O dilema ético da CCR
Recompensa da companhia a ex-executivos envolvidos em corrupção enfurece minoritários
, O dilema ético da CCR, Capital Aberto

Ilustração: Beto Nejme

A situação dá o que pensar. Seria válida uma solução eticamente questionável para um problema grave, mas potencialmente eficaz para evitar a quebra de uma empresa? Esse dilema marcou, nos últimos meses, as relações entre diretores, conselheiros, controladores e acionistas minoritários da CCR, uma das maiores concessionárias de infraestrutura do País — e, por ironia do destino, a empresa que em 2002 inaugurou o Novo Mercado da bolsa. O segmento foi idealizado para abrigar as companhias seguidoras das mais estritas práticas de governança corporativa, mas, na vida real, não é isso que tem sido visto.

Abalroada por investigações relacionadas à Operação Lava Jato, assim como dois de seus controladores (Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez), a CCR identificou nos acordos de leniência com o Ministério Público (MP) uma saída para acertar suas contas relacionadas a ilícitos e, ao mesmo tempo, manter suas operações e continuar elegível à participação em novas licitações e concessões — fatores fundamentais para sua perenidade. Mas para fazer valer os acordos precisava vencer um obstáculo: convencer ex-executivos a delatar irregularidades. Para isso, nada melhor que um incentivo financeiro. Foi assim que o pagamento de um total de 71 milhões de reais para 15 pessoas passou a ser o cerne de uma polêmica ideia, aprovada — não sem vozes dissonantes — numa assembleia de acionistas realizada no último dia 22 de abril.

A CCR abriu as portas, entre as companhias abertas, para esse tipo de procedimento de incentivo à delação, que não passou incólume a uma avalanche de críticas. Tanto é assim que uma teleconferência com o diretor vice-presidente de gestão estratégica, Eduardo de Toledo, e o diretor financeiro e de relações com investidores, Arthur Piotto Filho, para abordar os resultados do quarto trimestre de 2018 acabou virando palco para questionamentos contundentes ao programa de incentivo à colaboração (PIC). Por meio dele, 15 envolvidos em irregularidades se comprometeram a fornecer às autoridades informações sobre esquemas de caixa dois de políticos e pagamento de propinas a agentes públicos, em troca de benefícios financeiros e jurídicos. Essas colaborações sustentam dois acordos de leniência da companhia: um firmado em novembro passado com o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), no qual a CCR se comprometeu a pagar 81,5 milhões de reais; e outro acertado, em fevereiro deste ano, com o Ministério Público Federal (MPF), que prevê desembolso de 750 milhões de reais. A lógica da companhia ao desenhar o PIC foi simples: dos acordos de leniência dependia seu futuro, o que justificaria, na prática, a premiação dos conhecedores de ilícitos — e com dinheiro do bolso dos acionistas.

A questão é que o raciocínio passa a mensagem equivocada de que o crime pode sim compensar. Tornou-se assim mais um duro golpe na reputação da CCR, que costumava ostentar a imagem de empresa “blindada”. A concessionária se mantinha longe de manchetes desabonadoras mesmo tendo seus controladores entre os alvos da Operação Lava Jato. Criada em 1999 para administrar concessões rodoviárias dos então acionistas Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht, SVE Participações e Serveng-Civilsan, a CCR chegou a receber prêmios de reconhecimento por sua boa gestão, como o do IBGC, em 2005.

De acordo com a CCR, o PIC não tira a responsabilização criminal dos envolvidos, o que cabe à Justiça determinar. No entanto, considerando que alguns dos fatos investigados remontam ao início dos anos 2000, é possível que boa parte dos crimes tenha prescrito.

“Cheque em branco”

Montado em novembro de 2018 e aprovado por unanimidade pelo conselho de administração, o PIC prevê que a companhia pague valores mensais aos delatores ao longo de cinco anos (o que corresponderia ao total de 71 de milhões de reais). Há um detalhe interessante, perdido entre as páginas de atas da assembleia geral extraordinária (AGE) que aprovou o plano: inicialmente, o acordo valia para 14 pessoas e estipulava o desembolso de 50 milhões de reais, com repasses proporcionais aos salários de cada executivo quando na ativa. Em fevereiro deste ano, um 15º nome foi incluído na lista, com o acréscimo de 21 milhões de reais à conta. A magnitude do adicional sugere que o retardatário poderia ser algum diretor do alto escalão da companhia, que por seu cargo teria supostamente mais a “colaborar”. Há especulações entre os investidores de que esse executivo seria o ex-CEO Renato Vale.

Como o PIC se relaciona aos acordos de leniência, acabou protegido por sigilo, o que impediu os minoritários e o mercado em geral de conhecerem a identidade dos agraciados. Dados públicos, contidos nas atas, apresentam apenas as linhas gerais do PIC — como a garantia de manutenção dos delatores indenes e isentos de responsabilidades relacionadas às suas atuações nas empresas do grupo CCR, ainda que “no contexto da obrigação de colaboração com a companhia e as autoridades públicas, venha a confessar o conhecimento ou a prática de atos que tenham causado ou possam causar prejuízos à companhia”. Como contrapartida, os delatores têm a obrigação de, durante os mesmos cinco anos, colaborar com investigações internas e com diligências de autoridades públicas. No acordo com os ex-executivos, a CCR se dispôs também a cobrir custos com honorários de advogados que possam ter e a ressarcir “eventuais prejuízos relacionados a demandas de terceiros e também da própria companhia”. Ou seja, na prática, a CCR abriria mão de responsabilizar os ex-administradores e de cobrar indenizações, além de se comprometer a pagar eventuais multas.

Essa imprevisibilidade suscitou dúvidas de que a companhia poderia arcar com valores muito superiores ao estimado. Um analista chegou a dizer, na teleconferência, que se tratava de um “cheque em branco”, já que custos inesperados poderiam surgir e a empresa (logo, os acionistas) ficaria obrigada a arcar com eles. Tanto Toledo quanto Piotto Filho negaram essa possibilidade. Mas fato é que o número mágico de 71 milhões de reais se refere apenas aos pagamentos mensais ao longo de cinco anos — assim, o montante total certamente será superior.

Questão de sobrevivência

Apesar da polêmica, a CCR demonstra tranquilidade em relação ao PIC. Sem ele para viabilizar os acordos de leniência, afirma a companhia, estaria sujeita a condenações por atos de corrupção que poderiam implicar desde o pagamento de elevadas multas (com base na Lei 12.846/13) até a declaração de idoneidade para contratar com o poder público (com base na Lei 8.666/93). “Temos plena convicção de que essa é a melhor decisão para a manutenção da CCR”, disse o diretor de RI na teleconferência. Os críticos discordam. Para eles, é eticamente condenável oferecer um incentivo financeiro a quem, moralmente, deveria colaborar de maneira voluntária. Provavelmente ciente da controvérsia que geraria, a CCR contou com o amparo de um parecer de José Alexandre Tavares Guerreiro, professor de direito comercial da Faculdade de Direito da USP, sobre o PIC.

Novidade em uma companhia aberta, o incentivo financeiro à colaboração no âmbito de acordos de leniência foi praticamente uma regra entre as empresas de infraestrutura investigadas nos últimos anos pelas forças-tarefa da Lava Jato. As ações do MP dão a entender que as autoridades não se contentam com o limitado material obtido por comitês independentes de investigação das empresas, nos moldes do que foi criado pela CCR em fevereiro de 2018 — os procuradores precisam saber o que têm a dizer as pessoas diretamente envolvidas nos ilícitos. No caso da CCR, os pagamentos mensais previstos pelo PIC são uma tentativa de impedir os envolvidos de cessar a colaboração assim que recebam os valores.

O programa foi defendido pela empresa, em 8 de abril, no mais recente CCR Day (evento que a companhia promove para discutir estratégias com investidores e analistas). Participaram do encontro, representando a empresa, advogados do porte de Marcelo Trindade e Pedro Testa — e eles reforçaram o mantra: sem a colaboração, haveria risco de quebra da companhia. Mas a plateia não se fez de rogada. Sobraram críticas também para o próprio rito de aprovação da proposta. Questionou-se, por exemplo, o cabimento da presença dos controladores da companhia na assembleia de deliberação do PIC — eles estariam, segundo a visão de alguns minoritários, em conflito de interesses por poderem auferir benefício particular com a aprovação do programa. Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Soares Penido detêm, em conjunto, 43% do capital social da CCR — integra, ainda, o grupo de controle a VBC Energia (na qual a Camargo Corrêa tem um terço de participação), com 1,5% de ações.

O benefício particular dos controladores residiria no fato de que o PIC incentiva os delatores a “poupá-los”. Uma vez que estão sendo remunerados e protegidos de custas advocatícias e de ações de indenização, eles teriam um estímulo bastante contundente para “aliviar” o relato de eventuais condutas ilícitas de executivos das empresas controladoras. Ocorre que, de acordo com o artigo 115 da Lei das S.As., o acionista não pode votar em assembleia que puder beneficiá-lo de modo particular ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia.

A interpretação motivou a abertura de reclamações na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), com pedidos para que impedisse o voto dos controladores — a autarquia, entretanto, não se manifestou a tempo da assembleia. Por enquanto, não há processo sancionador aberto.


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Protestos

Mais uma faísca para alimentar essa fogueira veio da proposta da administração relacionada ao PIC. O documento diz que os delatores devem, nas suas colaborações, seguir o código de ética da companhia. E o que diz o código de ética da CCR? Dentre outras coisas, que o administrador não pode prejudicar a empresa. Ou seja, na colaboração com as autoridades, os delatores devem ser, no mínimo, cuidadosos com informações que possam afetar negativamente a CCR. O MP, entretanto, pode invalidar a leniência se verificar que o delator não contou tudo o que sabia — o que, por consequência, também anularia o PIC.

A Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), em nota divulgada em 12 de abril, sugeriu que os acionistas controladores, “tendo em vista o próprio histórico de políticas exemplares da CCR na gestão de transações com partes relacionadas”, deveriam refletir sobre seu potencial conflito de interesses nessa deliberação. Ainda na perspectiva da Amec, considerando o “elevado número de administradores envolvidos em atos de corrupção”, as ações dos acionistas controladores deveriam ser avaliadas também sob o prisma de eventual abuso de poder — diz o artigo 117 da Lei das S.As. que configura abuso de poder do controlador a promoção da ratificação, em assembleia, de um ato ilegal que tenha cometido. E poderia entrar nessa caracterização eventual pressão dos controladores para “moldar” as delações.  Fontes da empresa com acesso ao PIC afirmam que não há indícios de participação dos controladores nos ilícitos investigados.

Outro ponto levantado pela Amec diz respeito ao fato de que a companhia teria ignorado indicações de investidores institucionais para renovar, na assembleia geral ordinária deste ano, seu conselho de administração. O board é composto majoritariamente pelos mesmos nomes da época em que ocorreram os esquemas de corrupção (do início dos anos 2000 a 2018). Considerando o grupo de 12 pessoas que integram o conselho da CCR, cinco das que permanecerão por mais um mandato já ocupam a cadeira há alguns anos — indicada pela Soares Penido, Ana Maria Penido Sant’Anna está há 11 mandatos consecutivos na posição; Paulo Roberto Reckziegel Guedes, indicado pela Andrade Gutierrez, está há 18; Henrique Sutton de Sousa Neves está há dez; Ricardo Coutinho de Sena está há dois; e Luiz Alberto Colonna Rosman, um dos três membros independentes, está há sete.

A recondução da presidente do conselho (Sant’Anna) e do vice-presidente (Sena) também foi criticada pelas consultorias especializadas na orientação de votos de acionistas estrangeiros Institutional Shareholder Services (ISS) e Glass Lewis — que foram contrárias ao PIC. Elas recomendaram que os acionistas não aprovassem o programa, por considerarem que esse não seria um uso adequado para os recursos dos acionistas e por falta de transparência em relação aos detalhes do programa.

Apesar dos protestos, o PIC foi aprovado por 68% do capital votante, conforme ata da AGE de 22 de abril, publicamente divulgada em formato de sumário. O fundo de investimento Galt Partners, detentor de 500 ações da CCR, apresentou voto e protesto contra a aprovação do programa. Na manifestação, afirma que os controladores, por meio de seus conselheiros de administração, tiveram acesso integral aos termos acordados na leniência, mas “jamais permitiram” sua disponibilização integral para o restante dos acionistas — sem isso, eles não teriam como avaliar o PIC de maneira adequada. O fundo diz ainda que não há “clareza sobre a extensão e os limites dos atos ilícitos confessados nos acordos e de seu real impacto financeiro” e questiona a extensão da responsabilidade dos administradores e controladores nas ações.

Importante destacar que, embora a assembleia tenha aprovado o PIC, nada impede a CVM de punir os controladores se verificar que eles votaram em conflito de interesses.

Nova fase?

Em meio ao barulho gerado pela aprovação do programa, a CCR tenta levantar a moral. Conforme apresentou no CCR Day, há oportunidades de licitação de 11 novas concessões em rodovias federais até 2021, relicitação de quatro concessões de rodovias estaduais até 2022 e cinco novas licitações de mobilidade urbana para o mesmo ano, além de outros negócios que poderão ser concretizados em breve. Outro destaque é a nova gestão em práticas de governança da CCR, com a chegada do vice-presidente de compliance, Pedro Sutter — a área passará a atuar de modo segregado do restante da estrutura executiva da companhia. Além disso, a CCR afirma estar revendo o controle do seu processo decisório, bem como suas políticas de transação com partes relacionadas e de remuneração.

Essas sinalizações são importantes para oferecer algum ânimo aos investidores. Entre outubro e dezembro do ano passado, a CCR apresentou seu primeiro resultado trimestral negativo — o prejuízo foi de 307,1 milhões de reais. Algumas das fontes consultadas pela reportagem dizem temer a existência de irregularidades em outros projetos da CCR pelo Brasil — como na concessão do Metrô Bahia, em Salvador —, o que poderia gerar novos acordos e mais desembolsos. O diretor de RI da CCR descarta essa possibilidade. Segundo ele, não há nada que o comitê independente da companhia tenha apurado que não esteja contemplado nos dois acordos recentes. Os investidores, entretanto, permanecem receosos. Ainda mais diante do novo rótulo — a primeira companhia aberta brasileira a financiar delatores.


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