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O peso dos incentivos errados na tragédia de Brumadinho
Estrutura de remuneração de executivos da Vale pouco premiava iniciativas de sustentabilidade e segurança
O peso dos incentivos errados na tragédia de Brumadinho

Ilustração: Beto Nejme

A informação até existia. Mas estava lá, tímida, escondida sob numerosos detalhes técnicos compilados num documento de cerca de 2 mil páginas — um estudo de impacto ambiental elaborado em 2015 pela Vale para avaliação da continuidade das operações de sua Mina da Jangada, integrante do Complexo do Feijão. Não é preciso muito esforço para se concluir que a sinalização de mau funcionamento de alguns piezômetros — aparelhos que ao monitorar o nível da água interno numa reserva de material indicam por meio de sensores se há deficiências de drenagem — ficou literalmente soterrada por tantos dados. Ainda correm as investigações sobre as causas do rompimento da barragem de resíduos do Córrego do Feijão, em Brumadinho, mas já é possível conjecturar que a Vale falhou em seus processos internos de comunicação e gestão de riscos operacionais. Afinal, aquele alerta sobre os piezômetros não ganhou corpo dentro da companhia — ficou, por assim dizer, numa espécie de arquivo morto de tecnicidades. Consumada a tragédia, cabe a pergunta: como uma empresa cuja natureza do negócio é exploração de jazidas (acompanhada da inescapável gestão dos respectivos resíduos) aparentemente dá menos atenção a riscos operacionais do que a riscos financeiros? A resposta ainda não veio, mas o estrago na reputação da companhia está feito. A partir de agora, autoridades pressionadas pela sociedade vão procurar culpados, e os investidores deverão redobrar a atenção à gestão de riscos da Vale.

Conforme o estudo de 2015, de um total de 78 piezômetros da área do Córrego do Feijão, quatro eram antigos e havia suspeita de que “alguns” não funcionavam corretamente. Além disso, drenos responsáveis pelo escoamento de líquidos das barragens estariam secos. Uma versão reduzida desse documento, na forma de relatório de impacto ambiental, foi apresentada em 2017 pela Vale à Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad-MG) para obtenção de licença para ampliar as operações — pedido aprovado em dezembro passado. Dias antes do rompimento do Córrego do Feijão, em 25 de janeiro deste ano, novos alertas sobre falhas nos piezômetros foram feitos. Em trocas de e-mails, profissionais da Vale e de duas empresas terceirizadas ligadas à segurança de barragens — TÜV SÜD e Tec Wise — discutiam a existência de dados discrepantes na leitura desses instrumentos e o fato de não estarem funcionando alguns recursos automatizados de segurança. Parte do conteúdo dessas mensagens foi identificada pela Polícia Federal (PF) e pela Procuradora-Geral da República.

Em nota oficial, a Vale alega que sua governança “prevê autonomia e independência funcional para que seus especialistas locais, responsáveis pela gestão operacional direta da barragem, atuem de forma diligente e efetiva”. Esses funcionários teriam, conforme a visão da empresa, o dever de agir ao identificar cenários de risco, iminente ou não. Sabe-se agora que essa “independência funcional” não foi efetiva, mesmo tendo os funcionários diante de si a sombra da recente tragédia da Samarco, joint venture de Vale e BHP Bilinton, em Mariana, em novembro de 2015. O fantasma da reincidência parece não ter assustado — por enquanto não dá para dizer se por incompetência das equipes ou se por obra de incentivos equivocados oferecidos pela Vale.

“Mariana nunca mais”

Festejado pelo mercado, Fabio Schvartsman assumiu o cargo de CEO em 2017, paramentado com o lema “Mariana nunca mais”. Diante dos desdobramentos da tragédia em Brumadinho, no início de março Schvartsman foi afastado do comando da mineradora, sob recomendação por autoridades que investigam a responsabilidade da companhia e de seus executivos no rompimento da barragem. “Minha presença no comando da Vale passou a ser percebida como inconveniente por autoridades que seguirão interagindo diuturnamente com a companhia”, escreveu o executivo em carta endereçada ao conselho de administração, e defendeu que sua permanência seria a melhor maneira de a Vale obter melhores resultados em reação à tragédia. Como CEO interino, foi nomeado Eduardo Bartolomeo, que já ocupou diferentes cargos executivos na companhia na última década.

Desde o fim de 2015, a companhia vinha investindo na construção da imagem de uma “nova” Vale, que parecia mesmo ser uma empresa preparada para evitar outros desastres. O mais recente relatório de sustentabilidade, de 2017, dizia que um dos objetivos da companhia nesse ponto era “a aplicação da cultura do zero dano, com práticas de trabalho seguras e preventivas, além da promoção de atitudes ambientalmente corretas”. Muitos podem, diante dessa bonita afirmação, perguntar-se se manter uma área administrativa e um refeitório na rota de uma eventual avalanche de lama seria uma prática de trabalho segura e preventiva. Mas na prática a teoria funciona diferente. Embora no discurso a cultura de cuidados com a sustentabilidade ganhasse força, a estrutura de remuneração implantada nos últimos anos seria capaz de direcionar mentes e corações para outro lado — o do pensamento de curto prazo (leia também a seção Governança).

De acordo com dados do formulário de referência da Vale atualizado em 8 de fevereiro, os rendimentos da diretoria no ano passado foram distribuídos da seguinte forma: 74% remuneração variável e o restante salário fixo. A questão é que o bônus está integralmente associado à geração de caixa da empresa, sendo distribuído conforme cumprimento de metas — 60% associadas a métricas econômico-financeiras; 20% a iniciativas estratégicas; 10% a saúde e segurança; e 10% a quesitos de sustentabilidade. Esse desenho, segundo política de remuneração relatada pela Vale no formulário, garante alinhamento com os interesses dos acionistas. Porém, considerando o lema “Mariana nunca mais”, não deveria a Vale ter dado mais peso às metas relacionadas a sustentabilidade e segurança? Se o bônus estava atrelado majoritariamente a ganhos financeiros, qual incentivo os executivos tinham para focar em prevenção de riscos operacionais e controles internos — que, numa perspectiva de curto prazo, tendem a ser vistos como custos, e não como investimentos indispensáveis?

No caso da manutenção de barragens como a que rompeu em Brumadinho, essa visão de “custo” é ainda mais preponderante, já que a reserva que espalhou rejeitos não produzia qualquer riqueza para a companhia — apenas gerava uma enorme despesa com monitoramento. Levantamento de Marcos Piellusch, professor da Fundação Instituto de Administração (FIA), mostra que a remuneração de executivos e conselheiros da Vale saltou de 95 milhões de reais em 2015, ano da tragédia de Mariana, para 170 milhões de reais em 2018. Deflagrada a tragédia, o incentivo cessou. Para este ano, o pagamento de bônus foi suspenso.

Descaso?

Para além dos problemas dos piezômetros, uma simulação constante do plano de emergência da barragem do Córrego do Feijão indicava que, em eventual colapso, os rejeitos acumulados se espalhariam por 65 quilômetros do entorno. Outro documento (este interno), de outubro passado, mostra que dez barragens de resíduos da Vale, todas localizadas próximas a núcleos urbanos, estariam em situação semelhante à de Brumadinho, tendo sido destacadas como “zonas de atenção” — sob essa classificação, deveriam passar por manutenção preventiva. Eventuais rompimentos, ainda de acordo com esse estudo, poderiam provocar centenas de mortes e prejuízo financeiro de cerca de 1,5 bilhão de dólares. A Vale, no entanto, afirmou que o fato de uma barragem estar nessa lista não significava iminência de desastre. Esse documento foi usado pelo Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) para embasar ação civil pública que pede medidas imediatas para evitar novas ocorrências.

A ação do MP-MG motivou a Justiça mineira a proibir a Vale de lançar rejeitos de mineração nas barragens integrantes dessa zona de atenção — incluindo a de Laranjeiras, no Complexo de Brucutu, o maior de Minas Gerais. Em entrevista coletiva em fevereiro, o gerente-executivo de planejamento e desenvolvimento de ferrosos e carvão da companhia, Lúcio Cavalli, rebateu o teor das informações reunidas pelo MP-MG. “Tínhamos laudos de estabilidade que indicavam claramente a não existência de risco iminente na barragem”, afirmou. Ele se referia ao cumprimento de determinações da Agência Nacional de Minérios (ANM) em relação a barragens de rejeitos. Conforme relatório anual de 2018, a Vale promovia duas auditorias ao ano para verificação de estabilidade de cada barragem (especificamente em Minas Gerais, esse trabalho deveria ser feito por auditores externos) e análises de segurança periódicas para mensurar os reflexos nas comunidades vizinhas, incluindo o impacto de uma hipotética ruptura. No caso da barragem do Córrego do Feijão, a auditoria era feita pela alemã TÜV SÜD. Em comunicado, a empresa atestou ter feito a última de suas duas inspeções anuais em setembro passado, averiguando no exame de rotina que a unidade tinha estabilidade.

No intuito de afastar a responsabilização (civil e penal) de seus administradores, a Vale usou semelhante discurso de conformidade com protocolos formais e de falta de previsibilidade da catástrofe para se explicar. Quatro dias após o desastre, entretanto, dois engenheiros da TÜV SÜD e três funcionários da Vale foram presos preventivamente. A TV Globo revelou trechos dos depoimentos, e um deles particularmente chama a atenção. O investigador da Polícia Federal questiona um dos engenheiros sobre qual teria sido sua atitude caso lesse a mensagem sobre a discrepância na aferição dos piezômetros e tivesse um filho trabalhando no local. A resposta: ligaria imediatamente para o filho orientando-o a sair do local. Já a Vale não viu urgência na mensagem. “O objeto da troca de e-mails é o fato de a visualização dos instrumentos que estão em campo nos computadores do sistema centralizado estar apresentando incorreções”, disse, em entrevista coletiva, Luciano Siani Pires, diretor de relações com investidores da empresa.


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Desarmar a bomba

Independentemente dos resultados das investigações, a Vale agora vai ter que investir para desmontar a bomba-relógio que armou ao escolher o obsoleto modelo a montante (a grosso modo, aquele em que os resíduos, ainda úmidos, são “empilhados”) para armazenar seus rejeitos. O próprio Schvartsman afirmou que a empresa vai eliminar todas as barragens desse tipo que ainda opera. O sistema é um método mais barato de construção desses reservatórios, mas também mais arriscado — desde 2016, o licenciamento de novas barragens desse tipo é proibido em Minas Gerais. A aposentadoria das barragens a montante exigirá desembolsos de 5 bilhões de reais ao longo dos próximos três anos. Além de gastar para remendar escolhas passadas equivocadas, a Vale pode deixar de faturar com a suspensão o equivalente a 10% de sua produção anual (menos 40 milhões de toneladas de minério de ferro). Segundo cálculos de analistas do Société Generale, o corte deve provocar uma queda de mesma proporção no lucro líquido deste ano, além de perdas de 2,5 bilhões de dólares com exportações. A equação de perdas potenciais vai além. De acordo com estudo da Sitawi, consultoria especializada na análise de indicadores sociais, ambientais e de governança (ESG, na sigla em inglês), já incluindo a redução em Brucutu, as perdas totais da Vale podem atingir, no pior dos cenários, 55,8 bilhões de reais. O valor considera aspectos como biodiversidade, capital humano, comunidade e operações e processos de investidores.

A conta fica ainda mais pesada quando são consideradas as prováveis multas e indenizações ambientais, sociais e morais. Logo depois do rompimento em Brumadinho, cerca de 12 bilhões de reais do caixa da Vale foram bloqueados pela Justiça, como garantia para o pagamento desse passivo. Essas primeiras ações até podem dar à opinião pública uma sensação de justiça sendo feita, mas na vida real as coisas são muito mais lentas. A Samarco, multada em cerca de 600 milhões por órgãos ambientais como Ibama e Semad-MG, ainda não pagou o que devia, de acordo com dados do próprio balanço da empresa.

Em maio de 2016, o Ministério Público Federal pediu o pagamento de indenização por dano moral coletivo de 155 bilhões de reais, tendo como réus Samarco, Vale e BHP — o maior valor fixado para esse tipo de indenização na Justiça brasileira. Dois anos depois, as empresas e órgãos públicos envolvidos fecharam um termo de ajustamento de conduta que suspendeu o processo — que pode ser retomado caso a Fundação Renova, instituição estabelecida pelas empresas para tocar o processo de restauração das perdas, não atinja suas metas. Ou seja, nada de indenizações até agora. As três empresas, entretanto, ainda são alvo de uma série de processos individuais e coletivos que buscam alguma espécie de reparação. Tramita na vara federal de Ponte Nova (MG) uma ação penal que visa responsabilizar criminalmente 21 pessoas, incluindo ex-executivos da Samarco e da Vale. Não há data marcada para o julgamento do processo, cheio de idas e vindas por causa da anulação de provas de monitoramento telefônico a pedido dos réus.

Quem investiu dinheiro acreditando na Vale também se mexeu. Além de ações relacionadas ao caso de Mariana, em janeiro, investidores da Vale ajuizaram num tribunal federal em Nova York ação coletiva contra a companhia. Eles argumentam terem sido prejudicados por declarações falsas da empresa e por omissão a respeito de riscos de operação com barragens. No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tinha, até meados de fevereiro, quatro processos abertos contra a Vale em torno de Brumadinho, para apuração da comunicação da companhia sobre os desdobramentos da tragédia e a responsabilidade dos administradores pelo rompimento.

Na bolsa, a reação inicial dos investidores se apresentou sob a forma de uma perda de 72,8 bilhões de reais em valor de mercado num único dia, tendo as ações da companhia caído 24,5% no pregão do dia 28 de janeiro — o primeiro após a tragédia em Brumadinho. Outro efeito colateral foi a perda de selos importantes em termos de sustentabilidade. Por causa do desastre, as ações da empresa deixaram de integrar o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da B3. Organizações que militam pelos direitos humanos fazem pressão para que a Vale saia também do Pacto Global da ONU, rede de responsabilidade corporativa que engloba milhares de empresas no mundo. De mais concreto, destaca-se a decisão da gestora de recursos holandesa Robeco, detentora de cerca de 170 bilhões de euros em ativos: ela colocou as ações da Vale em sua “lista de exclusão”, tirando-as de seu portfólio, em movimento que deve ser acompanhado por outros fundos bilionários que se orientam por indicadores ESG.

Sob um prisma de curto prazo, no entanto, a tragédia de Brumadinho pode nem sair tão pesada para o caixa da Vale. Como, por seu porte, a empresa tem forte influência sobre as cotações internacionais do minério de ferro, a interrupção de produção ensejada pelo rompimento tende a elevar os preços da commodity. Assim, a companhia pode até vender menos, mas por um preço maior, equilibrando o faturamento. Parece cruel essa dinâmica fria dos números — e, de fato, é. Apesar de ter causado um impacto inicial negativo, o desastre de Mariana não impediu que o valor de mercado da Vale triplicasse entre 2015 e 2018, nem que a companhia visse seu faturamento saltar de 23,3 bilhões de reais no terceiro trimestre de 2015 para 37,9 bilhões de reais ao fim de igual período do ano passado. Basta saber quanto tempo os investidores, nacionais e estrangeiros, vão aceitar financiar perdas inestimáveis e irreparáveis de vidas e ecossistemas valiosos. Até a publicação desta reportagem, a triste contabilidade do desastre de Brumadinho envolvia 193 mortos e 115 desaparecidos.


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