovido pela CAPITAL ABERTO, Tereza Kaneta, sócia da consultoria Brunswick Group, disse que o posicionamento social das companhias deve impactar a precificação de ativos. “Aplicar critérios ESG é investir na resiliência da empresa. E o que estamos vivendo hoje é justamente um teste de resiliência”, ressalta Kaneta.  

Pandemia exige digitalização 

Outro fator que deve ser decisivo para que as companhias sobrevivam à pandemia é a digitalização, área em que o Brasil ainda engatinha. Uma pesquisa de 2019 da consultoria McKinsey calculou em 39 o nível de maturidade digital das companhias brasileiras, em uma escala de 0 a 100. A tímida colocação parece ainda mais preocupante agora que o País mergulhou forçosamente na era de serviços a distância e home office em larga escala. O estudo verificou que a principal dificuldade está na mudança da cultura corporativa para que sejam aceitos novos modelos de negócio, alteração de processos e implementação da cultura de dados.  

“O home office, por exemplo, já é habitual nos Estados Unidos há cerca de 20 anos. Por uma série de resistências culturais e tecnológicas nós não havíamos adotado massivamente essa possibilidade”, avalia Antonio Salvador, membro do conselho de administração da Saraiva. Em webinar promovido pelo IBGC, Salvador comentou que persistia a ideia de que o colaborador não faria um bom trabalho longe da supervisão da empresa. “Conexão e disciplina são pontos que poderiam ter sido aprimorados antes da pandemia. Quem não estava preparado para trabalhar remotamente tem sofrido muito mais do que quem já estava adaptado. 

Entre os desafios estão gerenciar uma equipe que não ocupa fisicamente o mesmo ambiente, estabelecer o engajamento dos colaboradores, inovar nos processos e garantir a segurança das informações trocadas via rede. Os resultados, entretanto, compensam: o estudo da McKinsey mostra que as empresas líderes em maturidade digital no Brasil alcançam uma taxa de crescimento do Ebitda até três vezes maior que as demais.  

E se os números não foram suficientes para colocar grande parte das companhias brasileiras no caminho da digitalização, a crise deve dar conta do recado. Reuniões, encontros de relacionamento e até mesmo assembleias de acionistas não têm alternativa a não ser migrar para o digital, já que não existe previsão para uma retomada segura do convívio social. Percebendo que esse processo é inevitável, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) convocou às pressas uma audiência pública para flexibilizar suas exigências e permitir que as companhias abertas realizassem suas assembleias parcial ou completamente digitais. Em menos de duas semanas estava aprovada a Instrução 622, que permite, inclusive, a realização de assembleias fora do edifício sede e do município da sede da companhia. 

A necessidade de assembleias presenciais era impulsionada por uma questão burocrática, uma vez que toda a documentação relacionada aos encontros ficava armazenada fisicamente na sede. Com a digitalização dos procedimentos, já havia a possibilidade de flexibilização, o que só ocorreu de forma completa após a pandemia. A instrução é válida apenas para o ano de 2020, mas já existe a expectativa de que o prazo seja estendido. “É uma forma mais eficiente e econômica de realizar as assembleias, já que não impõe deslocamentos entre municípios e estados. Não tenho dúvida de que a mudança veio para ficar”, afirma Nair Saldanha, presidente da comissão jurídica da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca).   

Oportunidade para flexibilizar 

O aprendizado forçado na direção da inovação também pode ser uma porta aberta para mudanças no mercado de capitais, principalmente com a chegada da geração millennial a cargos decisórios. A chamada geração Y nasceu entre 1983 e 1994 e é conhecida pela característica disruptiva, prezando por incorporação de tecnologia, colaboração e flexibilidade nos ambientes de trabalho.   

Um estudo feito pela consultoria Deloitte em 2019 revela que a influência da geração Y é evidente no crescente número de empresas que oferecem acordos de trabalho flexíveis. Essa maior abertura reproduz certas condições de trabalho da chamada gig economy  economia alternativa caracterizada por trabalhos temporários, feitos por autônomos e freelancers. Oito em cada dez millennials ouvidos para a pesquisa disseram considerar trabalhar sob esse esquema. As justificativas principais: ganhar mais (fator citado por 58%) e poder decidir quantas horas trabalhar por dia (48%). Entre os que estão empregados no modelo tradicional, a preferência é por empresas que estejam preocupadas em impactar positivamente suas comunidades e desenvolver políticas de diversidade e inclusão.  

A geração Y é também profundamente comprometida com propósito, e bem demonstra essa inclinação no papel de consumidora. A pesquisa da Deloitte mostra que 42% dos millennials já compraram algo pela primeira vez ou passaram a comprar mais intensamente uma marca por terem percebido que seus produtos ou serviços tinham um impacto positivo na sociedade ou no meio ambiente. Por outro lado, 37% diminuem o consumo ou deixam de ser clientes de determinada companhia se acreditam que ela não é ética e sustentável.  

“Os millennials têm um comportamento muito mais coletivo e flexível que as gerações anteriores, e é justamente disso que as organizações precisam neste momento de crise. É uma oportunidade para utilizar esse modo de pensar sustentável para administrar os impasses econômicos e sociais da pandemia”, destaca Denise Casagrande, consultora e instrutora do IBGC. Em webinar promovido pelo instituto, Casagrande defendeu que este é o momento para revisar a cultura das empresas, oxigenando diretoria e conselhos para aproximar cada vez mais o discurso dos líderes com as suas práticas. 

Capitalismo pós-pandemia 

Embora seja cedo para cravar as principais mudanças pós-crise, já é possível dizer que a cultura da doação entrou em um novo patamar. O Brasil, historicamente, é um país que doa pouco: apenas 22% dos brasileiros fazem doações em dinheiro, ante 61% dos americanos, segundo balanço de 2019 da Charities Aid Foundation (CAF)Mas a pandemia de covid-19 mobilizou todos os setores da sociedade nessa direção — principalmente as organizações. Até o final de abril, empresas e grandes empresários brasileiros doaram, juntos, cerca de 3,8 bilhões de reais para combater os efeitos do novo coronavírus, segundo o monitor de doações da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR). 

E não se trata apenas de dinheiro. José Guimarães Monforte, diretor da Emax Consultoria e Negócios e presidente do conselho de administração da Eletrobras, afirma que esta é a hora para as empresas pensarem no critério social da sigla ESG de forma amplificada. “A questão não é mais apenas doar, mas entender o que pode ser feito pelo bem comum ampliando o escopo do próprio negócio, como fez a Ambev ao anunciar que utilizaria o etanol de suas cervejarias para produzir 1 milhão de unidades de álcool em gel”, analisa 

Muitas outras companhias também estão se remodelando. No campo da prevenção, Natura e Avon redirecionaram suas fábricas para a produção de itens essenciais para higiene pessoal, como sabonetes e álcool em gel. Já para o tratamento da doença, montadoras de automóveis no Brasil se uniram ao Senai em iniciativa voluntária para fazer a manutenção e o reparo de respiradores artificiais. Seguindo a mesma linha, a Weg, fabricante de motores elétricos, anunciou adaptação de seu maquinário para produção desses equipamentos essenciais aos cuidados de pacientes com covid-19 internados em UTIs. 

Os exemplos são muitos, mas, considerando a gravidade da crise, existe o risco de que o discurso de solidariedade e valorização dos stakeholders não se sustente caso as empresas enfrentem um cenário extremo de fragilidade. Ainda assim, Salvador, da Saraiva, acredita que são justamente as conquistas do novo capitalismo que vão manter as companhias de pé. “Não há como sair dessa crise com receitas do passado. Vão sobreviver as companhias que fizerem diferente, usando tecnologia e dados, valorizando todos os stakeholders. Essa é a nova receita. Não há como olhar para o retrovisor. 


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