Em tempos de pandemia e crise econômica, em geral as empresas buscam formas de preservar seu caixa. No passado, algumas companhias abertas já chegaram a suspender o pagamento de dividendos declarados, inclusive para enfrentar eventos inesperados — exemplos são a Vale (em 2019, no âmbito do acidente de Brumadinho) e a Eletropaulo (em 2002, por ocasião do apagão e do racionamento de energia). A discussão gira em torno de dois temas principais: a responsabilidade dos administradores, tendo em vista a obrigação de pagamento dos dividendos dentro do mesmo exercício social, conforme previsto no art. 205, § 3º, da Lei das S.As.; a possibilidade de os dividendos serem exigidos pelos acionistas após o adiamento ou a suspensão do seu pagamento. Esses pontos não são especificamente tratados na Lei das S.As., que estabelece regras apenas em relação à retenção de lucros antes da declaração de dividendos (arts. 196 e 202, §§ 4º e 5º).
Há ao menos quatro precedentes do colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre o assunto. Um deles envolve o PAS CVM Nº 03/02, julgado em 2004, no qual o voto vencedor (por maioria) concluiu que os administradores só poderiam ser responsabilizados se a falta de pagamento dos dividendos fosse decorrente de “capricho ou para prejudicar deliberadamente os acionistas”. Embora a imediata exigibilidade dos dividendos não tenha sido o principal foco do julgado, o relator menciona que, segundo seu entendimento, “uma vez que o dividendo obrigatório declarado constitui-se em crédito dos acionistas, [é] exigível na data prevista para o pagamento” (grifo nosso), vez que “a companhia que declara o dividendo e não paga, a meu ver, tem a mesma situação de uma companhia que emite uma debênture e não paga na data aprazada ou que não cumpre pontualmente o pagamento de um financiamento, empréstimo, tributo etc”.
O segundo precedente é o do PAS CVM Nº RJ2002/2047, julgado em 2005. Nesse caso os administradores foram responsabilizados, uma vez que havia evidências de pagamento adiantado de mútuos para o controlador em detrimento do pagamento dos dividendos aos acionistas. O terceiro precedente é o PAS CVM Nº RJ2003/12233, julgado também em 2005, situação em que os administradores não foram responsabilizados. Nesse caso, a suspensão do pagamento foi aprovada pela assembleia geral. O quarto precedente está relacionado ao PAS CVM Nº 2013/5634, julgado em 2014. Os administradores foram responsabilizados, especialmente em razão de a suspensão não ter sido aprovada em assembleia geral.
O último e mais relevante precedente é o PAS CVM Nº RJ2008/8046, julgado em 2018, no qual os administradores não foram responsabilizados. Esse julgado enfrentou dois pontos relevantes. Concluiu pela não obrigatoriedade de aprovação da suspensão do pagamento de dividendos em assembleia geral para afastar a responsabilidade dos administradores (apesar de tal aprovação ter se mostrado relevante para o precedente judicial abaixo mencionado, para neutralizar eventual cobrança pelos acionistas). Além disso, estabeleceu que tanto o agravamento da situação financeira após a declaração dos dividendos quanto a reversão de expectativas financeiras anteriores à declaração dos dividendos podem justificar a suspensão.
A atual situação de incerteza provocada pela pandemia de covid-19 e a consequente limitação drástica de circulação de pessoas impactam os mais variados setores da economia. Trata-se justamente do exemplo mais recente de fato capaz de agravar a situação financeira e de reverter expectativas econômicas — justificando, portanto, uma suspensão de pagamentos de proventos já declarados, para não comprometer a saúde financeira das companhias.
Quanto à possibilidade de o acionista exigir o pagamento dos dividendos suspensos, ressalta-se, na esfera judicial, a Apelação Cível 1002982-64.2017.8.26.0554, julgada em 21 de agosto de 2019. Nessa situação o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu, por maioria, que era possível a postergação do pagamento de dividendos declarados por meio de assembleia geral, tornando o dividendo não exigível pelo acionista: “a não efetivação do pagamento (…) não autoriza os apelantes a exigir o pagamento dos dividendos em desacordo com o que fora deliberado pelos acionistas da companhia”.
Na mão contrária, o processo arbitral da Liq (atual denominação da Contax) iniciado pelos acionistas contra a companhia foi julgado procedente, com ordem de pagamento dos dividendos mínimos obrigatórios suspensos por deliberação da assembleia geral (fato relevante de 21 de novembro de 2019). Enquanto o precedente judicial entende que a suspensão aprovada em assembleia geral torna inexigível o crédito do acionista, a aparente posição dos árbitros do caso Contax é de que a suspensão, ainda que mediante realização da assembleia geral, não prejudica o direito do acionista de exigir o pagamento dos dividendos em juízo.
O tema é controverso e há apenas uma certeza: a cada dia a pandemia apresentará novos desafios para o regulador, para as companhias abertas e para todos os participantes do mercado.
*Paula Magalhães ([email protected]) é sócia de Lobo de Rizzo Advogados. Coautoria de Otávio L.S. Valério ([email protected]), sócio do mesmo escritório.
Leia também
Por que postergar as assembleias gerais ordinárias?
Negócios de impacto em tempos de covid-19
As obrigações legais e regulamentares das companhias abertas diante da pandemia
Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.
Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.
User Login!
Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.
Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais
Ja é assinante? Clique aqui