O que é, afinal, ágio interno?
Resposta depende da definição do conceito de entidade, problema que o Iasb finalmente resolveu enfrentar
Eliseu Martins em ilustração

Eliseu Martins | Ilustração: Julia Padula

O “ágio interno” vem, há já muitos anos, tirando o sono das empresas, dos advogados e do próprio fisco. Apesar dos bilhões de reais em jogo, ele ainda carece de uma definição — e, talvez antes disso, de uma análise um pouco mais ampla. O problema de sua definição está na pergunta “interno com relação a quem?”. Todos concordam que nenhuma entidade pode registrar o ágio de si mesma. Mas e quando há transações e ele é reconhecido na adquirente da participação societária?

Não se pode deixar de comentar — e lamentar — que até 2018 o International Accounting Standards Board (Iasb) nunca havia definido o que é “entidade”. Sem essa definição, o entendimento de ágio interno tem falhado.

Finalmente, em 2018 o Iasb resolveu enfrentar o problema, emitindo dentro da nova estrutura conceitual da Contabilidade (que entrará em vigor, inclusive no Brasil, em 2020) algo mais detalhado a respeito de “entidade”. Mas prepare-se, caro leitor. Veja o que diz textualmente o Iasb1:

3.10 A reporting entity is an entity that is required, or chooses, to prepare financial statements. A reporting entity can be a single entity or a portion of an entity or can comprise more than one entity. A reporting entity is not necessarily a legal entity.

3.11 Sometimes one entity (parent) has control over another entity (subsidiary). If a reporting entity comprises both the parent and its subsidiaries, the reporting entity’s financial statements are referred to as ‘consolidated financial statements’. If a reporting entity is the parent alone, the reporting entity’s financial statements are referred to as ‘unconsolidated financial statements’.

Interessante observar que essa definição já existia no Brasil, por meio da Deliberação 29/86 da CVM, revogada em 2010 (original do professor Sergio de Iudicibus). O texto do Iasb pode nem parecer uma definição para entidade, mas pelo menos formaliza um entendimento: entidade é qualquer conjunto patrimonial, mais suas mutações, reproduzidos, por exigência externa ou voluntariamente, num conjunto de demonstrações contábeis.

Uma sociedade é uma entidade para fins contábeis. Mas essa entidade mais outra, sua controlada, criam também uma terceira entidade, representada pelo balanço consolidado. E uma fábrica de uma dessas entidades — se sobre ela houver algum interesse próprio, como alguém participar do que ela produzir —pode também se transformar numa entidade, com suas demonstrações próprias específicas. E todas as entidades que reportam estão abrangidas pelas normas contábeis internacionais e, por extensão, brasileiras.


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Indo agora ao ágio por expectativa de rentabilidade futura (ou goodwill, ou simplesmente ágio aqui). Nesse caso, uma verdade é universal: a vedação de seu registro quando criado internamente, sem transações com terceiros (também norma no Iasb e no Brasil). Assim, uma sociedade, individualmente tomada, não pode reconhecer o seu próprio ágio, por mais que possa provar que seu goodwill depende de tantos milhões investidos em tecnologia, marketing, treinamento etc. Esse ágio só aparecerá no ativo de quem pagar por isso.

Agora, se quem comprar essa sociedade — e pagar por esse ágio — pertencer ao mesmo grupo econômico, tem a obrigação de registrá-lo também? Ou terá que interpretá-lo como ágio “interno” e não registrá-lo? No balanço consolidado não poderá reconhecê-lo, porque terá ele nascido dentro da entidade como um todo (controladora e suas controladas, que perfazem uma entidade contábil). Mas, e no balanço individual da adquirente? Existe ágio “interno” nesse caso?

O interessante é que o ágio registrado pela adquirente é o constituído pela adquirida, e não por ela mesma (adquirente); a adquirida é outra entidade.

É lógico que deverá haver uma razão fundamentada para essa transação entre entidades sob controle comum e uma segurança mínima a cercar sua mensuração, o que se aplica às transações entre si de outros ativos, como estoques, imóveis, instrumentos financeiros etc. Caso contrário, poderá se configurar uma “fraude” contábil. No entanto, se não for uma “fraude” só para fazer aparecer o ágio, tudo parece sustentar que agora, com a formalização mais explícita do conceito de ágio, fica inquestionável o seu reconhecimento na adquirente. Principalmente se existir a figura do minoritário em pelo menos uma das duas entidades. A não ser que haja uma proibição expressa.

Na verdade, esse entendimento não é, conceitualmente, nada novo. Tanto que o mundo o pratica em larga escala, incluindo países europeus continentais. Os ingleses o adotam com mais parcimônia: são muito criteriosos para ver se há realmente substância econômica na transação entre as entidades sob controle comum; havendo, fica liberado o “ágio interno”. Praticamente só os americanos têm como regra não aceitar esse reconhecimento de ágio e adotam o predecessor accounting: o valor da participação societária é registrada na adquirente pelo valor anteriormente reconhecido na vendedora.

E o Iasb? Nunca se pronunciou sobre essa problemática e, agora com essa nova “definição” de entidade, está mais ainda obrigado a se manifestar. A instituição vem, na verdade, há anos trabalhando nisso: manter o conceito de entidade para valer nessas transações entre entidades sob controle comum ou não? E, enquanto não há regras, discussões mil. O fisco, obviamente, se aproveita e adota o conceito que lhe é mais conveniente.

Será que teremos novidade proximamente?2


Notas

1“3.10 Uma entidade que reporta é uma entidade que é obrigada, ou que escolhe, preparar demonstrações contábeis. Uma entidade que reporta pode ser uma entidade individual ou parte de uma outra entidade ou pode abarcar mais de uma entidade. Uma entidade que reporta não é necessariamente uma entidade legal.

3.11 Às vezes, uma entidade (controladora) tem controle sobre outra entidade (controlada). Se uma entidade que reporta compreende tanto a controladora quanto suas controladas, suas demonstrações financeiras são designadas ‘demonstrações contábeis consolidadas’. Se uma entidade que relata é a controladora isolada, suas demonstrações contábeis são designadas ‘demonstrações contábeis não consolidadas’”.

2Consulte https://www.ifrs.org/projects/work-plan/business-combinations-under-common-control/


Eliseu Martins ([email protected]) é professor emérito da FEA-USP e da FEA/RP-USP, consultor e parecerista na área contábil


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