Nas mãos do consumidor
As respostas das companhias tradicionais às mudanças de comportamento das novas gerações
comportamento do consumidor

Ilustração: Rodrigo Auada

Desde a compra da Brahma, em 1989, Jorge Paulo Lemann e seus parceiros de negócios, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, tiveram uma trajetória sem precedentes no mundo empresarial. Os brasileiros controlam algumas das maiores companhias da indústria alimentícia e de bebidas global — além da AB Inbev, o trio detém, sob o guarda-chuva da empresa de private equity 3G Capital, a Restaurant Brands International (RBI) e a Kraft Heinz Company. O sucesso de suas empreitadas ao longo das últimas três décadas foi capaz de convencer até o mais exigente dos investidores: Warren Buffett se tornou sócio da 3G na compra da H.J. Heinz em 2013. Não à toa, o mercado ficou estarrecido com a notícia, divulgada no dia 22 de fevereiro, de que a Kraft Heinz havia registrado prejuízo de 12,6 bilhões de dólares no quarto trimestre de 2018. Entre as explicações de especialistas para o ocorrido, uma foi recorrente: a 3G Capital se acomodou. A percepção é que a gestora se concentrou tanto na sua tradicional “receita” para crescimento das empresas investidas — aquisição de marcas consolidadas, demissões em massa, redução drástica de orçamento e implantação de novas métricas de austeridade — que deixou de acompanhar a notória mudança de hábitos dos consumidores ao redor do mundo. Como resultado, AB Inbev, RBI e Kraft Heinz investiram menos em inovação do que deveriam e lançaram campanhas de marketing pouco eficientes.

“Compramos marcas que pensamos que durariam para sempre”, reconheceu Lemann durante o painel “Estratégia e liderança na época da ruptura”, realizado na conferência anual do Milken Institute, em fevereiro de 2018 — período em que a Kraft Heinz e outras de suas empresas já apresentavam um crescimento modesto. “Você podia focar em apenas ser muito eficiente e tudo ficava bem. De repente, estamos sendo ultrapassados de todas as formas”, observou o empresário. As dificuldades enfrentadas por Kraft Heinz, RBI e AB Inbev para acompanhar a transformação de atitudes dos consumidores não são isoladas: elas afetam todos os principais players da indústria de alimentos e bebidas e extravasam para as grandes empresas do mercado de bens de consumo (CPG, na sigla em inglês). Isso ocorre porque as pessoas estão cada vez mais conscientes do que compram, principalmente nos países economicamente desenvolvidos. Elas buscam empresas transparentes e sustentáveis, com um portfólio de produtos saudáveis e de maior qualidade.

A força da rede

O empoderamento do consumidor decorre da inegável transformação da comunicação e do acesso à informação proporcionada pelo avanço digital. Já há pelo menos 3 bilhões de pessoas que usam a internet para diferentes finalidades, e as consequências disso são perceptíveis no dia a dia. No Brasil, uma pesquisa feita pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) com usuários que compraram online nos 12 meses que antecederam a pesquisa mostra que 47% dos entrevistados sempre buscam na internet preços, avaliações e informações sobre produtos antes de adquiri-los em lojas físicas.

Esse cenário, combinado com o fortalecimento das redes sociais, tirou o controle das mãos do marketing corporativo e da mídia, fomentando uma geração de consumidores mais exigente e bem informada. “Antes as conversas eram segmentadas, entre empresa e consumidor, empresa e investidor. Hoje, a internet é o lugar onde todas as conversas se juntam, principalmente com o crescimento das redes sociais”, observa Tereza Kaneta, sócia da Brunswick. Na visão dela, companhias antenadas, com bom planejamento estratégico e gestão de riscos eficiente são capazes de antecipar as mudanças de comportamento do consumidor e de responder melhor a cada uma delas. “As companhias precisam acompanhar todos os stakeholders para não perder receita”, ressalta.

Pesquisas já chegam a conclusões interessantes relacionadas a essa mudança comportamental. Ao analisar 400 companhias americanas de bens de consumo que tiveram, em 2018, vendas no varejo superiores a 100 milhões de dólares, Boston Consulting Group (BCG) e Information Resources, Inc. (IRI) Worldwide verificaram que as que registraram faturamento de até 1 bilhão de dólares “capturaram”, em conjunto, cerca de 20 bilhões de dólares de vendas de empresas de porte maior. O dado pode indicar o enfraquecimento da produção em escala como vantagem competitiva incontestável, como ocorreu durante muito tempo. “As companhias desse setor que hoje vencem a disputa por mercado conseguem fazer isso, entre outros fatores, por adotarem uma estratégia de fusões e aquisições e agirem de acordo com as tendências do consumidor”, comenta Krishnakumar Davey, presidente do IRI Strategic Analytics.

Para William Boulding, reitor da Fuqua School of Business da Duke University, nos Estados Unidos, companhias que estavam concentradas em corte de gastos precisam inovar para motivar os consumidores, sustentar relacionamentos e estimular os empregados. “Claro que reduzir custos significa melhorar, mas a psicologia humana mostra que inovar e criar é mais motivador do que simplesmente pegar algo que já existe e cortar, cortar, cortar”, destaca. Ocorre que inovar não é a especialidade das grandes companhias tradicionais. Estudos mostram que empresas são menos propensas a inovações quando estas exigem mudanças na estrutura organizacional. Essa característica foi primeiro identificada pelos professores de Harvard Rebecca Henderson e Kim B. Clark, que criaram o termo architectural innovation. Eles concluíram que o importante não é a natureza da inovação, se ela é revolucionária ou incremental, e sim se a estrutura da empresa é capaz de absorvê-la e produzi-la em massa.


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Aposta no novo

A PepsiCo é um dos grandes players globais que se propuseram a reformular o planejamento estratégico e a investir em reestruturação para aumentar a receita no longo prazo — a companhia vai alocar cerca de 2,5 bilhões de dólares para essa finalidade até 2023. De acordo com anúncio da gigante do setor de alimentos e bebidas, o plano pretende alavancar novas tecnologias e modelos de negócios para simplificar, harmonizar e automatizar processos. Além disso, a empresa está buscando priorizar questões de saúde e sustentabilidade para manter os seus clientes satisfeitos.

“A PepsiCo tem no seu portfólio produtos que já estão saindo do cardápio dos consumidores, como as bebidas açucaradas. O novo planejamento estratégico foi criado para incorporar essas mudanças”, detalha Kaneta, da Brunswick. Uma decisão nesse sentido foi a aquisição da SodaStream, empresa que produz máquinas domésticas de gaseificação de água, por 3,2 bilhões de dólares. Com a possibilidade de desenvolvimento de sachês com sabores variados que permitirão que os consumidores criem as bebidas da PepsiCo em casa, a aquisição da SodaStream visa não só atender uma crescente demanda por produtos personalizados, mas também incentivar o aumento das compras online — esse tipo de produto, afinal, é mais leve para ser despachado por correio.

A indústria de bebidas também está sendo influenciada por outra tendência: os consumidores têm escolhido produtos premium, de pequenos lotes, em detrimento daqueles fabricados em larga escala. O relatório “Top 10 Global Consumer Trend for 2019”, elaborado pela Euromonitor International, classifica essa mudança como uma consequência da busca, pelos consumidores, de status social e de uma maneira de expressar a própria individualidade. Segundo os responsáveis pelo trabalho, as bebidas alcoólicas feitas em microdestilarias são cada vez mais favorecidas pelo sabor inovador, pelo uso de ingredientes locais e pela força da imagem artesanal. Nos Estados Unidos, o segmento de cervejas artesanais, por exemplo, já vale 27,6 bilhões de dólares e representa 24,2% do mercado nacional, com aumento de 7% nas vendas ao longo do último ano, segundo levantamento anual da Brewers Association.

Para as grandes companhias, uma saída rápida e eficiente para resolver o descompasso é a aquisição de marcas menores — assim podem rapidamente renovar o portfólio e ingressar em novas categorias. A própria AB Inbev hoje é dona de dez marcas de cervejarias artesanais. Outros exemplos são a compra, pela Johnson&Johnson, da marca de saúde e bem-estar Zarbees, e aquisição feita pela Unilever da marca dinamarquesa de carne vegana The Vegetarian Butcher — as duas transações aconteceram em 2018. O corporate venture capital é mais uma opção, adotada por empresas como a Danone. A companhia francesa criou, em 2016, a divisão Danone Venture, para investir em startups inovadoras do ramo de alimentos e bebidas. O modelo permite que elas mantenham autonomia enquanto recebem suporte operacional e financeiro.

Uma questão não menos importante é o conceito de sustentabilidade — o recente boom de críticas aos canudinhos de plástico é só um sinal de como os consumidores estão preocupados com questões ambientais na rotina. Apesar de a adoção de práticas sustentáveis já estar na agenda das companhias há alguns anos, uma das mais recentes iniciativas é o incentivo à chamada agricultura regenerativa, estruturada de forma a tirar CO2 do ar e armazená-lo no solo, o que reduz as emissões na atmosfera. Apostam nessa linha General Mills e Danone.

Algoritmo adivinha

O big data tornou-se uma ferramenta inestimável para a compreensão dos desejos do consumidor. A tecnologia permite às empresas acompanhar mudanças de comportamento, identificar o crescimento de novos mercados e, com isso, impulsionar as vendas. No livro O Poder do Hábito (2012), o autor Charles Duhigg, ex-repórter do jornal The New York Times, descreve como a Target, uma das maiores redes de lojas de varejo dos Estados Unidos, há anos utiliza o seu banco de dados para descobrir hábitos de compra e influenciar as decisões pessoais de consumo. Segundo a investigação de Duhigg, os analistas de big data da Target são capazes de identificar até mesmo alterações muito sutis. Um exemplo: com base na análise dos itens que uma mulher compra, a empresa é capaz de saber se ela está grávida e até qual o período da gestação. A informação é preciosa para a oferta de cupons personalizados de desconto.

A maior parte das empresas, entretanto, tem gigantescas bases de dados pouco exploradas, ressalta Joaquim Campos, vice-presidente de system hardware da IBM. “Esses dados são o grande diferencial para que companhias mais tradicionais possam se posicionar frente aos novos entrantes, que têm uma agilidade muito grande. Para isso, elas precisam superar barreiras internas não só de tecnologia, mas também de cultura”, afirma.

Reputação na mira

À parte essas novas demandas, as companhias também estão mais sujeitas à opinião do seu público-alvo. A pesquisa Global Consumer Pulse, feita pela Accenture Strategy com aproximadamente 30 mil pessoas e divulgada em dezembro de 2018, mostra a relação entre marcas e consumidores em 35 países, dentre eles o Brasil. Acompanhando a tendência mundial, 77% dos consumidores brasileiros dizem levar em consideração os valores éticos e a autenticidade das empresas, enquanto 65% afirmam deixar de fazer negócio com companhias por causa de sua opinião ou de ações relacionadas a questões sociais. Na análise da Accenture, as marcas deixaram de pertencer apenas às companhias: agora são também de shareholders, funcionários e consumidores.

Isso implica mudanças no planejamento estratégico de grandes companhias, principalmente para lidarem com críticas que podem respingar na sua reputação e levar os consumidores a boicotar seus produtos — e, nesse cenário, o potencial das redes sociais em viralizar opiniões e notícias se torna cada vez mais palpável. Ilustra bem essa situação o Carrefour. Em novembro de 2018, a rede francesa se tornou pauta no Brasil por causa da denúncia de maus-tratos a um cachorro de rua nas dependências de sua loja de Osasco. O animal foi vítima de agressões de um funcionário terceirizado de segurança e morreu após ser recolhido pelo Centro de Controle de Zoonoses.

“Se o Carrefour ainda não era conhecido em algum lugar do Brasil, depois do caso do Manchinha, certamente crescemos muito no top of mind”, afirma Silvana Balbo, diretora de marketing do Carrefour Brasil. Segundo ela, a rede de supermercados não tinha um comitê gestão de crise estruturado para lidar com a dimensão do caso. “O máximo que tínhamos vivenciado era uma crise com 8 mil comentários negativos nas redes sociais. Dessa vez, foram 340 mil”, conta. Após a repercussão negativa, o Carrefour firmou acordo com o Ministério Público e o município de Osasco para depositar a quantia de 1 milhão de reais em um fundo destinado à causa animal. A rede francesa também anunciou ações internas e externas para amparar e reduzir o número de animais abandonados, entre elas a organização de feiras de adoção e a produção de material de treinamento e sensibilização para funcionários e prestadores de serviço de todas as suas unidades do País.

Ao longo dos últimos anos, empresas do mundo inteiro enfrentaram situações negativas de grande repercussão — o passageiro arrastado de um voo da United Airlines, em 2017, a descoberta do vazamento de dados dos usuários do Facebook, em 2018, e o tênis da Nike que rasgou durante um jogo da liga de basquete universitário dos Estados Unidos neste ano, só para citar algumas. Todos esses episódios serviram de incentivo para o mundo corporativo se preparar melhor. “Crises são inevitáveis. Ao observar casos que poderiam ter sido contidos facilmente se houvesse um planejamento estratégico eficiente, as empresas percebem que não estão imunes a isso. A preparação, no fim, é a chave do sucesso”, opina Kaneta.

Há players, ainda, buscando adotar práticas de governança que visam eliminar possíveis riscos e melhorar a imagem junto ao consumidor em questões como transparência e sustentabilidade. Para Boulding, da Duke University, unir lucro e propósito é o próximo passo das grandes companhias. Ele cita a Apple e Tim Cook, um de seus ex-alunos, que liderou a gigante de tecnologia no aumento de investimentos em monitoramento e transparência na cadeia de produção. “Tim ajudou a construir uma das empresas mais valiosas do mundo. Ele não desapontou os acionistas e, ao mesmo tempo, prestou atenção aos stakeholders. Toda empresa quer lucrar de forma sustentável, mas deve assumir a missão de melhorar a sociedade de alguma forma”, afirma. É isso ou enfrentar a fúria ou a resistência de consumidores cada vez mais informados e motivados.


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