As regras de manipulação de mercado da CVM precisam ser revistas?
Com novas práticas irregulares, como o spoofing, revisão de normas volta a ser debatida
Marcelo Cavali em ilustração

Marcelo Cavali/ Ilustração: Julia Padula

Sim

Por Marcelo Cavali*

Todos os países que têm mercados de capitais proíbem sua manipulação. No Brasil, a conduta é punida penal e administrativamente com base no dogma da independência das instâncias. Essa sobreposição tem sido repudiada mundo afora, com restrições estabelecidas, por exemplo, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos e pelo Tribunal de Justiça da UE.

Na esfera administrativa, as infrações estão regulamentadas pela Instrução 8/79 da CVM, que define quatro formas de manipulação de mercado. Sua longevidade se deve aos termos genéricos definidores das infrações. Segundo a Nota Explicativa 14/79 da CVM, foram previstas na instrução, “de forma propositadamente genérica, situações que configuram operações ou práticas incompatíveis com a regularidade que se pretende assegurar ao mercado de valores mobiliários”.

Num ambiente dinâmico como o do mercado de capitais, a formulação ampla das infrações é justificável, dada a impossibilidade de se prever em detalhes todas as condutas nocivas. A amplitude conceitual é compensada pela consolidação da jurisprudência da CVM e do CRSFN sobre os elementos das infrações. Nesses quase 40 anos, chegou-se a um grau razoável de segurança jurídica, que permite aos operadores do mercado saber quais condutas são proibidas e quais são permitidas.

Mas um exame cauteloso dos julgados da CVM mostra que os critérios de identificação dos elementos de cada um dos ilícitos administrativos, em muitos casos, afastam-se da literalidade da norma ou são simplesmente presumidos. Em outros, dada a largueza semântica das definições, há incidência de mais de uma norma ao mesmo fato.

Condições artificiais de demanda, oferta ou preço são definidas como “aquelas criadas em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa, provocarem, direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários”. Mas para a CVM a constatação de artificialidade basta para se demonstrar a alteração no fluxo de ordens.

Assim, a caracterização de um elemento da norma acarreta, automaticamente, a certificação da existência do outro. Subjaz a esse posicionamento a preocupação com dificuldades probatórias na demonstração de efetiva alteração do fluxo de ordens — que não seria, de fato, um elemento essencial para se demonstrar a lesividade à formação de preços. Não obstante, não se pode negar que, por um sofisma, acaba por se eliminar na prática o requisito expresso da alteração do fluxo de ordens.

Outro problema é a sobreposição entre ilícitos. Os elementos da criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço são muito semelhantes aos da manipulação de preços, do que decorre certa arbitrariedade na subsunção. Um exemplo: o spoofing tem sido enquadrado pela BSM como criação de condições artificiais e pela CVM como manipulação de preços.

A experiência acumulada pela CVM em quase 40 anos de exame de casos lhe permitiu verificar que certos requisitos da Instrução 8/79 geram dificuldades probatórias, são irrelevantes para a verificação da lesividade da conduta ou vagos. Seria bem-vinda reformulação da norma, para que reflita a experiência da autarquia sobre quais são os elementos considerados de fato relevantes.
A segurança jurídica agradece.

*Marcelo Cavali ([email protected]) é juiz federal, atualmente em auxílio no STF, e doutor em direito penal pela USP


 

Otavio Yazbek em ilustração

Otavio Yazbek/ Ilustração: Julia Padula

Não

Por Otavio Yazbek*

Comumente a pergunta é feita de outra forma: não se deveria revogar a Instrução 8/79, que define manipulação de preços e outros tipos correlatos? A norma tem, afinal, quase 40 anos e sempre sofreu críticas.

A meu ver, se em meio a uma atividade regulamentar intensa na última década não se tocou nessa instrução, isso decorre menos das limitações da CVM e mais de qualidades, nem sempre reconhecidas, da norma. Em geral, as críticas estão ligadas à vagueza dos tipos, especialmente problemática na atividade sancionadora. Nem sempre são claros os limites da atuação permitida. Acusações tendem a ser mais frágeis, defesas são dificultadas. Ainda assim, defendo a sua adequação.

Os críticos não apresentam soluções para os reais problemas: regras mais detalhadas não abrangem todo o universo regulado e ficam obsoletas com facilidade (como já esclarece a Nota Explicativa 14). Ante a dinâmica dos mercados, a flexibilidade da instrução faz com que não se precise sempre reformular o arcabouço normativo. A 8 sobrevive, na verdade, em razão de uma certa sabedoria.

São vários os casos em que a CVM se depara com a necessidade de redefinir as normas, num exercício que, atualmente, é da vida do intérprete da norma. Por isso é errado também dizer que ela está obsoleta.
Um exemplo dessa capacidade de atualização reside nos recentes casos de spoofing, em que a norma foi aplicada a uma nova realidade. E neles também se encontra uma demonstração clara dos riscos desse tipo de regra. Isso porque, para mim — e esclareço que atuei como advogado em alguns dos casos —, neles a CVM errou.

Nas acusações, o spoofing foi caracterizado com base em critérios da BSM, não divulgados por nenhuma regra. As acusações traziam tabelas relacionando algumas daquelas características e essa era a única prova. Não se analisava para onde o mercado estava indo, como se comportou depois ou se havia uma lógica por trás das ordens, ignorando-se posições jurisprudenciais consolidadas, para as quais sempre foi essencial a artificialidade. Pior: não só houve mudança conceitual relevante, como também, quando do julgamento, a própria BSM já mudara seus parâmetros para identificar a prática.

A abertura do tipo permite essa forma de ajuste. Mas por força dos princípios que norteiam a atuação do regulador, não é no processo sancionador que se deve criar nova interpretação. Como a CVM deveria ter agido, então? Em algum momento ela deveria ter divulgado (talvez por um parecer de orientação) que a partir dali seriam consideradas para aqueles fins operações que meramente atendessem a certos requisitos e ter dito quais seriam, para ela, tais requisitos.

É necessário que a CVM, ante o instrumento de que dispõe e tendo em vista a necessidade de garantir segurança ao mercado, atue com cuidado. A valorização de sua capacidade analítica e de criação de conhecimento — já em andamento —, a comunicação efetiva e a discussão com o mercado são essenciais para evitar esses problemas.

Assim, as falhas não estão na norma.

A tessitura mais aberta da Instrução 8 é coerente com a dinâmica do mercado. É a sua aplicação que requer cuidados adicionais.


*Otavio Yazbek ([email protected]) é advogado, ex-diretor da CVM e doutor pela USP

 


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