É histórica a força dos movimentos sociais que estimulam mudanças e produzem novos valores e objetivos a partir dos quais as instituições se transformam. Como anotou Manuel Castells1, percebemos nas duas últimas décadas o desenvolvimento da “sociedade em rede”, que desperta a opinião pública para maior disposição em denunciar o escárnio a que estão sendo submetidos os ideais democráticos em boa parte do planeta. Como resultado, nos parece irreversível o empoderamento dos cidadãos para a revitalização da democracia, o que passa pelo fortalecimento de princípios democráticos ancorados em valores legítimos da cultura e do sistema legal, bem como pela interação direta nos processos de governança corporativa.
A sociedade em rede, além de ter criado desafios para o sucesso no mundo corporativo — como criatividade, negociação e capacidade de mobilização —, gerou uma nova forma de poder, que é, a um só tempo, identificável e difusa. Sintetizando Castells, o poder atual está na mente das pessoas. Sabemos o que ele é, mas não podemos tê-lo, porque passou a ser uma função dos “códigos de informação” e das imagens de representação em torno dos quais a sociedade organiza suas instituições e as pessoas constroem suas vidas e definem seus comportamentos.
Governança do Estado
Na questão dos princípios democráticos, chamamos a atenção para a estreita e complexa ligação com o contexto normativo da boa governança do Estado, numa relação entre legalidade e legitimidade. Os códigos de boas práticas de governança, de forma geral, encorajam todos os stakeholders de uma organização a serem tanto adeptos da legalidade quanto da legitimidade. O domínio da boa governança consiste nos níveis mais altos da conformidade legal e da legitimidade.
Em termos de legalidade, entendemos que existem diferenças normativas entre os países naquilo que é legalmente prescrito e no que é socialmente recomendado e defendido pelos códigos existentes. Sabemos que a cultura nacional interage com as leis, principalmente com aquelas que regem o mundo corporativo. Acompanhamos de perto o desenvolvimento das análises institucionais dos modelos de governança corporativa efetivamente praticados e percebemos a crescente incorporação de aspectos do ambiente cultural nessas análises.
Evidências acadêmicas já são apresentadas para demonstrar que os modelos de governança corporativa e o sistema legal nacional se relacionam sistematicamente com a cultura predominante, o que é a base da teoria que tem sido denominada psicologia transcultural. Vários artigos do excelente livro2 editado por Jeffrey Gordon e Wolf Ringe em 2018 abordam aspectos diferentes dessa teoria. Em se tratando do eixo legalidade/conformidade legal, podemos afirmar que atributos culturais próprios determinam, em grande parte, as disposições normativas em cada país — as quais têm sido duramente impactadas pela falta de observância de princípios basilares da governança corporativa, como objetividade, transparência e prestação responsável de contas à sociedade.
E, no eixo da legitimidade — definindo esse termo como aquilo que é verdadeiro, autêntico, que está de acordo com o bom senso, que é considerado justo —, a cultura, os valores e o empoderamento do cidadão promovido pela sociedade em rede voltam ao centro da discussão deste artigo. O que pode ser considerado legítimo no que diz respeito aos stakeholders? Muitos dos desafios, das escolhas e das decisões tomadas pelos diversos stakeholders têm sido considerados legais, mas de difícil entendimento e concordância pela opinião pública.
A competitividade corporativa no século 21 passa necessariamente pelo entendimento desse contexto. Tem crescido a percepção da importância da legitimidade nas ações corporativas frente à sociedade. Michael Porter já lançou as bases da nova competitividade corporativa alicerçada na capacidade de cada empresa “criar valor compartilhado com a sociedade”.
A sociedade em rede impactará o mundo corporativo e o sistema capitalista muito mais do que já fez até o momento. De forma geral, notamos um desenvolvimento da consciência coletiva mundial na direção de posturas mais críticas referentes a questões morais, uma maior maturidade no exercício da cidadania e, principalmente, um fortalecimento da opinião coletiva, como já comentado.
Estamos presenciando o nascimento de um tribunal mundial da opinião pública e de uma figura até aqui desconhecida: a maioria (poder) representada pela maioria (número), em lugar de uma situação cristalizada ao longo de milênios — da maioria (poder) exercida por uma minoria (elite). A adaptabilidade estratégica, com altíssimo senso de urgência para criação de formas e instrumentos de governança que acompanhem o ritmo febril das transformações em curso, definirá o sucesso ou o ocaso das empresas nas próximas décadas.
Código de conduta
Uma das ferramentas corporativas que julgamos mais apropriada para traduzir, direcionar, qualificar o que é essencial para cada empresa e que faça tanto sentido quanto sirva de referencial de posturas e atitudes para os colaboradores é o código de conduta.
Para serem eficazes, os códigos de conduta precisam operar em dois níveis corporativos: institucional e simbólico. No nível institucional, um código de conduta precisa articular e consagrar limites de comportamento e expectativas, evidenciando imparcialidade e provendo orientação em situações complexas para todos os colaboradores. No nível simbólico, precisam deixar implícito um modelo profissional não só do que é necessário, mas também do que é desejável, criando um alto impacto corporativo no provimento de padrões pelos quais vale a pena lutar.
É importante que um código de conduta apele para as emoções e expectativas e consiga articular um sentido especial de desafio e de responsabilidade pessoal e funcional.
Fazer sentido para todos os stakeholders é o aspecto mais desafiador de um bom código de conduta porque é através dele que:
— aumentamos a probabilidade de muitas pessoas se comportarem da maneira mais adequada;
— explicitamos as principais orientações para as pessoas agirem pelas coisas e causas corretas, pelas razões certas, tornando um comportamento ético e probo um hábito e uma característica da cultura empresarial;
— declaramos profissionalmente compromissos referentes a um conjunto específico de padrões morais;
— alimentamos o orgulho do pertencimento a um grupo ou a uma causa.
É assim que entendemos a criação da cultura ética corporativa baseada na coesão, no entendimento e na aceitação dos princípios que são caros a cada um dos participantes e que são expostos de forma bem clara e transparente nos códigos de conduta. Como premissa, devem as empresas liberar-se de distorções centenárias, como a crença de que “a empresa tem dono” quando, na realidade, o que ela tem são sócios que podem compor os grupos de controladores ou de minoritários. Ou que se possa aceitar a existência de “empresas éticas ou empresas corruptas” quando essas qualificações devem se restringir aos administradores, não às organizações.
Consciência coletiva
À guisa de conclusão: a sociedade em rede empodera o cidadão, dando-lhe voz ativa. A conexão entre os cidadãos, promovida e estimulada por essa sociedade, fortalece a consciência coletiva direcionando a opinião pública no questionamento dos princípios democráticos vigentes. Estes, legitimados e reforçados pela própria opinião pública, servirão de pano de fundo para as estratégias corporativas. Esses princípios precisarão ser traduzidos empresa por empresa, levando-se em conta a cultura nacional e a corporativa, e cada um deles precisará ser desdobrado em comportamentos que são bem-vindos ou indesejáveis dentro de cada organização. Nessa esteira, o mundo corporativo e institucional e seus códigos de conduta, além de alvo de atenção, rejeição ou desejo, podem se tornar o campo de experiência em que os novos princípios e códigos democráticos poderão ser validados ou não.
Reforçamos a tese sobre a qual desenvolvemos nossa obra Código de Conduta: a ponte entre a Ética e a Organização: “Princípios são mandamentos que inspiram uma pessoa a adotar determinado comportamento de acordo com aquilo que a sua consciência lhe diz. São interpretados e compartilhados através de valores, que, por sua vez, orientam códigos, provocando a coesão das atitudes humanas em determinada direção. Os Princípios inspiram, os Valores humanizam e os Códigos operacionalizam.” Acreditamos nisso!
*Lélio Lauretti ([email protected]) é economista e conselheiro de administração certificado pelo IBGC. Co-autoria de Adriana de Andrade Solé ([email protected]), consultora em governança e conselheira de administração certificada pelo IBGC
Notas
1Redes de Indignação e de Esperança: Movimentos Sociais na Era da Internet
2The Oxford Handbook of Corporate Law and Governance
*O artigo também se baseia na obra A nova Governança Corporativa. Ferramentas bem–sucedidas para Conselhos de Administração, de Martin Hilb
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