Pesquisar
Close this search box.
Um intrincado divórcio chamado Brexit
Continua em suspenso o futuro das relações Reino Unido-Europa, mas funcionamento dos mercados está relativamente resguardado
Um intrincado divórcio chamado brexit

Ilustração: Rodrigo Auada

Quem visitou Londres há pouco tempo provavelmente se frustrou ao encontrar a torre que abriga o sino Big Ben, imponente no Palácio de Westminster, coberta por tapumes. As obras de restauração não pararam os ponteiros do lendário relógio que integra a estrutura, mas para os ingleses seria melhor mesmo que o tempo parasse — assim, ficaria também interrompida a pressão multilateral para que os comandantes das terras da rainha decidam como (ou se) romperão os laços que, desde 1973, os ligam ao continente. Por divergências no Parlamento em torno das propostas do governo da primeira-ministra Theresa May para a saída do Reino Unido do bloco europeu, resultado de consulta popular feita em meados de 2016, o Brexit ainda está, neste início de abril de 2019, no ar.

O Dia D do Brexit era 29 de março de 2019. Nessa mesma data, em 2017, May — sucessora de David Cameron, o responsável pela proposta do referendo, e segunda mulher a exercer o cargo (a pioneira foi Margaret Thatcher) — notificava o Conselho Europeu sobre a decisão do Reino Unido de deixar o bloco. Até o momento em que este artigo foi publicado, a nova data do divórcio era 12 de abril. Mas nada garante que não haverá uma nova postergação — a menos que os europeus percam a paciência.

A notificação de dois anos atrás disparou o artigo 50 do Tratado da União Europeia (TEU), que estabelece o procedimento de retirada de um país-membro. A partir dali passava a correr o prazo de 24 meses para que Reino Unido e União Europeia (UE) negociassem os termos da saída, sob os olhares das diversas partes interessadas. Apesar do prazo aparentemente longo, a inexistência de precedentes e realidade dos fatos mostraram aos britânicos que a coisa não era tão simples quanto parecia. Afinal, não seria uma simples “canetada” capaz de aparar todas as arestas de uma relação de décadas.

Em 1º de janeiro de 1973, o Reino Unido entrou para a Comunidade Econômica Europeia (CEE), forma rudimentar de comunidade de países cujos principais objetivos eram o estabelecimento de um mercado comum e a integração de políticas econômicas. Com a evolução dos institutos e dos tratados, a CEE, a Comunidade Europeia da Energia Atômica e a extinta Comunidade Europeia do Carvão e do Aço fundiram-se nas chamadas comunidades europeias e representam o primeiro e mais importante pilar da atual UE.

Soberania de volta

A estruturação do almejado mercado comum para a livre movimentação de bens, pessoas, serviços e capital exigiu que cada Estado-membro transferisse parcelas de sua soberania para a UE, de forma que matérias de grande importância pudessem ser endereçadas em âmbito supranacional. São justamente essas parcelas de soberania que o Reino Unido quer de volta.

Enquanto diversos países, sobretudo do leste europeu, praticamente imploram para integrar o bloco, as discussões sobre a saída do Reino Unido existem desde a entrada. Tanto que os britânicos já haviam sido chamados a opinar antes de 2016. Em 1975, com menos de dois anos e meio de associação, foi realizado o primeiro referendo sobre o assunto. Na ocasião, 67% dos votantes decidiram pela permanência britânica no clube de países europeus.

Mesmo com esse resultado amplamente favorável, movimentos contrários ao bloco sempre marcaram presença no cenário político nas décadas que se seguiram. Os eurocéticos, como são chamados os que se opõem à integração promovida pela UE, argumentam, dentre diversos outros pontos, que o Reino Unido oferece mais ao bloco do que recebe em troca. Eles também são extremamente críticos ao livre fluxo de pessoas. Esse tipo de discurso, aliado à crise financeira global desencadeada em 2008, tornou cada vez mais fortes as vozes dissidentes — não foi por acaso que, nas eleições gerais de 2015, Cameron, líder do Partido Conservador à época, prometeu que um novo referendo seria feito caso seu partido ganhasse as eleições.

Há quem diga que os conservadores não acreditavam que ganhariam as eleições ou que, ganhando, os britânicos votariam pela saída do Reino Unido da UE. Fato é que as duas coisas aconteceram e aproximadamente 52% dos votantes no referendo de 2016 decidiram pela saída. A questão migratória e o alto custo que gerava para os cofres públicos encabeçavam a lista de argumentos da campanha de saída veiculada em diversas mídias. Miraram em “A”, mas acertaram um alfabeto inteiro. Além de pôr fim ao livre fluxo de pessoas, a saída da UE terá para o Reino Unido implicações tão ou mais importantes: deixar de fazer parte do mercado comum e da união monetária (embora o Reino Unido nunca tenha adotado o euro), abandonar a união aduaneira, deixar de se sujeitar à jurisdição da Corte de Justiça Europeia, e por aí vai. Na prática, o Brexit implica ajustes nada simples de milhares de páginas de legislação — é por isso que o tempo escasso exerce enorme pressão.

Questão das “irlandas”

O principal problema hoje na mesa de negociação é o chamado backstop irlandês. Em tradução simples, o “último recurso” nada mais é do que uma proteção para impedir a criação de uma fronteira rígida entre a República da Irlanda (integrante da UE e da zona do euro) e a Irlanda do Norte — vale lembrar que esta é a única fronteira terrestre do Reino Unido. No passado, já houve uma fronteira tradicional com controle de fluxo de pessoas e bens, a qual é apontada como um dos motivos para a guerra civil irlandesa na década de 1920. O backstop, conota, na verdade, o medo associado a tempos passados sombrios de guerra e terror nos conflitos político-religiosos em torno de uma união da Irlanda do Norte (maioria protestante e minoria católica) à República da Irlanda (predominantemente católica) ou à permanência como parte do Reino Unido (predominantemente protestante).

Tamanha é a importância desse assunto que o relatório conjunto da UE e do Reino Unido publicado em dezembro de 2017, documento que estabelecia os principais pontos de negociação do acordo de retirada, já previa que ambas as partes estão comprometidas em evitar a criação de uma fronteira rígida com controles de fluxos de pessoas e bens entre Irlanda e Irlanda do Norte, independentemente do que viesse a ser negociado no efetivo acordo de retirada. A ideia é não abalar a paz selada em 1998 entre irlandeses do norte e seus vizinhos de ilha pelo Acordo de Belfast (ou “Acordo da Sexta-Feira Santa”).

Resumidamente, o backstop irlandês manteria a Irlanda do Norte na UE enquanto o resto do Reino Unido estaria fora. Em termos práticos, o backstop transferiria a fronteira terrestre para dentro do Reino (des)Unido. Embora resolvesse a questão das “irlandas”, o backstop geraria outros. Inclusive, a Escócia, cuja maioria da população votou em 2016 pela permanência na UE, ameaça promover um referendo independentista caso seja dado tratamento diferenciado apenas à Irlanda do Norte.


Leia também

Por causa do brexit, investidores fogem do Reino Unido

Jorge Caldeira critica liberalismo autoproclamado

Um furacão chamado MiFID II


Pra inglês ver”?

Para evitar problemas internos, a premiê defende a posição de que não apenas a Irlanda do Norte, mas o Reino Unido inteiro sujeite-se às regras do backstop por um período limitado, após 31 de dezembro de 2020. Porém, o acordo negociado em novembro de 2018 entre ela e os europeus prevê a permanência de todo o país sob as regras do backstop até que Reino Unido e UE acordassem, em conjunto, que esse recurso não é mais necessário. Como o Reino Unido não poderia unilateralmente decidir pelo fim do backstop, a principal crítica é que os britânicos poderiam, inclusive, ficar sujeitos às regras da UE indefinidamente e, pior, sem poder de voto. O backstop, da forma como está, portanto, literalmente torna o Brexit coisa “pra inglês ver”.

Nesse acordo de 2018, basicamente, estão previstos o backstop, a situação dos europeus que vivem no Reino Unido e vice-versa e a multa de aproximadamente 39 bilhões de libras esterlinas (cerca de 195 bilhões de reais) que o governo inglês deverá pagar por romper a parceria. Apenas durante o período de transição, supostamente entre alguma data ainda não fixada neste ano e 31 de dezembro de 2020, é que as partes deveriam negociar um acordo com regras específicas a respeito de todos os assuntos que envolverão sua relação futura, uma vez que pelas regras do TEU, a UE é proibida de negociar futuras relações comerciais com um país que ainda seja membro. No entanto, para que haja período de transição, é preciso que o acordo negociado seja aprovado no Parlamento inglês.

Os britânicos poderiam ficar sujeitos às regras da UE indefinidamente e, pior, sem poder de voto.

Descontentes sobretudo com as regras do backstop, os membros da Casa dos Comuns já haviam rejeitado esse acordo de 2018 por duas vezes, e não sem derrotas constrangedoras para o governo. Dado que a data inicial havia se tornado infactível, em 20 de março de 2019, May escreveu para o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, requerendo a prorrogação do Brexit para 30 de junho de 2019, requerimento que precisava ser aprovado por unanimidade pelo EU27, grupo formado pelos demais 27 Estados que compõem a UE. Como desgraça pouca é bobagem, no fim de maio haverá eleições para a próxima legislatura do Parlamento Europeu e Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, já se manifestou dizendo que o Reino Unido deverá participar dessas eleições caso ainda seja um Estado-membro da UE em 23 de maio de 2019.

Demonstrando certa irritação com a incapacidade inglesa de gerir internamente as questões relacionadas ao Brexit, os líderes do EU27 aprovaram, parcial e condicionadamente, a solicitação de May. Concederam a prorrogação até 12 de abril de 2019, para a hipótese de saída sem acordo, ou 22 de maio de 2019, desde que o acordo já negociado fosse aprovado pelo parlamento até o prazo original de 29 de março de 2019 (o que acabou não acontecendo, diante da terceira rejeição do acordo pelo Parlamento naquela data), encerrando qualquer possibilidade de reabertura das negociações.

Diante de uma primeira-ministra que apanha de todos os lados na defesa de seu acordo e de parlamentares que não conseguem decidir nada que ajude o país a evitar a catastrófica situação de saída sem acordo, crescem no Reino Unido movimentos populares requerendo a revogação da notificação de saída e uma nova consulta popular. Eles se apoiam principalmente sobre o argumento de que, durante o referendo de 2016, a população nunca foi alertada sobre todas as consequências da saída.

Salvaguardas no mercado

Da mesma forma, mercados, agentes econômicos e investidores continuam apreensivos com a incerteza sobre o futuro, visto que a cidade de Londres ainda é o principal centro financeiro europeu. Pelo menos nesse aspecto a confusão política não deve afetar significativamente, do ponto de vista jurídico, o funcionamento dos mercados financeiro e de capitais, mesmo em uma situação de saída sem acordo. Isso porque o EU (Withdrawal) Act 2018 prevê algumas medidas importantes, dentre elas a incorporação automática dos regulamentos europeus à legislação britânica, a ratificação da vigência da legislação que implementou as diretivas europeias no Reino Unido e a atribuição de competência às instituições britânicas para, em sede de regulamentação infralegal, corrigir eventuais inoperâncias do sistema.

Órgãos como a Financial Conduct Authority (FCA), reguladora de conduta dos mercados financeiro e de capitais e das cerca de 58 mil empresas prestadoras de serviços financeiros atuantes no Reino Unido (além de reguladora prudencial de aproximadamente 18 mil dessas empresas), a Prudential Regulation Authority (reguladora prudencial de cerca de 1,5 mil bancos, equiparados, seguradoras e empresas de investimento mais relevantes) e o Bank of England (banco central inglês) receberam poderes adicionais para endereçar e reduzir o impacto de questões relativas ao Brexit.

Mesmo com esses esforços, não há como se evitar efeitos negativos. O principal certamente será o fim do regime de passaporte europeu para empresas do Reino Unido. Segundo esse regime, uma empresa autorizada a prestar serviços financeiros em um Estado integrante do Espaço Econômico Europeu (EEE, que inclui países da UE mais Suíça, Liechtenstein, Noruega e Islândia) pode livremente exercer as atividades para as quais está autorizada em outro Estado, seja por meio do estabelecimento de uma subsidiária, por agentes ou por operações internacionais. Concretizado o Brexit, no entanto, empresas estabelecidas no Reino Unido não poderão mais se valer do regime de passaporte europeu para prestar serviços financeiros em outros Estados, assim como empresas europeias não poderão acessar o mercado britânico. Em ambos os casos, essas empresas precisarão se valer de autorizações temporárias ou definitivas para não interromper atividades. No caso de empresas estabelecidas no Reino Unido, a situação é ainda pior, pois ele passará a ser considerado um país terceiro e as autorizações, temporárias ou definitivas, deverão ser obtidas em cada país da UE em que pretenderem operar.

É verdade que a legislação europeia prevê o reconhecimento de um país terceiro como detentor de regulamentação com requerimentos equivalentes aos da UE, caso em que instituições prestadoras de serviços financeiros de determinados seguimentos desse país teriam acesso ao mercado comum europeu sem a necessidade de autorização de um país-membro. No entanto, a atribuição desse benefício depende de decisão unilateral da Comissão Europeia e, em princípio, a situação política não está favorável para que uma medida como essa seja concretizada no curto prazo.

“Concretizado o Brexit, empresas estabelecidas no Reino Unido não poderão mais se valer do regime de passaporte europeu para prestar serviços financeiros em outros Estados, assim como empresas europeias não poderão acessar o mercado britânico”

A FCA tem atuado intensamente para orientar tanto empresas locais prestadoras de serviços a clientes estabelecidos no EEE quanto empresas estrangeiras atuantes no Reino Unido. O objetivo é garantir que os clientes dessas empresas sofram os menores efeitos possíveis. Para isso, oferecerá autorizações temporárias de funcionamento para todas as empresas que estiverem em processo de licenciamento definitivo quando chegar o dia da saída.

Os fundos de investimento também se beneficiam do regime de passaporte europeu. Nesse sentido, cotas de fundos estabelecidos no Reino Unido que hoje seguem os requisitos da legislação europeia — e que podem ser livremente negociadas a investidores europeus — não contarão mais com essa facilidade. No sentido inverso, cotas dos fundos europeus que hoje são vendidas a investidores britânicos dependerão do reconhecimento individual pela FCA para que possam continuar sendo negociadas, embora a FCA já tenha concedido reconhecimento temporário de três anos para fundos preexistentes e detentores do passaporte. No caso de fundos estabelecidos no Reino Unido beneficiários do regime, até o momento a UE não concedeu medida recíproca. Caso isso não ocorra, esses fundos deverão obter autorização individual em cada país da UE para que suas cotas continuem a ser publicamente negociadas.

Com relação a sistemas de liquidação, a situação é relativamente tranquila. O Bank of England publicou uma lista de contrapartes centrais que poderão continuar liquidando operações britânicas com base em um regime de reconhecimento temporário, incluindo praticamente todas as principais clearings da Europa e do mundo, até a brasileira B3. Da mesma forma, a Comissão Europeia conferiu equivalência às contrapartes centrais e às centrais depositárias de valores mobiliários do Reino Unido para liquidarem operações europeias por 12 e 24 meses, respectivamente, na hipótese de saída sem acordo. Outra ação tomada pelas instituições britânicas foi a solicitação ao Conselho de Pagamentos Europeus para que permanecessem como membros da área única de pagamentos em euros (Sepa). Esse pedido foi aceito em 7 de março de 2019, de forma que os prestadores de serviços de pagamentos do Reino Unido poderão continuar a enviar e receber pagamentos em euros no âmbito da Sepa.

Embora sejam importantes e tranquilizadoras, essas ações relacionadas aos mercados têm alcance limitado. O que está em jogo de fato é a forma como sociedades da relevância da britânica e de seus (ex?) parceiros europeus vão se relacionar depois de tantos anos de convivência próxima. E o que por ora dá para dizer é que pode acontecer de tudo na novela do Brexit. Inclusive nada.


Por Walter Pellecchia ([email protected]), advogado no Machado Meyer Advogados e mestrando em direito bancário e financeiro na Queen Mary University of London


Leia também

Governo britânico se une a figurões para combater crimes financeiros

Uma década depois da crise de 2008, pouca coisa mudou nos conselhos de bancos

Em quatro dias, CEOs britânicos ganharam o equivalente ao que um trabalhador recebe em um ano


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.