Os reguladores achavam que tinham feito a lição de casa. Nos Estados Unidos, questionava-se até se eles não teriam passado do ponto ao exigir tanto das companhias por meio da dura lei Sarbanes-Oxley, de 2002. Na Europa, medidas menos pesadas, mas igualmente prudenciais, foram tomadas para evitar que escândalos corporativos minguassem, da noite para o dia, as poupanças investidas nos mercados de ações. Regras foram editadas e cumpridas, e as bolsas recuperaram-se do baque provocado pelas fraudes contábeis. Um pujante fluxo de liquidez inundou os mercados nos anos seguintes. As bolsas se valorizaram. Países viram suas economias crescer aceleradamente. Tudo parecia sob controle, pelo menos até a quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Do pior jeito possível, reguladores e demais agentes dos mercados perceberam que novas crises de confiança não apenas tinham espaço para eclodir como poderiam surpreender a todos com sua gravidade. O que ocorreu, afinal? A extensa cartilha de controles prevista por leis como a Sarbanes-Oxley não serviu de nada?
A eficácia da regulação — ou a falta dela — foi um dos temas debatidos durante a conferência anual da International Corporate Governance Network (ICGN), realizada entre os dias 13 e 15 de julho, em Sydney (Austrália). “No encontro do ano passado, discutíamos se o melhor modelo de regulação era o baseado em princípios, conforme o modelo inglês, ou em regras, como o norte-americano. Desta vez, a única certeza é a de que ambos falharam”, disse Chris Ailman, chefe de investimentos da CalSTRS, o maior fundo de pensão de professores dos Estados Unidos. Ao refletir sobre erros e acertos, os convidados deixaram claro que a vida dos reguladores não vem sendo fácil nos últimos tempos. Alguns desafios se impõem, e não há respostas consensuais sobre como contorná-los.
O capital é livre
Uma das maiores dificuldades dos reguladores é saber lidar com as características do mercado moderno. É preciso encarar fatores como a mobilidade de capital, que pode privilegiar jurisdições com mais facilidades regulatórias. Ethiopis Tafara, diretor de assuntos internacionais da Securities and Exchange Commission (SEC) dos Estados Unidos, deixou evidente que esse tipo de arbitragem é uma das principais preocupações dos norte-americanos. Eles temem pesar novamente a mão emitindo regras e acabar perdendo recursos e emissores para ambientes mais flexíveis, a exemplo do que aconteceu após a Sarbanes-Oxley. “Ser o primeiro a se movimentar pode representar uma desvantagem para quem o fizer. Mas é também uma escolha entre fazer alguma coisa e não fazer nada”, afirmou. Para Tafara, cabe aos organismos multilaterais, como a International Organization of Securities Commissions (Iosco), garantir que o movimento dos reguladores seja feito de forma harmônica, de modo que nenhuma jurisdição saia prejudicada. “Não podemos deixar que o medo da arbitragem se transforme em paralisia.”
O raciocínio de Tafara foi logo refutado pelo representante do mercado europeu que sentava à mesa de painelistas. Antonio Borges, ex-sócio do Goldman Sachs em Portugal e hoje chefe do hedge fund Working Group e do European Corporate Governance Institute, foi direto ao ponto: “Acho que essa história de arbitragem regulatória tem ido longe demais. Ninguém está buscando o Reino Unido porque lá existe uma regulação mais light, mas sim porque a regulação é mais efetiva”. Cuidadoso para não expor ainda mais a concorrência entre os dois mercados, Tafara concordou que os americanos precisam mesmo de uma regulação mais equilibrada. E frisou que seu ponto principal refere-se à convergência: “Veja o caso dos hedge funds. Todos nós sabíamos, há muito tempo, que era necessária uma regulação para esses fundos, mas ninguém quis sair na frente e se arriscar a perder recursos”.
Princípios e regras
São claras as diferenças de estilo que opõem os modelos norte-americano e europeu. E a tendência parece ser encontrar algum lugar no meio do caminho. Para Tafara, discutir qual modelo é melhor não faz mais sentido. “Nós temos regras e temos princípios nos Estados Unidos. O desafio do regulador é saber como balanceá-los”, disse. Segundo ele, enquanto os norte-americanos se sentem pressionados a adotar princípios, os ingleses passam pela mesma situação, no sentido contrário. “A FSA (órgão regulador do Reino Unido) tem gasto um tempão tentando mostrar que tem regras.”
Na opinião de Peter Montagnon, chairman da ICGN, o caminho é um modelo de regulação baseado em “lei dura e lei suave”. Em outras palavras, a criação de algumas regras obrigatórias, definidas na regulamentação; e outras voluntárias, baseadas em um modelo como o “comply or explain”. Para Montagnon, iniciativas de caráter voluntário permitem a evolução de aspectos como o “peer pressure” (pressão de iguais), em que companhias e investidores tendem a adotar as regras — e os princípios — para não ficarem malposicionados em relação a seus pares. “Precisamos de mudanças de comportamento, e isso não é possível atingir apenas com regulação”, avalia. Em sua opinião, as ações estritamente regulatórias devem ser limitadas ao mínimo necessário.
E o que os norte-americanos acham do “comply or explain”? “Essa é uma ideia interessante, que vem sendo cada vez mais discutida nos Estados Unidos”, declarou Tafara à capital aberto. Ele não quis discorrer sobre a possibilidade da adoção dessa abordagem. “Só não tenho dúvidas de que se trata de uma tradição muito mais inglesa do que americana. E de que esse não é o jeito que costumamos fiscalizar.”
EUA tornam-se vilões da boa governança
A quebra de instituições financeiras infectadas por créditos subprime deflagrou as deficiências de governança corporativa nos Estados Unidos em relação ao resto do mundo. “A Sarbanes-Oxley trouxe inúmeras regras, mas nenhuma delas capaz de ampliar os poderes dos acionistas”, ressaltou Anne Simpson, ex-diretora executiva da ICGN e hoje gestora sênior da CalPERS. A crise estimulou a discussão sobre a efetividade dos conselhos de administração e, junto com ela, a revolta com os escassos direitos que os acionistas possuem nos Estados Unidos para influenciar a composição do board. |
“Twin peaks” festejado
Se a discussão entre princípios e regras está superada, o mesmo não se pode dizer dos modelos de estruturação da regulação. Os Estados Unidos foram duramente criticados pela escolha de um sistema totalmente fragmentado, que não só divide a regulação por setor e tipo da empresa fiscalizada, como cria regras diferentes para as esferas estadual e federal. Para felicidade do anfitrião do evento, o modelo australiano conhecido como “twin peaks”, que divide os reguladores conforme a natureza da sua atuação e não por setor ou tipo de empresa, foi elogiado em várias oportunidades.
Também adotado na Holanda, o “twin peaks” reparte a função de regular entre dois agentes: um responsável pela supervisão da liquidez das instituições e dos riscos incorridos (regulador prudencial); e outro voltado a disciplinar e supervisionar a conduta de mercado. Ambos se encarregam das respectivas tarefas para todos os setores e produtos financeiros. Nos Estados Unidos, é exatamente o contrário: cada um dos agentes especializados está encarregado de supervisionar as áreas prudencial e de condução do mercado. Para Stephen Haddrill, diretor geral da associação de seguradoras britânicas, o modelo “twin peaks” é muito mais efetivo porque permite foco em cada um dos papéis. “Como o trabalho sobre a conduta dos mercados é o que recebe mais atenção popular, a tendência quando um mesmo órgão exerce as duas funções é que se dê menos atenção à atividade prudencial”, constatou.
Mais regulação?
O receio quanto a exageros do regulador no pós-crise foi manifestado em alguns painéis. A União Europeia foi fortemente criticada pelas exigências impostas aos gestores de fundos de private equity e hedge funds, anunciadas em abril. Teme-se que as medidas afastem gestores estrangeiros, que não conseguiriam se adaptar às regras. “É algo difícil de digerir”, assegura Antonio Borges. “Essa medida reflete o pior lado da Europa, que é o de ser extremamente protecionista em algumas situações.” Para Montagnon, a medida pode ser considerada “a SOX dos europeus”. Em sua opinião, a saída não está em ações restritivas, mas sim em iniciativas que ampliem os mecanismos de prestação de contas. “Se os executivos informarem os conselhos, e estes informarem os acionistas, não precisaremos de reguladores intrusos.”
A diretora de supervisão da comissão de valores mobiliários da Malásia, Nik Ramlah Mahmood, pediu aos demais reguladores que contenham seu ímpeto. “Sei que, no pós-crise, existe uma forte pressão popular, e é mais fácil aprovar novas leis no Congresso. Mas é preciso resistir. Nessas ocasiões, há sempre um risco de se combater os sintomas e não a doença.” Para Nik, exigir mais transparência costuma ser a melhor opção após um cenário de turbulência. A necessidade de informar por vezes é suficiente para prevenir comportamentos ruins, evitando a necessidade de proibições ou regras mais duras.
Asiáticos já viram esse filme
Enquanto os reguladores e investidores do eixo EUA-Europa criticavam os próprios erros, representantes de países asiáticos orgulhavam-se de já terem visto — e resolvido — alguns desses problemas. Nik Ramlah contou, por exemplo, que uma das primeiras medidas após a crise asiática foi suspender as operações de venda a descoberto (short selling). “Essa prática foi considerada um amplificador dos impactos da crise.” A SEC foi pelo mesmo caminho após a crise de setembro de 2008.
A Malásia introduziu também um mecanismo de registro das agências de rating em 2005. “Naquela época, fomos muito criticados pelas agências, que nos acusavam de ser os únicos a fazer isso no mundo. Mas seguimos em frente”, contou Nik.
A regulamentação do país prevê algumas boas práticas para as classificadoras de risco sob o regime “comply or explain”: as que não se adequarem devem se justificar. Algumas dessas normas dizem respeito a transparência. Por exemplo, as agências são obrigadas a explicar em detalhe como gerenciam os conflitos de interesses.
Charnchai Charuvastr, presidente da associação de conselheiros de administração da Tailândia, relatou os progressos do seu país após a crise do fim da década passada. “Confesso que estou sentindo um déjà vu durante este encontro. Nós já debatemos muitas dessas questões lá atrás”, afirmou. Desde 2000, a Tailândia vem implementando um regime de disclosure que exige informações detalhadas sobre aspectos como as transações com partes relacionadas, a estrutura de controle das companhias e a remuneração dos administradores. Hoje, segundo o executivo, existem 450 companhias listadas na Tailândia que estão alinhadas com os princípios de governança da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Na parte de disclosure, o alinhamento com os princípios da OCDE era de 35% sete anos atrás e, agora, é de 85%. O país, contudo, ainda tem muito a evoluir. “Hoje, 85% das nossas companhias têm alguém para se comunicar com os acionistas. E, melhor do que isso, 28% delas têm um departamento de RI”, disse Charuvastr, ignorando o fato de que esse percentual ainda é baixo.
Dinheiro enxuto também é problema na SEC
Quem visita as moderníssimas instalações da Securities and Exchange Commission em Washington D.C. — um edifício todo envidraçado por fora e luxuosamente mobiliado por dentro — não imagina que a agência reguladora do mercado de capitais norte-americano, a exemplo da sua congênere brasileira, padeça de falta de orçamento. Mas essa é a mais pura verdade, ao menos na visão da presidente da agência, Mary Schapiro. |
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