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A discrepância entre o discurso de sustentabilidade e a prática
Após rompimento da barragem da Vale, especialistas discutem as lições do desastre
A discrepância entre o discurso de sustentabilidade e a prática

Ilustração: Rodrigo Auada

É uma sequência de três letras — ESG — a senha que facilita a liberação de um colossal volume de investimentos de fundos internacionais para empresas comprometidas com o impacto socioambiental de suas atividades. A cada dia mais os investidores usam os indicadores “environmental, social and governance” para selecionar os ativos em que vão apostar por um longo prazo — às vezes até por exigência estatutária. E eles demandam comprometimento real das companhias investidas, e não “sustentabilidade de relatório”. Nesse contexto, a ocorrência de um segundo desastre sem precedentes com rompimento de barragem de rejeitos de mineração da Vale, desta vez na mineira Brumadinho, suscita questões inquietantes. Se uma gigante da bolsa aparentemente negligenciou ameaças iminentes, como saber se outras empresas com grande impacto ambiental também não escondem falhas em sua gestão de risco operacionais? Essas políticas são realmente levadas a sério pelos administradores? O desastre em Brumadinho pode fazer as companhias brasileiras perderam a confiança — e o dinheiro — dos investidores focados em ESG?

Ainda não há respostas definitivas para essas perguntas, mas o calor da hora não impede que sejam feitas avaliações de possíveis cenários, um exercício fundamental no mercado de capitais. Para essa discussão, a capital aberto convidou a advogada especialista em direito ambiental do escritório Stocche Forbes Caroline Dihl Prolo; o analista-chefe da Sitawi, especializada em indicadores ESG, Cristóvão Alves; o ex-secretário nacional de minas e metalurgia (governo Fernando Henrique) e hoje CEO da consultoria Ad Hoc, Luciano Borges; e o analista-chefe da corretora Mirae Asset, Pedro Galdi. Leia a seguir os principais trechos da conversa.

Capital Aberto: Como uma empresa do porte da Vale, ciente da natureza de sua operação, deixou que ocorresse uma nova tragédia com barragem?

Caroline Dihl Prolo: O centro da discussão é a gestão de risco. A legislação ambiental é bastante protetora do meio ambiente — o que é bom —, porém a sua rigidez faz com que as empresas tenham receio de se expor a uma situação em que não tenham certeza de que estão 100% adequadas. A consequência disso é que não criam soluções fora da caixa, além do que é mandatório. A grande mensagem dessa catástrofe horrorosa é a reavaliação das premissas de gestão de risco socioambiental.

Cristóvão Alves: Não dá para compreender como a empresa se envolveu novamente numa tragédia como essa, três anos após Mariana. Aquele rompimento [da barragem de Fundão, da subsidiária Samarco, em 2015] saiu, de certa forma, até barato para a Vale, já que os acordos fechados não doeram tanto no bolso dos investidores. Por isso, a empresa acabou não tendo uma preocupação tão severa na melhora da gestão de seus riscos, especialmente com barragens. A partir de agora, o investidor vai ficar mais atento aos ativos da empresa para tentar verificar se são arriscados ou não. A expectativa que fica é de uma maior transparência na apresentação desses riscos.

Luciano Borges: Precisamos avaliar a gestão de risco versus a conduta corporativa. A minha gestão de risco é um compliance, quando o problema é de risco técnico? A gestão de risco envolve a possibilidade de perda financeira, considerando que o investidor busca mais valor ou distribuição de dividendos? Então, uma gestão de risco com foco corporativo, no desempenho, na relação com investidores e autoridades, não é capaz de impedir o que aconteceu em Brumadinho. Não se mudou a conduta na empresa após o desastre da Samarco. Foram mantidos os parâmetros de foco na gestão dos riscos financeiros, corporativos e regulatórios e foi deixado de lado o risco operacional, que se revelou o pior de todos. Faltou atenção e alinhamento entre os objetivos e as obrigações da operação, sobretudo dos gestores.

Pedro Galdi: É preciso lembrar que a barragem de Brumadinho tinha um modelo permitido pela legislação, embora ultrapassado. A empresa não iria se desfazer da estrutura do nada, pois há muito recurso envolvido. Deveria ter sido feito um monitoramento correto para se evitar o que aconteceu. Há barragens de risco até maior, várias “bombas” para estourar em Minas Gerais, mas a Vale acabou sendo a “premiada”. De qualquer maneira, a Vale, com a experiência de Mariana, deveria ter dissipado esses riscos. Para a Vale, o que fica é uma imagem terrível diante do investidor.

CA: O problema está na legislação ambiental?

Dihl Prolo: É preciso deixar claro que não há falta de legislação. O órgão ambiental tem completa discricionariedade para, no caso concreto, avaliar se há ou não risco.

Borges: Mas um dos principais problemas é que a legislação se preocupa muito mais com o efeito do que com a causa. E a fiscalização se dá no efeito, não na causa. Não vejo problema regulatório, a regra é boa. A questão é de conduta dos agentes, de como se avalia o risco pelo lado da empresa, de como se exerce a função institucional pelo lado do governo. Existem deficiências em ambas as partes. Depois de Mariana houve uma série de mudanças de marco regulatório, de portarias, mas aconteceu de novo. Volto ao ponto inicial: faltou alinhamento entre o risco operacional e os demais — corporativo, financeiro, social e até político.

CA: Qual é a responsabilidade dos governos e dos órgãos públicos?

Dihl Prolo: A rigor se pode imputar uma responsabilidade por omissão, ou até mesmo por não se ter agido na forma mais perita, adequada. No caso da Samarco, União, Ibama e a secretaria mineira de meio ambiente foram responsabilizados; todos na cadeia de decisão que poderiam ter tomado alguma atitude para que o rompimento da barragem do Fundão não acontecesse. Claro que a Samarco, por ter causado o dano, é muito mais visada como agente. Em Brumadinho, pelo que temos visto do Ministério Público, a perseguição da indenização vai acontecer exclusivamente em relação à Vale, sem que se use como referência o caso da Samarco.

CA: Falta, então, algo além do cumprimento das obrigações formais…

Dihl Prolo: O que aprendemos é que a legislação ambiental, o órgão ambiental e o legislador falham porque muitas vezes não conseguem prever todos os riscos. Por mais que se modifique a legislação, todos os envolvidos precisam estar muito ativos na gestão de fato, com análise, transparência e profundidade. Infelizmente, as coisas se postergam por se achar que nada vai acontecer, o que impede mudanças efetivas.

CA: Por que existe uma discrepância entre o discurso de sustentabilidade e a prática?

Alves: Hoje muitas empresas se comunicam na linha “pra inglês ver”. Os relatórios de sustentabilidade são muito purpurinados. É difícil de capturar, especialmente no setor de mineração, como se diferencia a qualidade da segurança de uma barragem de uma empresa para outra. Para piorar, as empresas às vezes não têm o recorte global de seus próprios acidentes ou mudam as métricas de um ano para o outro, o que altera padrões antes apresentados. Os relatórios ainda carecem de transparência. Há muita informação, mas não se consegue comunicar os indicadores necessários para o investidor diferenciar as empresas.

CA: A sustentabilidade é valor ou retórica no mundo corporativo?

Alves: A sustentabilidade muitas vezes é um ponto cego no mundo corporativo. Só que, ao ignorar sua importância, a empresa perde a chance de reduzir prêmio de risco, melhorar a geração de caixa e mitigar a ocorrência de ilícitos. A percepção de sustentabilidade pode ficar ruim a ponto de a empresa perder valor.

CA: Fundos que adotam indicadores ESG como fator para escolha de investimento devem desmontar suas posições em papéis da Vale?

Alves: Tenho observado, desde a tragédia de Brumadinho, que alguns investidores institucionais estrangeiros estão se juntando para exigir mais transparência da Vale. Me parece que há uma atitude do mercado mais de engajamento do que de exclusão, por mais que exista um grande risco potencial ambiental e social.

Galdi: Quando houve o acidente da Samarco, as ações da Vale despencaram num primeiro momento, mas depois valorizaram-se pelo menos 200%. Sabemos que a empresa vai sofrer, mas não vai acabar por causa disso. A própria paralisação da produção [de cerca de 70 milhões de toneladas, o equivalente a 18% da produção] vai elevar o preço do minério de ferro; assim, haverá uma perda operacional sem perda financeira — a Vale vai vender menos, mas a um preço mais alto.

CA: E como fica o valuation da Vale?

Galdi: Há duas formas de avaliação: a local e a adotada no exterior, que considera fatores ESG, com prêmio ou desconto, dependendo da adequação socioambiental da empresa. No Brasil, esse aspecto não é usual, o que é uma pena. O investidor brasileiro, em geral, não está preocupado com sustentabilidade. Quando faz uma análise de fluxo de caixa, não considera essa premissa. Diante do ocorrido, algo deve mudar nesse sentido.

CA: Agora falando mais especificamente, em responsabilização por “CPF”, como foi dito em Brasília. Isso pode atingir vários níveis hierárquicos da Vale?

Borges: Do ponto de vista da tomada de decisão, do plano emergencial, de evacuação da área da barragem, qualquer falha operacional é de responsabilidade da gerência ao conselho de administração. A questão está no grau de responsabilidade, se maior ou menor. Quando se fala de governança, é necessário dar atenção a todos os pontos críticos da operação. Em um exemplo hipotético, se o funcionário encarregado da sirene não disparou o aparelho, a responsabilidade é dele. Agora, se a pessoa responsável por determinar onde fica a sirene escolheu um local em que não haveria tempo para ser acionada, a responsabilidade muda de lugar.

Dihl Prolo: Há pessoas físicas e jurídicas envolvidas, com posições diferentes, membros do conselho, gerentes e pessoas com funções operacionais. Ainda não dá para saber o que vai acontecer, mas esse processo precisa resultar em algum tipo de resposta. Caso não haja alguma condenação, isso vai gerar na sociedade um sentimento de impunidade, de que o crime compensa.

CA: Quais lições se pode tirar dessa tragédia?

Alves: O investidor precisa aprender, de uma vez por todas, que mineração não é só dividendo. A tendência é de que fique mais cético quanto às informações divulgadas, precisando confirmar se a empresa adota mesmo as boas práticas.

Dihl Prolo: Deverá ocorrer uma revisão de paradigmas da indústria. Se aconteceu com a Vale, que é um benchmark, essa reflexão deverá se estender a muitos outros setores. A discussão será sobre quais são os riscos controláveis e como agir com transparência em relação a eles. Essa reflexão precisa se estender a qualquer tipo de atividade no Brasil.

Galdi: Ficará um estigma sobre as ações da Vale, que não deixará de ter um papel importante na bolsa, até pelo seu peso [representa cerca de 11% do Ibovespa]. Mas, ao que tudo indica, a tempestade vai continuar atingindo a empresa. O investidor estrangeiro vai avaliar se mantém ou não posição no papel, conforme o poder de reação da companhia.


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