Genética sustentável
Como a disseminação do capitalismo consciente está mudando o jeito de as empresas fazerem negócios
, Genética sustentável, Capital Aberto

Ilustração: Rodrigo Auada

“Vocês saem de casa antes do amanhecer e só retornam quando está escuro. Embora trabalhem muitas horas por dia, suas famílias continuam pobres, vivendo em lugares fétidos, com a água e o ar poluídos.” O discurso convoca trabalhadores para uma greve no filme “A classe operária vai ao paraíso”, do diretor Elio Petri, de 1971. Em resposta ao chamado, o funcionário-padrão Ludovico Massa dá de ombros e apenas tosse, vítima de uma úlcera contraída após anos de trabalho numa fábrica de tintas. A cena clássica do cinema italiano é uma entre as incontáveis imagens construídas para se denunciar a exploração da mão de obra e a destruição do ambiente causadas pelo avanço do capitalismo industrial, com sua obsessão por lucros crescentes, cultura de individualismo e indiferença em relação aos excluídos.

Quase cinco décadas depois, ganha força a contestação à lógica de exploração humana e consumo desmedido de recursos naturais — mas num campo bem distinto do que era familiar a Petri, um intelectual de esquerda. Agora são fundadores e sócios de pequenas, médias e grandes empresas e gestores de fundos de investimento que propõem e cobram modelos “conscientes” de negócios. Muitos já se deram conta de que, no contexto do século 21, é imperativo que se perceba a possibilidade de obtenção de lucros com respeito às pessoas e ao ambiente. Não foi à toa que o chairman da gigante BlackRock, Larry Fink, enviou no início deste ano uma carta aberta a CEOs de centenas de empresas, ressaltando que, dado o dever fiduciário da gestora de proteger os interesses de seus investidores, não poderia mais apoiar empresas que não atentem para critérios de sustentabilidade e que não tenham preocupação com impactos sociais.

Disseminação

A tendência já chegou ao Brasil, onde está em plena disseminação. Pioneira nessa seara por aqui, a Natura tornou-se um gigante internacional, com faturamento de 11,5 bilhões de reais em 2017 e um time de 17 mil colaboradores (já somados os números da The Body Shop, marca britânica adquirida no ano passado), sobre um alicerce de preocupação social e ambiental. “A Natura teve o privilégio de apresentar uma proposta sustentável desde sua origem, graças à visão de nosso fundador, Antônio Seabra. O tempo demonstrou que, além de responsável com as pessoas e o planeta, esse caminho foi também o mais inteligente do ponto de vista da lucratividade”, afirma Luciana Villa Nova, gerente de sustentabilidade da Natura, destacando a dimensão que a companhia alcançou. A empresa se notabiliza por práticas como o uso de embalagens ecologicamente corretas, pela valorização da biodiversidade brasileira e pelo modelo de negócio que integra à cadeia produtiva pequenos fornecedores agroextrativistas.

Ao contrário da Natura, a fabricante americana de carpetes Interface não nasceu com esse DNA. Tendo a produção dependente de derivados do petróleo, a empresa, fundada em 1973 e atuante no Brasil desde os anos 1990, já chegou a ser definida pelo seu criador, Ray Anderson, como “saqueadora” da natureza. Claudia Martins, vice-presidente da Interface no Brasil, conta que, a partir de 1994, a companhia empreendeu uma mudança radical nos processos produtivos para eliminar desperdícios, reduzir emissões de gás carbônico (resultantes do processamento de hidrocarbonetos, como o petróleo) e desenvolver matérias-primas amigáveis ao ambiente. “Não estamos em um jogo de curto, médio ou longo prazo: queremos participar de um jogo infinito”, resume. A meta da companhia, perseguida num programa batizado “missão zero”, prevê a eliminação de impactos ambientais negativos até 2020.

Investe agora, ganha depois

Na avaliação de Roy Martelanc, professor de economia da USP, é ingênuo pensar que a opção pelo caminho sustentável não impacta os custos das empresas no curto prazo, mas ele observa que há ganhos econômicos ao longo do tempo. “A conduta ética e sustentável tem muitas vantagens. Os colaboradores, por exemplo, ficam mais produtivos e dedicados quando percebem estar trabalhando para uma companhia que tem um propósito mais elevado”, afirma. E esse sentido de propósito tende a contagiar também fornecedores e clientes. “Do ponto de vista de marketing e precificação, já está demonstrado que empresas percebidas como éticas e sustentáveis podem posicionar seus produtos como superiores aos dos competidores e, eventualmente, cobrar mais por eles”, acrescenta. Inseridas nesse contexto, elas também passam a valer mais, revela um estudo da Universidade Harvard. Ao longo de 18 anos (de 1992 a 2010) os pesquisadores acompanharam os desempenhos de 675 companhias americanas de capital aberto divididas em alto e baixo graus de sustentabilidade — considerando fatores tão diversos quanto igualdade de gênero e coleta de produtos sem uso —, excluindo o setor financeiro. A conclusão: as empresas mais sustentáveis apresentaram valorização de 33 vezes no período estudado, enquanto para as outras da amostra esse fator ficou em 26 vezes.

Mais um aspecto importante está relacionado à longevidade corporativa. Na avaliação de Henrique Luz, sócio da PwC, apenas companhias preocupadas com a sustentabilidade dos seus negócios terão sua perpetuidade garantida. “A PwC [fundada em 1849] só conseguiu sobreviver e passar de uma geração de fundadores para as seguintes porque tinha uma visão de prazo infinito para seus negócios. Com a crescente escassez de recursos, esse pensamento é imperativo para qualquer empresa que planeje perenizar sua existência”, afirma Luz.

Além de ajudar a melhorar o desempenho de longo prazo das empresas tradicionais, a onda sustentável fundamenta negócios em setores que nem existiam até há algum tempo. Um bom exemplo é a companhia de tratamento de resíduos líquidos industriais Okena. “Quando criei a empresa, parecia uma maluquice dizer que eu ganharia dinheiro transportando água suja”, comenta o fundador, Ricardo Glass. Das instalações de tratamento de resíduos químicos e biológicos de Itupeva, na região de Campinas, são despachados caminhões para recolhimento de sobras industriais em todo o território paulista — o processo evita descarte inadequado. A vantagem do serviço é evidente, já que as indústrias conseguem driblar a necessidade de construir estruturas próprias de tratamento e o risco de processos por eventuais danos ambientais.

O que falta?

Para Glass, que preside o braço brasileiro da organização latino-americana Sistema B, apoiadora de empresas que querem tornar sua atuação mais sustentável e ética, muitos dos problemas da humanidade podem ser resolvidos com a força do setor privado. A organização concede o selo B Corp. a companhias aprovadas em seu processo de certificação, que mede o impacto causado por elas em cinco dimensões: governança, modelo de negócios, impacto ambiental, relações com a comunidade e relações com seus colaboradores. Empresas dos mais variados tamanhos (de startups a multinacionais) e setores (de vestuário artesanal a gestoras de patrimônio) já receberam a certificação. No Brasil são 85 — entre elas, além de Natura e Okena, estão Vox Capital, AZ Quest, Grupo Gaia e Mãe Terra, só para citar os nomes mais conhecidos. O interesse em comum está na transformação do capitalismo exclusivamente voltado ao acúmulo de dinheiro num sistema em que o lucro seja um meio e não um fim em si. Marcel Fukayama, cofundador do Sistema B Brasil, ressalva que, embora as empresas estejam se movimentando nesse sentido, ainda falta ousadia no mundo corporativo. “Não sei se o planeta nos dará tempo para ajustar nosso modo de produção, dado o estado avançado da degradação do ambiente”, alerta.

O professor Martelanc pondera que a ação voluntária das empresas é um item importante para a transformação do modo de produção capitalista em um sistema compatível com as limitações do da natureza, mas insuficiente. Ainda faltam, afirma, maior engajamento da sociedade civil e acordos internacionais. “Infelizmente, em meio a muitas iniciativas louváveis e verdadeiras, existe o ‘green washing’, que é a criação de uma fachada de sustentabilidade com fins de marketing, sem real efeito sobre o modo de produção”, destaca, referindo-se aos notórios exemplos de empreiteiras envolvidas em escândalos políticos e empresas do agronegócio acusadas de pagar propina para obter benefícios escusos — muitas até pouco tempo atrás exibiam prêmios pela atuação supostamente sustentável. Mas como sugere a rejeição de consumidores (com boicotes à compra de produtos) e investidores (com a venda maciça de ações na bolsa) a essas empresas, o espaço para ações antiéticas e ambientalmente irresponsáveis no mundo corporativo tem se estreitado cada vez mais.


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