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O Direito concorrencial em tempos de pandemia
Eventuais alterações em leis não devem ser interpretadas como isenções legais ao Direito antitruste
O Direito concorrencial em tempos de pandemia

Imagem: Freepik

A pandemia de covid-19 provocou enormes problemas para todos os países, de ordem sanitária e também econômica e social. No Brasil, destaca-se dentre as iniciativas legislativas em resposta a parte dos desafios a Lei 14.010, de 10 de junho de 2020. Com o declarado objetivo de endereçar especificamente várias questões atinentes às relações jurídicas de Direito privado, o substitutivo prevê, em seu artigo 14, medidas que afetam a disciplina do Direito antitruste e sobre as quais cabem alguns comentários.   

De início, ressalve-se, como panorama geral, que mesmo em situações extraordinárias o Direito concorrencial brasileiro se consolidou como refratário à isenção antitruste. Inexiste em nosso ordenamento previsão legal para isenções antitruste em bloco — mais adotadas, por exemplo, em países europeus e já utilizadas por algumas jurisdições em função da pandemia¹No caso brasileiro, além da ausência de previsão legal para exceções em bloco, a jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é contrária à aceitação de cartéis de crise, mesmo em situações de dificuldades significativas em um setor de atividade econômica² 

A ausência de fundamento expresso na legislação concorrencial em vigor e na jurisprudência do Cade pode ser vista como um comprometimento forte do ordenamento jurídico brasileiro com uma solução de mercado para ajustes setoriais de oferta e demanda ou pode ser lida como uma visão limitada da questão concorrencial como uma política pública, a depender da linha de pensamento adotada quanto ao papel e aos objetivos do Direito concorrencial. Essinteressante discussão é, todavia, extensa para ser tratada em um breve comentário à nova lei.  

Riscos de oportunismo concorrencial 

Apesar da amplitude das medidas emergenciais fazer sentido em função da magnitude dos efeitos da pandemia, a adoção de remédios excepcionais com relação a diversos setores aumenta também a extensão dos riscos de oportunismo. Nesse sentido, observe-se, por exemplo, que nos Estados Unidos o DOJ e a FTC (órgãos responsáveis pela defesa da concorrência no paísemitiram um comunicado conjunto no dia 24 de março de 2020³ indicando que as circunstâncias excepcionais seriam levadas em conta nas decisões e que nessperíodo as colaborações entre competidores seriam analisadas em sete dias úteis, de forma a dar segurança jurídica para as medidas necessárias em função da epidemia. 

comunicado conjunto também indicou critérios específicos para a aprovação de atos de cooperação entre competidores durante a pandemia. Por outro lado, informaram os agentes estatais que a legislação concorrencial continua válida, sendo que quaisquer abusos quanto à duração temporal e ao escopo dos acordos seriam punidos. Na Europa a linha seguida foi similar, adotando-se uma estrutura temporária de análise de atos durante a pandemia. Ainda, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 30 de abril publicou um breve comunicado (COVID-19: Competition policy actions for governments and competition authorities), no qual também aponta para a necessidade de manutenção das preocupações concorrenciais mesmo no cenário atual.  

Aqui se pode afirmar que as isenções setoriais — ainda em maior grau uma ampla suspensão da análise concorrencial (mesmo que sujeita a restrições temporárias e a algumas condutas) — geram riscos significativos. Isso pode acontecer tanto pela possibilidade de atos colaborativos desnecessários do ponto de vista da crise, quanto por acordos necessários, mas que tenham uma ampliação de escopo e duração que gerem efeitos anticompetitivos não razoáveis. Ademais, deve-se observar que pode haver uma persistência dos efeitos anticoncorrenciais dos atos que inicialmente se fazem necessários, em função de mudanças futuras do contexto da pandemia.  

Colaboração entre competidores, um tema complexo 

Cabe, portanto, a reflexão acerca da capacidade do Direito concorrencial de lidar com questões como essa com base nas categoriais atualmente disponíveis. A colaboração entre concorrentes é um dos mais complexos aspectos do Direito concorrencial e a situação atual de pandemia pode servir para mostrar a insuficiência das categoriais tradicionais para lidar com a questão — em especial a divisão entre restrições puras (naked restraints, aquelas que têm como efeito principal e necessário a redução da rivalidade) e restrições auxiliares (ancillary restraints, que têm como objetivo principal a produção de eficiências, mas têm efeitos colaterais de caráter anticompetitivo). 

Deve-se pontuar também um desafio adicional que é a possibilidade, com base na alteração legislativa — embora emergencial e temporária — de que julgamento de cartéis não mais ocorra com base na regra per se, mas sim por meio da regra da razão. Afinal, a previsão de que a análise pela autoridade deverá considerar as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia impõe a avaliação de eventuais efeitos benéficos à sociedade. 

Como a classificação entre naked e ancillary restraints propõe apenas uma estrutura básica de análise, a avaliação da realidade deverá ser detalhada por meio da regra da razão. Entretanto, com a sinalização de autoridades concorrenciais no sentido de respostas mais rápidas que o usual (e a urgência da sociedade exige rapidez), a utilização de um nível elevado de regra da razão pode tornar-se inviável. Portanto, o advento da pandemia parece ter aberto a oportunidade para se pensar em standards que capturem de forma mais precisa as nuances necessárias para uma decisão adequada, em especial sobre os efeitos da transmissão de informação entre os concorrentes em um cenário de incertezas, mas buscando-se a manutenção de um nível adequado de rivalidade e o atendimento das necessidades de enfrentamento da crise. Não seria razoável esperar que uma proposta legislativa solucionasse essas questões, mas a problemática posta pode ser útil na análise e interpretação da Lei 14.010/20, e da própria Lei 12.529/11, que regula o sistema brasileiro de defesa da concorrência  

Conteúdo da Lei 14.010/20 

Analisando de forma mais direta o seu conteúdo, segundo o artigo 14 do substitutivo, fica sem eficácia, de 20 de fevereiro a 30 de outubro de 2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública (em princípio até 31 de dezembro deste ano, conforme o Decreto-legislativo nº 20/03/3030), a aplicação dos incisos XV e XVII do § 3º do art. 36 e do inciso IV do art. 90 da Lei 12.529/11 

Com relação à expressa menção dos incisos XV e XVII, nos parece desnecessária, pois os próprios dispositivos (específicos sobre a venda de mercadorias ou prestação de serviços abaixo do preço de custo, bem como para cessação parcial ou total das atividades da empresa) ressalvam a possibilidade de ação dos agentes econômicos mediante justificativa. E como o rol do §3º do artigo 36 da Lei 12.529/11 é meramente exemplificativo, a suspensão de alguns dos seus incisos pode ser ineficaz. 

Já com relação ao inciso IV do art. 90, referente à celebração de contratos associativos, consórcios ou joint ventures independentemente de submissão ou aprovação prévia pelo Cade, a menção nos parece oportuna para permitir atos de parceria ou de reorganização que permitam aos agentes econômicos sobreviver à criseprincipalmente em setores mais sensíveis — a exemplo do segmento de transporte aéreo de passageiros, em que as companhias devem ampliar o uso de instrumentos colaborativos, como o code share, como medidas de resiliência.  

Essprevisão tem relação com a teoria de failing firm, ainda não aplicada isoladamente em nenhum caso na experiência brasileira, mas que provavelmente será bastante invocada em casos futuros.  A teoria autoriza alguma tolerância no exame de atos de concentração de estruturas para permitir a permanência de um agente econômico que apresenta grande possibilidade de saída do mercado, desde que essa saída concorrencialmente configure um problema à coletividade (esta a titular da proteção antitruste, conforme o parágrafo único do artigo 1º da Lei 12.529/11).   

O mesmo dispositivo poderá também ser eventualmente invocado para justificar contratos associativos (com mais ou menos impactos nas estruturas de mercado) entre concorrentes para o desenvolvimento de atividades em parceria que possam oferecer resposta aos problemas mais urgentes para a sociedade brasileira no enfrentamento da crise sanitária ou no atendimento da demanda em serviços essenciais à população. Cade inclusive já julgou em sessão extraordinária ocorrida no último dia 28 de maio um acordo autorizando a atuação conjunta por concorrentes das áreas de alimentos e bebidas, celebrado com o objetivo de minimizar os efeitos da criseoferecendo algumas sinalizações importantes ao mercado — como, por exemplo, que não serão tolerados acordos sobre combinação de preços ou condições de venda. 

Parece-nos também oportuna a previsão contida no § 1º de referido artigo 14 do substitutivo de que qualquer apreciação por órgão competente (portanto, o Cade ou o Judiciário) a partir de 20 de março de 2020 deverá considerar as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia, na medida em que eventual flexibilização na aplicação das regras antitruste se fundamenta em contexto específico. Mas essa apreciação deve manter coerência com o sistema de defesa da concorrência, preservando análises de eficiência econômica, ainda que sensível às adversidades.   

Todavia, as alterações legais não devem ser interpretadas como isenção legal ao Direito antitruste, de modo a permitir condutas despreocupadas com as consequências concorrenciais, mas sim que o intérprete deve considerar as circunstâncias especiais sob as quais estamos vivendo. Justamente nessespírito havia sido incluído no substitutivo um §2º ao texto original do projeto de lei, para validar a avaliação de necessidade e legitimidade dos atos ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia do novo coronavírus.    

O que falta na Lei 14.010/20 

Sem embargo, o que parece faltar na nova lei é a apresentação de parâmetros que ofereçam mais segurança aos agentes econômicos, principalmente que permitam saber em quais situações, exatamente, as operações associativas podem ser admitidas. Deve-se observar que uma parte desses critérios deverá vir por atos infralegais do próprio Cadepor meio do estabelecimento de protocolos que orientem os agentes econômicos nesse período atípico.  

Nesse sentido, o Cade, através de manifestações públicas do seu presidente e do superintendente-geral já indicou que será divulgado protocolo com orientações ao mercado, que se aproveitará em parte da experiência obtida pela autarquia com a crise dos fretes em 2018. As medidas de orientação são esperadas e salutares.   

É importante que todas as condições excepcionais previstas para enfrentamento da covid-19 e suas consequências não sejam invocadas em proteção a práticas oportunistas de mercado. Há cooperações aceitáveis e até mesmo desejáveis, mas outras que serão sempre ilegais, mesmo (ou sobretudo) em tempos de crise. Assim, esse período talvez possa ser aproveitado para se produzir critérios e standards mais precisos que vão além dos atualmente disponíveis e que permitam que o Direito concorrencial aperfeiçoe suas categorias e instrumentais e qualidade da defesa da concorrência no País. 


*Micaela Barros Barcelos Fernandes ([email protected]) é doutoranda em Direito na UERJ e sócia do Demori Claudino Advogados. Coautoria de Vinícius Klein ([email protected]), professor adjunto de Economia e Direito na UFPR e Procurador do Estado do Paraná.  


Notas

¹A título comparativo: a autoridade concorrencial norueguesa concedeu uma isenção antitruste de três meses para o setor de transporte e a autoridade concorrencial islandesa concedeu uma isenção limitada a algumas circunstâncias para a distribuição de remédios e agências de viagens em função da pandemia.  

²Nesse sentido, pode-se citar a tentativa de um acordo de crise com a consolidação de uma parcela do setor em duas empresas (Brasil Álcool S.A. e Bolsa Brasileira do Álcool Ltda) em função de problemas no setor de álcool carburante (Atos de Concentração 8012.004117/1999-67 e 08012.002315/1999-50). Naquela oportunidade, estava em vigor a Lei 8.884/94, mas nesse ponto a Lei 12.529/11 em vigor não promoveu mudanças que pudessem afastar por si só o entendimento construído na legislação anterior. 

³ https://www.ftc.gov/system/files/documents/public_statements/1569593/statement_on_coronavirus_ftc-doj-3-24-20.pdf 

⁴https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/framework_communication_antitrust_issues_related_to_cooperation_between_competitors_in_covid-19.pdf 

⁵Um exemplo na experiência estrangeira já relacionado à pandemia é a aprovação, em 20/4/20, pela autoridade antitruste do Reino Unido (Competition and Markets Authority), de investimento pela Amazon UK na Deliveroo, um aplicativo de entrega de alimentos. A respeito, ver: https://www.gov.uk/government/news/cma-provisionally-clears-amazon-s-investment-in-deliveroo. 

⁶Como exemplo, veja-se o inédito acordo entre Google e Apple para auxiliar governos no monitoramento de pessoas e a respectiva execução de políticas sanitárias.  A respeito, ver https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-04/covid-19-apple-e-google-anunciam-monitoramento-para-combater-pandemia. 


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