Observando o passado recente, descreveria a trajetória macroeconômica brasileira em minha vida adulta como uma série de crises espaçadas por breves períodos de recuperação. Deste ângulo, a narrativa do professor John Schulz sobre A crise financeira da abolição não surpreende, pois nossa criatividade para promover crises parece ter raízes remotas. O relato cobre um período amplo da história do Brasil, com foco no ambiente político-econômico entre a queda do Império e a década seguinte à proclamação da República (de 1820 a 1900, aproximadamente).
Embora o título da obra realce os efeitos do processo de abolição da escravatura sobre a estrutura produtiva do País, a narrativa acaba pintando um quadro mais amplo dos desafios econômicos do período e do desenvolvimento brasileiro. Em 1883, os cerca de 1,5 milhão de escravos no Brasil representavam 13% da população e a esmagadora maioria da força produtiva na agricultura, que era o motor da economia naquela época. As pressões por mudança, no entanto, já vinham se avolumando havia tempos e desembocaram na promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871. Os fazendeiros, parte importante da classe dominante no período, queriam do governo subsídios e reformas para ajudar a reorganizar sua produção, numa demanda que ficou conhecida por “política de braços e capitais”. Naturalmente, essa modificação provocou a necessidade de uma reforma financeira no país, que só poderia ser conduzida pelas autoridades político-econômicas da época.
Para conseguir novos braços, o governo promoveu uma série de medidas para atrair imigrantes europeus, que foram enviados principalmente para as emergentes lavouras de café no interior de São Paulo. Mas foi a política monetária que levou o País a sucessivas crises naquele momento. Os políticos perceberam a necessidade do crédito fácil para acalmar os fazendeiros e aproveitaram um período de empréstimo externo abundante (vindo da Inglaterra) e preços agrícolas elevados para promover frouxidão monetária. Além disso, cometeram alguns abusos ainda mais graves, como a permissão para bancos privados imprimirem dinheiro.
Esse ambiente de lassidão financeira travestida de prosperidade criou as condições ideais para o aparecimento de uma bolha especulativa, que ficou conhecida como Encilhamento. Por fim, conforme estamos cansados de saber hoje em dia, o excesso de oferta monetária depreciou o câmbio acentuadamente, transformando-se em inflação, e o balanço dos bancos ficou muito frágil. Isso levou a uma grave crise financeira sistêmica.
É interessante avaliar as escolhas econômicas do passado, quando esse conhecimento ainda não estava organizado de forma que permitisse decisões fundamentadas. Mesmo hoje, dispondo de um arcabouço metodológico para examinar causas e efeitos de políticas econômicas no processo de fazer escolhas, a sociedade fica à mercê de resoluções imediatistas de caráter descaradamente fisiológico. Levando em conta o ambiente do século 19 — o nível educacional era muito baixo e o chamado quarto poder, a imprensa, ainda engatinhava —, não surpreende a enorme transferência de riqueza da sociedade para as elites ligadas à agricultura, no bojo da transformação abolicionista. Difícil é aceitar que tais práticas persistam no mundo atual, disfarçadas de subsídios fiscais e nacionalismo (leia-se protecionismo) hipócrita.
A crise financeira da abolição, John Schulz. Edusp. 275 páginas. 2ª edição, 2013
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