Admiráveis novas máquinas
As tecnologias que, inevitavelmente, vão revolucionar a economia e o mercado de capitais
Ilustração: Grau 180

Ilustração: Grau 180

Sem a ajuda do robô R2-D2 os heróis da Aliança Rebelde dificilmente teriam vencido os vilões do Império na saga Guerra nas Estrelas. Já a tripulação da nave espacial de 2001: Uma Odisseia no Espaço virou presa do computador Hal, que, preocupado em garantir a própria sobrevivência, se voltou contra os humanos que supostamente deveriam controlá-lo. As fantasias que há anos alimentam o universo da ficção científica começam a se concretizar no mundo real. E a dúvida persiste: será a tecnologia uma aliada dos seres humanos ou a sua perdição? No mundo das finanças, algoritmos substituem gestores de recursos na tomada de decisões, entre outras inovações que já impactam os negócios do mercado de capitais. O futuro, acreditem, está cada vez mais próximo de nós.

Inteligência artificial e big data

Uma das teses de investimento que fundamenta a indústria de private equity é a de consolidação de um setor fragmentado. Tradicionalmente, o fundo investe em uma companhia de porte médio e, por meio dela, adquire várias outras menores. É um esforço e tanto: uma equipe precisa se dedicar a descobrir e a analisar vários pequenos e médios negócios, verificar se o alvo potencial tem boa reputação e, depois disso tudo, na fase de due diligence, conferir se a empresa tem passivos fiscais e trabalhistas que ameacem a negociação. Na escala humana demora semanas, talvez meses. “Computadores com bons algoritmos fazem tudo isso em minutos. É muito ganho de eficiência”, diz Frank Meylan, sócio da KPMG.

O que chamamos de inteligência artificial — ramo da ciência da computação que busca elaborar dispositivos não biológicos que simulem a capacidade humana de analisar, raciocinar, tomar decisões e resolver problemas levando em consideração o máximo de informações disponíveis — percorre em pouco tempo várias bases de dados para fazer esse trabalho de avaliação: sites do Judiciário, para verificar se há processos contra a companhia; páginas como Reclame Aqui, para conferir as reclamações de consumidores e como a empresa responde a elas; Twitter e Facebook, para identificar os sentimentos do público com relação à marca. A lista é extensa.

Gestoras de recursos já utilizam essa tecnologia, com o reforço de imagens de satélites, para obter outros tipos de informações valiosas. Com essa estratégia, é possível descobrir, por exemplo, a variação da quantidade de veículos parados nos estacionamentos de lojas de determinado varejista listado em bolsa em certo período. Mais vagas disponíveis sinalizam menos movimento e vendas menores — ótimo motivo para o investidor considerar ficar vendido naquela ação. Típica estratégia fundamentada em big data — termo que designa uma grande quantidade de dados, organizados ou não. Hoje, empresas que operam com essa tecnologia analisam essa montanha de dados para dela extrair informações que possam ser compreendidas e utilizadas para fins práticos. “A tecnologia está tornando os gestores mais preditivos e menos reativos”, observa Brad Bailey, diretor de pesquisa da Celent, consultoria especializada em tecnologias para o mercado financeiro.

Um levantamento divulgado em maio passado pela Crisil, braço de pesquisa e análise da S&P, mostrou que 82% dos gestores entrevistados pretendiam aumentar seus investimentos na área de big data neste ano em relação a 2016, para encontrar boas oportunidades de investimento, conquistar clientes e identificar e administrar riscos. “A competição entre gestoras migrou do ‘eu tenho mais dinheiro e mais talentos que você’ para ‘minha tecnologia é melhor que a sua’”, comenta Oliver Cunningham, sócio da KPMG.

Fundos quantitativos

Não é raro que um time de bons e caros analistas de investimentos leve bastante tempo dissecando múltiplos para decidir se uma empresa está ou não subprecificada e, com isso, tomar uma decisão. Pois um computador hoje é capaz de fazer esse mesmo trabalho, simultaneamente para várias empresas — em segundos. Já faz alguns anos que a tecnologia, sob a forma de algoritmos de negociação em alta frequência (HFT, na sigla em inglês), vem substituindo os gurus da análise gráfica. Agora, ela está tomando a função dos fundamentalistas.

No lugar daqueles hedge funds que se orientam pela figura carismática de bons gestores como Carl Icahn — estratégia que a indústria chama de “discricionária” — emergem os quantfunds, que usam uma estratégia “sistemática”, apoiada em algoritmos, para decidir qual ativo tem mais chances de valorização ou desvalorização. Levantamento do banco de investimentos Barclays divulgado em junho deste ano estimou que 17% dos hedge funds (que têm 500 bilhões de dólares sob gestão) já usam métodos sistemáticos para investir. No Brasil, destacam-se os fundos Azul Quantitativo, da gestora RMW Investimentos (120 milhões de reais sob gestão) e o Hiprob, da Smartquant Investimento (20 milhões de reais na carteira).

A competição entre as assets mudou de “eu tenho mais dinheiro e talentos que você” para “minha tecnologia é melhor”

Esse cenário até pode sugerir que as máquinas hoje ganham dos humanos, mas dados publicados em julho pela consultoria Preqin revelam que os fundos discricionários da amostra que analisou tiveram retorno médio de 13,28% em 12 meses, enquanto os sistemáticos ficaram com 6,2%. Por enquanto não existe uma explicação única para essa diferença, mas há alguns palpites. A resposta pode estar no fato de haver certas assimetrias de informação que as máquinas ainda não são capazes interpretar; talvez o resultado do estudo da Preqin sinalize que a intuição humana ainda tenha algum valor. Mas a revanche das máquinas pode ser só questão de tempo: elas estão sendo aperfeiçoadas para também analisar sentimentos. Interpretando o tom de postagens em redes sociais, por exemplo, elas teriam condições de descobrir se agentes de mercado, consumidores e empresários estão otimistas ou pessimistas com a economia em geral ou com algum setor ou empresa.

E os avanços podem ir mais longe. De acordo com estudo coordenado por Xiaobai Li, da Universidade de Oulu, na Finlândia, e divulgado em novembro de 2015, computadores já são mais eficientes que humanos na leitura de “microexpressões”, pequenas variações de movimentos faciais que revelam como uma pessoa está se sentindo. Logo, para que interpretar só as mensagens verbalizadas?

Fintechs

Desigualdade entre ricos e pobres é um dos grandes temas deste início de século, e muitos acreditam que a tecnologia só vai piorar essa realidade: aos donos das máquinas, tudo; às pessoas comuns, nada. Mas há quem aposte justamente no contrário. “Mais do que nunca o cidadão médio vai ter acesso a oportunidades de investimentos que só estavam disponíveis para os mais ricos, e pagando taxas muito baixas por isso”, afirma Luciano Tavares, CEO da Magnetis, consultoria brasileira que recomenda investimentos por meio de robo-advisors — algoritmos que analisam o perfil e os objetivos do cliente para indicar as melhores opções.

A Magnetis é uma das várias empresas que fazem parte do universo das fintechs. O termo é abrangente. Inclui startups que montam algoritmos de coleta e análise de dados financeiros, plataformas de empréstimo e crowdfunding, administradoras de meios de pagamento, entre outras. “Antes tudo se concentrava no banco, que cobrava taxas e juros altos; hoje existe uma variedade muito maior de prestadores de serviço financeiros”, observa Tavares.
Os grandes bancos sentiram a ameaça. No começo de 2015, o Goldman Sachs publicou um relatório dizendo que as fintechs poderiam tirar 4,7 trilhões dos 13,7 trilhões de dólares de receitas anuais dos bancos tradicionais. Foi naquele ano, aliás, que o investimento em fintechs no mundo alcançou o recorde de 46,7 bilhões de dólares — em 2016, o total caiu para 24,7 bilhões de dólares e nos primeiros dois trimestres de 2017 somou 11,6 bilhões de dólares, de acordo com dados da KPMG. A maior parte desses investimentos vem de fundos venture capital e private equity.

Ciente de que não pode deter o avanço das fintechs, o sistema financeiro tradicional também apoia essas empresas. É crescente a participação dos fundos de corporate venture, que são braços de investimentos de grandes empresas — e, nesse caso, principalmente de bancos — nas startups de tecnologia financeira. Esses fundos participaram de 15% dos acordos envolvendo fintechs em 2015, de 17% em 2016 e de 21% na primeira metade deste ano.

O próprio Goldman Sachs já investiu em várias delas, incluindo a brasileira Nubank. O espanhol BBVA todo ano promove o desafio “Open Talent”, programa que busca identificar fintechs promissoras. É possível que os grandes bancos de hoje se transformem em empresas de participação que controlam ou têm fatias minoritárias em várias fintechs diferentes. Talvez todo esse movimento resulte em uma espécie de “mais do mesmo”: a prestação de serviços financeiros ficaria descentralizada, mas o poder econômico e político continuaria nas mãos de poucas empresas.

Regtechs

Ao mesmo tempo em que a tecnologia, sob a forma de fintechs, promete tirar clientes dos bancos, ela pode torná-los mais eficientes, ao automatizar processos que hoje estão em mãos humanas. O Goldman Sachs, por exemplo, relatou à Bloomberg ter diminuído sensivelmente a quantidade de horas dedicadas por seus empregados a trabalhos relacionados a ofertas públicas iniciais de ações (IPOs), um dos serviços mais lucrativos para o banco. Hoje, um software consegue verificar se as exigências regulatórias estão sendo cumpridas, preencher formulários e gerar relatórios. A instituição garantiu que a novidade não gerou demissões e afirmou ter sido possível liberar profissionais para relacionamento com clientes e elaboração de estratégias de marketing, atividades que (ainda) dependem de sensibilidade, tato e intuição.

Isso não significa que as fintechs não ameacem o trabalho humano. As chamadas regtechs, um subtipo de fintech, atraem cada vez mais atenção ao garantir aos usuários a diminuição dos gastos com contratação de profissionais de compliance. Essas empresas oferecem basicamente o rastreamento de normas regulatórias. A americana Quarule, fundada em 2014, tem como carro-chefe um produto que facilita a identificação, a análise e a gestão de riscos internos, compliance e prestação de informações a reguladores — tudo feito por máquinas.


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O cenário enseja a questão: será que os reguladores vão conseguir acompanhar esse ritmo de desenvolvimento de tecnologias? Em fevereiro deste ano, a International Organization of Securities Commissions (Iosco) lançou um relatório observando que caminhamos para um mundo em que a desintermediação será cada vez maior: plataformas de empréstimo ou de crowdfunding, por exemplo, diminuem a distância entre investidor e investida. A Iosco vê a revolução com bons olhos, justamente porque investidores terão mais opções a um custo menor, mas admite que proteger a poupança popular nesse contexto será muito mais desafiador.

As regtechs podem de fato dar uma força nessa área. A irlandesa Vizor desenvolveu um software que analisa em tempo real as informações apresentadas pelos regulados e já tem entre seus clientes o Banco Central da Inglaterra, a autoridade monetária da Arábia Saudita e a comissão de valores mobiliários das Bahamas. Outras startups dizem ser capazes de identificar fraudes com facilidade. Ainda assim, fica a dúvida de se reguladores, em geral financiados com escassos recursos estatais, vão conseguir se manter atualizados.
Para Cunningham, da KPMG, o melhor caminho é seguir o exemplo da Financial Conduct Authority (FCA), do Reino Unido, que criou um espaço para experimentações, conhecido como “regulatory sandbox”. Trata-se de um ambiente de regulação menos rígida, em que companhias podem testar novos serviços e tecnologias por um período enquanto o regulador observa; a ideia é que use esse aprendizado para a elaboração de regras futuras. No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) dá passos mais tímidos. Em junho deste ano, publicou os resultados da primeira pesquisa on-line feita para mapeamento de fintechs que operam no País.

Blockchain

Blockchain é outra palavra que conquista popularidade — designa a tecnologia por trás de moedas digitais (como o bitcoin) e de outras estruturas virtuais. Trata-se de um banco de dados descentralizado, que registra todas as operações feitas com ativos digitais e prescinde de autoridades centrais que garantam legitimidade e autenticidade de transações financeiras, como câmaras de custódia e compensação. A estrutura pode se encaixar perfeitamente às necessidades de agilidade e redução de custos do mercado de capitais, e não à toa já há quem teste a implantação dessa tecnologia — casos da Nasdaq e da bolsa australiana ASX. No Brasil, B3 e Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) analisam de forma bastante ativa as formas de adaptação da blockchain à realidade do mercado nacional.

No exterior, existem até startups que operam com esse sistema vendendo fatias de blockchain nos chamados “ICOs” (initial coin offering), uma alusão ao termo IPO. De acordo com Flávio Fujita, advogado do Zilveti Advogados, o mecanismo não envolve a aquisição de uma fração, juridicamente falando, dos direitos da empresa emissora, mas sim de um bloco (chamado de token) da própria blockchain. Os tokens, tal como o bitcoin, são ofertados como uma nova criptomoeda, que pode ser facilmente vendida sem qualquer intermediário, caso haja demanda. Como a empresa emissora deve necessariamente atuar no ramo de blockchain, observa, o token pode ser um “pedaço” do próprio projeto.

Na visão de Fábio Radacki, diretor da Accenture, a adoção da blockchain por bancos de investimento, corretoras e bolsas de valores representará uma inovação poderosa, capaz de reduzir drasticamente o tempo de compensação de valores, eliminar fraudes e cortar custos. Um uso mais intensivo da blockchain, contudo, depende de regulação — não há no mundo legislação específica que regulamente o uso dessa plataforma, mas projetos-piloto já obtiveram o aval de governos como os de Estados Unidos, Cingapura e Austrália.
Fato é que por enquanto é impossível saber até que ponto a blockchain e as demais tecnologias citadas nessa reportagem irão avançar e se propagar no mercado. Também é incerta a maneira como elas vão interagir entre si e se disso podem surgir inovações capazes de suplantar todas as outras. Não sabemos se o futuro está mais para R2-D2 ou para Hal. Mas uma coisa é certa: será um privilégio acompanhar o desenvolvimento dessas “admiráveis novas máquinas”.

O que será do amanhã?

Obviamente não dá para prever o futuro, mas nada nos impede de lançar hipóteses. Confira algumas das apostas de especialistas para os efeitos das novas tecnologias.

Excesso de simetria

Quanto mais máquinas analisando informações e a elas respondendo, menor a assimetria de informações no mercado. A consequência? Variações muito pequenas nos preços dos ativos no curto prazo, o que reduz o ganho de traders. Na avaliação de Oliver Cunningham, sócio da KPMG, se isso acontecer, a tendência é que boa parte do dinheiro que está investido em ativos públicos, sobre os quais as informações são mais abundantes — como empresas de capital aberto ou títulos de governos, por exemplo —, se desloque para o mercado privado. Ruim para as bolsas de valores, que já vêm observando uma queda na quantidade de ofertas iniciais de ações (IPOs) nos últimos anos; bom para os fundos de venture capital e private equity, que investem em empresas de capital fechado. E essa mudança representa uma preocupação adicional para os reguladores, à medida que ativos pouco transparentes podem se tornar a preferência de investidores em busca de retorno.

 

O olho que tudo vê

É possível que você nunca tenha ouvido falar da Tencent, mas a empresa chinesa já é uma das maiores companhias de tecnologia do mundo. Ela é a dona do aplicativo WeChat, que tem pelo menos 930 milhões de usuários ativos — na sua maioria chineses, que usam a ferramenta para fazer compras, contratar serviços, transferir dinheiro, conhecer pessoas, fazer amigos, pesquisar restaurantes, poupar, ler notícias e muito mais. Se os entusiastas das fintechs acreditam em um mundo em que os investimentos serão cada vez menos centralizados em bancos, o WeChat sinaliza uma realidade em que todas as suas decisões financeiras (e românticas e sociais e intelectuais) passarão por uma única empresa. É prático, mas tem um custo intangível — todas as escolhas serão acompanhadas pela provedora do serviço. Pode ser não só o sepultamento da privacidade, mas também um freio à liberdade. Ao conhecer preferências e hábitos dos usuários, ficará fácil para o aplicativo sugerir o que se deve comprar, em que se deve investir, quem se deve conhecer — é ele, no limite, quem vai dizer como um ser humano deve viver.

 

Falta de empregos

Inovações tecnológicas substituem o trabalho humano já faz tempo. Economistas costumam tratar o assunto com certa indiferença — em geral eles argumentam que o ganho de eficiência e produtividade é benéfico para a sociedade, que a mão de obra liberada pela tecnologia pode se reposicionar em profissões melhores e que a obsolescência de certos trabalhos é compensada por novas funções. Isso não significa que algumas das previsões para a chamada revolução industrial 4.0 não sejam sombrias. É bem possível que mais postos de trabalho sejam eliminados do que criados. E, se antes as máquinas substituíam apenas trabalhadores pouco qualificados, agora elas prometem jogar para escanteio muita gente com diploma de MBA. Não à toa, o Fórum Econômico Mundial vem refletindo sobre alternativas para as sociedades lidarem com a nova realidade. A ideia de uma renda mínima que redistribua os lucros gerados pelas empresas automatizadas já foi tabu, mas agora é cada vez mais levada em consideração.


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