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Takeover Panel britânico é exemplo de sucesso para avançarmos em direção à convergência

Introdução
Em janeiro, tive a oportunidade de conhecer o funcionamento do Takeover Panel (TP). Essa entidade é responsável por analisar, orientar e julgar as operações de mudança de controle realizadas entre empresas britânicas ou comandadas a partir do Reino Unido. Seu corpo executivo é composto de técnicos permanentes e “secondees”, temporários recrutados entre bancos de investimentos, escritórios de advocacia, gestoras de recursos ou empresas de consultoria, para prestar serviço por dois anos, ao fim dos quais retornam às instituições de origem. Participei do curso introdutório dos secondees, que abrangeu o estudo do código da entidade e a discussão de casos reais. Seguem alguns comentários sobre a experiência do TP e seus reflexos para o mercado brasileiro.

História e estrutura
Na década de 1960, o mercado de capitais do Reino Unido vivia um período intenso de tomadas de controle (takeovers), muitas delas hostis. Preocupado com a falta de regulamentação dessas operações, que criavam desconforto e perda de confiança entre os investidores, o governo determinou ao prestigioso Banco da Inglaterra o

desenvolvimento de uma maneira de disciplinar o mercado. Em vez de criar mais um órgão público e uma legislação muito restritiva, o Banco da Inglaterra convocou os agentes do mercado a estabelecer uma instituição independente que, livre das limitações da atuação estatal, pudesse orientar e julgar as operações de takeover de forma ágil e flexível, mas também justa, no interesse de todo o mercado.

Com o compromisso assumido pelas instituições, o Banco da Inglaterra forneceu as instalações e os primeiros técnicos permanentes, enquanto o mercado forneceu os secondees. Assim se formou o corpo executivo (Executive). Além do Executive, a atual estrutura do Takeover Panel conta com o Hearings Committee, formado por profissionais de longa experiência e alta reputação, convocados junto a instituições do mercado. Ele atua como instância de recurso e supervisão do corpo executivo. Outros dois órgãos, também compostos de profissionais de mercado, complementam a estrutura: o Appeal Board, que é uma segunda instância, e o Code Committee, responsável por aprovar as mudanças do código (Takeover code) de princípios, regras e procedimentos que rege toda a atividade da instituição. Neste comitê, não podem estar presentes membros de quaisquer outros órgãos da instituição.

A fim de garantir a agilidade e a flexibilidade necessárias ao acompanhamento da evolução do mercado e, assim, disciplinar — sem engessar — o andamento dos negócios, desenvolveu-se uma forma singular de regulação privada, em que as regras são elaboradas conforme alguns princípios rígidos e consensuais. Elas podem ser alteradas, ampliadas ou restringidas pela própria instituição, desde que obedeçam aos princípios.

O Takeover Panel começou a funcionar em 1968, com um modelo de autofinanciamento que garantia sua independência. Definiu-se uma pequena contribuição a recolher em cada negócio efetuado pela Bolsa de Londres. Atualmente, essa tarifa fixa e única (£ 1 para cada transação acima de £ 10 mil) responde por cerca de metade da receita. O restante advém da cobrança de uma taxa pela emissão dos documentos relativos às operações que orienta ou julga.

Por 38 anos, a instituição teve o apoio do Estado, mas não vínculo formal com ele e nem qualquer suporte na legislação. Sua autoridade se firmou com base no compromisso assumido pelos agentes de mercado, na tradição e na credibilidade conquistada pela qualidade do trabalho. Em 2006, com a harmonização da lei societária do Reino Unido à diretiva europeia (o Companies Act), o TP foi incorporado à lei e ganhou poder estatal. Questionou-se seu status de entidade independente. Propôs-se que fosse absorvido pela Financial Conduct Authority (FCA), a poderosa entidade de regulação e fiscalização financeira governamental. Nesse debate, travado no parlamento do Reino Unido, decidiu-se, aliás com muito bom senso, que não se deveria mexer em time que está ganhando. O Takeover Panel manteve-se independente, mas com poder de enforcement estatal. Poder esse que orgulhosamente seus técnicos afirmam nunca ter usado nem, tampouco, ter a intenção de usar. As sanções são principalmente reputacionais, por meio de censuras privadas ou públicas. Há, porém, uma medida disciplinar extrema, utilizada muito raramente, chamada “cold shouldering”, que é a proibição de uma pessoa atuar em qualquer operação supervisionada pelo TP por alguns anos. Ela é aplicada quando o Hearings Committee entende que alguém deliberadamente não cumpriu as regras do código e demonstra não estar disposto a fazê-lo no futuro.

Funcionamento
O Takeover Panel é quase sempre acionado pelos consultores financeiros (“financial advisers”) das empresas ou ofertantes — bancos de investimento ou grandes escritórios de advocacia — que têm a intenção de fazer uma operação de ações de tomada de controle.

O TP define controle como qualquer lote de ações votantes (há algumas poucas empresas do Reino Unido com ações sem direito a voto) igual ou acima de 30% do total do capital votante. Caso o acionista atinja esse percentual, dispara-se o gatilho da oferta obrigatória a todos os acionistas. Se ele tiver entre 30% e 50% do capital votante, qualquer aquisição adicional terá o mesmo efeito.

Os financial advisers podem consultar os técnicos do Executive a qualquer momento (24 horas por dia, 7 dias por semana), solicitando orientações sobre os procedimentos das operações. Da mesma forma, os membros do Executive podem, a qualquer momento, questionar os consultores sobre rumores divulgados pela imprensa ou algum movimento anormal na negociação de ações de empresas que sejam objeto de rumores ou tenham operações em curso.

A confiança e o respeito desfrutados pelo Takeover Panel junto aos consultores financeiros são essenciais para o bom funcionamento do sistema. Decorrem de independência, competência, flexibilidade, agilidade, disponibilidade para consulta, postura educativa e sigilo, que pauta as atividades da entidade (em 46 anos de existência, nunca houve comprovação de qualquer vazamento de informações).

Em outras palavras, o mercado reconhece o TP como um árbitro adequado, capaz de um diálogo inteligente e consistente, que lhe presta um serviço ao discipliná-lo. Sua atuação reduz o risco de as operações desaguarem em litígio e, assim, aumenta a credibilidade do mercado. Ao invés de um obstáculo a ser vencido pelos agentes do mercado, torna-se um agente orientador e dinamizador das operações de forma sustentável, ao prevenir conflitos e zelar pelo interesse coletivo.

Para manter essas qualidades, a entidade se organiza internamente de forma a estimular: uma intensa troca de opiniões entre os técnicos, difundindo as expertises individuais; a tomada de decisões por consenso, em reuniões convocadas sempre que necessário; a constante presença de secondees no Executive, inclusive em postos-chaves (o atual diretor-geral do Executive do TP é um secondee, vindo de um banco de investimentos), para manter a troca de experiências com o mercado, além de regular troca de informações com as autoridades financeiras oficiais. Vale ressaltar a importância do autofinanciamento, que garante a independência e permite manter a invejável estabilidade de um grupo permanente de alto nível, bem como recrutar e remunerar secondees muito qualificados.

É interessante notar que, apesar de todo o prestígio da instituição, os técnicos do Executive cultivam uma postura humilde e discreta. O perfil “low-profile” é considerado essencial para sustentar o bom funcionamento interno, bem como para manter a boa imagem junto ao mercado e às autoridades.

Difusão internacional do modelo
O modelo de organização e atuação do Takeover Panel do Reino Unido tem sido replicado, com adaptações que não alteram sua essência, em vários países. Aqueles com maior influência da cultura inglesa, tais como Austrália, Hong Kong, África do Sul e Quênia, foram os primeiros a criar entidades semelhantes.

Mas, a partir de 2006, a diretiva da Comunidade Econômica Europeia decidiu recomendar a todos os membros que desenvolvessem entidades do mesmo padrão.

CAF: o Takeover Panel no Brasil
No Brasil, o debate sobre a conveniência de uma instituição desse tipo surgiu dentro da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), na segunda metade da década passada. Em 2009, esse debate foi ampliado, por iniciativa da própria autarquia, que estimulou as principais entidades representativas dos agentes do mercado a se organizar para a criação do Takeover Panel no Brasil, seguindo o modelo do Reino Unido.

Após dois anos de discussão coletiva sobre o projeto de código patrocinado pela BM&FBovespa e elaborado pelo jurista Nelson Eizirik, a Amec, a Anbima, a Bolsa e o IBGC fundaram, em agosto de 2013, a Associação dos Apoiadores do Comitê de Aquisições e Fusões (Acaf), entidade jurídica que abriga o CAF.

Assim como o TP, o CAF tem um código de poucos e rígidos princípios, nos quais se baseiam regras destinadas ao bom funcionamento de ofertas públicas de aquisição de ações (OPAs) e de operações de reestruturação societária (várias formas de fusões e aquisições de empresas listadas). O objetivo final é orientar e disciplinar, em nome da preservação do interesse coletivo, para ampliar a confiança e a credibilidade de todo o mercado. Desde que se respeitem os princípios, as regras e procedimentos podem ser alterados ao longo do tempo, no sentido de acompanhar a evolução do mercado, respondendo a suas necessidades de forma ágil e eficiente.

O código da entidade tem soluções objetivas para problemas vivenciados pelo mercado, como a incerteza a respeito da aplicação do tag along, as operações de permuta com preços diferentes para ações do mesmo tipo, as dúvidas sobre consistência de laudos de avaliação e as operações de reestruturação societária entre partes relacionadas. Em relação às últimas, aliás, caso sejam aprovadas pelo CAF, a CVM dá presunção de regularidade, segundo convênio de cooperação assinado em 2013.

A aplicação das regras do código do CAF e sua eventual revisão são atribuições do denominado painel, composto de 11 membros independentes não ligados diretamente a quaisquer das entidades apoiadoras. Entretanto, são escolhidos por elas, unanimemente, entre profissionais com grande experiência, notório saber e reputação ilibada.

A diretoria executiva é o corpo permanente da instituição. Responde pelo apoio técnico ao painel, pela gestão administrativa e pela interlocução com mercado e órgãos governamentais. A supervisão do trabalho da diretoria executiva e da conduta dos membros do Painel, incluindo a decisão sobre conflitos de interesse, é exercida pelo conselho de administração e supervisão (CAS), composto de quatro membros, cada um indicado por uma das entidades apoiadoras. A presidência do órgão é exercida em sistema de rodízio anual.

A companhia aberta pode aderir voluntariamente ao código do CAF, incorporando suas regras ao respectivo estatuto social e, com isso, recebendo o selo CAF. Aderente ou não, ela pode fazer uma consulta prévia à entidade, quando a operação ainda não foi a público, e formata-la sob sigilo, em conjunto com a área técnica da diretoria executiva e sob a orientação de membros do painel. Caso a operação seja pública, a empresa ou o ofertante podem requerer a opinião do Painel quanto a um ou alguns pontos específicos da operação, por meio de uma consulta.

Se qualquer parte interessada (investidor, por exemplo) quiser fazer uma reclamação a respeito de uma operação realizada por empresa aderente, ou por empresa não aderente que tenha sido objeto de consulta junto ao CAF, poderá fazê-lo sem custo. O painel obriga-se a analisar e a responder o questionamento de forma rápida. Aliás, o compromisso de agilidade é comum a todos os procedimentos.

Conclusão: uma visão pessoal
Em minha longa experiência no mercado de capitais brasileiro, acostumei-me a ouvir comentários céticos, senão desairosos, sobre a transposição de entidades e procedimentos internacionais de sucesso para o País, mesmo com a devida adaptação às normas locais (o que pejorativamente se costumava chamar de tropicalização, muitas vezes sinônimo de atenuação ou diluição).

Não sei se isso se deve a um equivocado sentimento de que somos fundamentalmente diferentes de qualquer outra nação (o que eu chamaria de síndrome de jabuticaba), ou a um complexo de inferioridade causado pelo isolamento e pela frustração atávica de ver o Brasil perder a chance de se tornar uma economia desenvolvida ao longo do século passado.

A realidade é que os profissionais do mercado financeiro nacional deveriam ser aqueles mais confiantes na possibilidade de replicarmos boas experiências de outros mercados. As mudanças ocorridas no mercado de capitais brasileiro nos últimos trinta anos foram enormes e apontaram para uma clara convergência aos melhores padrões internacionais. Elas foram causadas pelo processo de internacionalização, ao qual as instituições locais responderam com notável agilidade.

Quem conheceu a quase total falta de informação dada pelas companhias abertas ao investidor, bem como a inexistência de “chinese walls”, de pesquisa de “sell-side” e de controle de risco, por exemplo, sabe o quanto o mercado progrediu, apesar de tantos problemas ainda por serem atacados.

Essas mudanças, porém, sempre conviveram com o sentimento negativo de que a barra da governança, dos controles, do grau de informação e dos direitos dos acionistas pode estar sendo elevada de modo excessivo para os padrões brasileiros, seja lá o que isso signifique. Claro que a percepção se faz sentir com muito maior intensidade quando as propostas de mudança ocorrem no âmbito da autorregulação, em que a adesão a regras e procedimentos é voluntária.

O fato é: a internacionalização, que fez dos investidores estrangeiros os mais relevantes do mercado acionário brasileiro, com participação crescente na dívida pública, tornou inevitável a convergência para os melhores padrões do mercado internacional. Os bancos, as corretoras, os gestores, as empresas, as associações representativas de agentes do mercado e a Bolsa se adaptaram à nova realidade. Algumas com papel de liderança nesse processo, apontando a direção a ser seguida, como a BM&FBovespa, quando criou os níveis diferenciados de listagem, como o Novo Mercado.

Durante alguns anos, os técnicos da Bolsa que faziam a interlocução com o mercado receberam os comentários céticos a que me referi e sentiam a frustração de não ter a esperada adesão das empresas aos Novo Mercado. Até que a pressão dos fundos de pensão, por meio das medidas de incentivo emitidas pela autoridade reguladora do segmento, e sobretudo dos investidores estrangeiros, dada a necessidade das empresas de captar novos recursos para financiar os investimentos e acompanhar a retomada do crescimento econômico, tornou os níveis diferenciados de listagem uma realidade.

Quase certamente, muitos dos que tomaram contato com o Takeover Panel e a iniciativa de replicar essa experiência no Brasil via CAF terão o mesmo tipo de dúvida ou ceticismo quanto à adequação a nosso mercado — semelhante ao que se pensava e se dizia nos processos de implantação do Novo Mercado, de códigos de autorregulação e de outras medidas que foram tomadas ao longo dos últimos anos para aperfeiçoar (subir a barra) da governança corporativa e das regras de funcionamento do mercado de capitais brasileiro.

Se quisermos ao menos manter a internacionalização duramente conquistada pelo mercado e todos os benefícios advindos dela, precisamos avançar na convergência para os padrões internacionais de governança, inclusive recuperando os recentes passos dados atrás. Para tanto, há que vencer a inércia, o desânimo e o ceticismo, infelizmente tão usuais.

Acredito que a iniciativa de implantação do CAF se insere nessa direção. Replicando uma experiência tão longa e de tanto sucesso, usamos a vantagem de chegar atrasados ao processo: a possibilidade de selecionar bons exemplos e queimar etapas. Dessa forma, o CAF (junto com as entidades que o constituíram e o apoiam) espera contribuir para o aperfeiçoamento da governança corporativa, particularmente nas OPAs e reorganizações societárias, aumentando a confiança e a credibilidade do mercado brasileiro de ações.


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