Encolhidas pela crise
Após euforia, tombo da classe C desestabiliza os negócios de varejistas como Riachuelo, Marisa e Hering
Ilustração: Beto Nejme / Grau 180

Ilustração: Beto Nejme / Grau 180

Em 2016, a animação típica das grandes redes varejistas de vestuário nas semanas que antecedem cada fim de ano deu lugar a uma intensa sensação de desconforto. Em meio a vendas limitadas pela recessão, os executivos das empresas ancoravam no movimento impulsionado pelo Natal a esperança de recuperação de pelo menos parte da receita perdida ao longo dos meses anteriores. Esperavam, ainda, que a estratégia escolhida fosse bem-sucedida — por um lado, estoques baixos demais poderiam levar a perdas de vendas caso os consumidores inesperadamente resolvessem comprar mais; de outro, estoques exagerados poderiam gerar encalhes e inevitáveis remarcações, o que afetaria as margens além do desejável. Um cenário nada positivo para um setor que, na bolsa, já levou muitas alegrias para os investidores na última década ao aproveitar a onda de inclusão da classe C no mercado consumidor. Acontece que a maré virou — e agora as companhias se desdobram para colocar em prática estratégias para escapar do atoleiro.

O Natal do ano passado de fato não conseguiu amenizar a situação. Pesquisa do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV) mostrou que as vendas de semiduráveis (roupas, calçados, artigos esportivos e de livraria) tiveram queda real de 2,7% em dezembro sobre igual mês de 2015. Mas mesmo que o fim de 2016 tivesse sido sensacional, dificilmente contrabalançaria o desempenho ruim do exercício. No ano passado, as empresas do setor listadas em bolsa — Marisa, Cia. Hering e Riachuelo (presente no mercado por meio de sua controladora, a Guararapes) — enfrentaram perdas de receitas no conceito mesmas lojas (que contabiliza apenas unidades com pelo menos um ano de operação), considerando os últimos dados disponíveis até o fechamento desta edição, referentes ao terceiro trimestre.

As redes de Marisa e Cia. Hering diminuíram, enquanto o ritmo de expansão da Riachuelo desacelerou. A exceção ficou por conta da Lojas Renner, que conseguiu pelo menos manter o faturamento nas unidades mais antigas e ampliar a quantidade de lojas, por ter detectado, há pelo menos três anos, a possibilidade de mudança no ambiente para os negócios. E quando isso aconteceu, a companhia habilmente conseguiu reduzir suas despesas. O mercado, contudo, não perdoou quem não teve essa mesma capacidade de previsão e adaptação. Nos 36 meses encerrados em 3 de fevereiro deste ano, as perdas foram expressivas para Marisa (54,52%), Cia. Hering (27,39%) e Guararapes (17,43%). Na contramão, as ações da Renner subiram impressionantes 142,82%.

As quedas refletem os efeitos deletérios do cenário econômico do último biênio, que fez encolher as compras da chamada nova classe média. Há alguns anos, com a classe C em disparada, fazia sentido para as redes de varejo de moda investir pesado na conquista desses consumidores, principalmente com a abertura de lojas em regiões mais populares tanto dos grandes centros urbanos quanto de cidades médias do interior do País. Em 2012, levantamento do instituto Data Popular feito com base em dados da Pnad do IBGE estimou que a classe média, que correspondia a 42,4% da população brasileira em 2004, chegaria a uma participação de 58,3% em 2014 — a evolução representaria um acréscimo de 38 milhões de pessoas em uma década. Mas o resultado efetivo ficou longe disso: desde 2013 o percentual se mantém em 53%, segundo o instituto. O que o farol das pesquisas não permitiu enxergar foi a recessão que, nos últimos anos, elevou a taxa de desemprego e prejudicou o poder de compra desses consumidores. E é esse o cenário-base que as empresas têm agora diante de si para montar estratégias de recuperação.

Pé no freio

Depois de mais do que dobrar seu número de lojas — de 201 para 416 pontos de venda (PDVs) entre 2007 e 2014, expansão em parte financiada pelos R$ 506 milhões captados em seu IPO em 2007 —, a Marisa passou a fechar lojas e cancelou projetos de expansão a partir de 2015. Em setembro do ano passado, a rede tinha 398 unidades. A receita líquida caiu 8,3% nos nove primeiros meses do ano em relação a igual período do ano anterior; já as vendas em mesmas lojas recuaram 7,2% nessa comparação. Os papéis de Marisa, que chegaram ao valor máximo de R$ 30 em 07 de fevereiro de 2013, desabaram para R$ 5,98 em 10 de fevereiro. Para o presidente da companhia, Marcelo Araújo, é nítida a contribuição das lojas instaladas em regiões mais populares — tanto em ruas de comércio quanto em shoppings voltados para as classes C e D — para a queda dos indicadores de vendas. “Lojas que classificamos como premium têm resultados significativamente melhores”, diz o executivo, que assumiu a empresa em julho do ano passado. Apesar disso, a Marisa não planeja se afastar da classe C — muito pelo contrário. A companhia quer se aproximar novamente desse público. O cenário de explosão da nova classe média levou a varejista a apostar nos últimos anos em linhas de produtos mais sofisticadas e rentáveis, estratégia que precisa agora ser revista para atender clientes com menor renda disponível para o consumo. A consultoria McKinsey vem ajudando a Marisa no diagnóstico dos seus problemas.

A Cia. Hering igualmente ficou mais enxuta depois de uma intensa fase de crescimento, impulsionada pela abertura de franquias — elas representam quase 90% dos PDVs e, na prática, eliminam custos para a franqueadora. De 2007 a 2015, a rede da Hering, que inclui as marcas Hering Store, Hering Kids, PUC, Dzarm e Hering for You, saltou de 248 lojas para 840. No ano passado, o tamanho diminuiu pela primeira vez, para 834 unidades. De acordo com comunicado preliminar com números não auditados divulgado pela companhia em janeiro, as receitas brutas tiveram redução de 8% no ano e de 15,3% no quarto trimestre ante igual período de 2015. Esses percentuais somam-se a outros resultados negativos, já que desde 2012 as vendas acumulam quedas. Assim, uma empresa que já figurou entre as queridinhas do mercado tem sido castigada nos pregões: do pico de R$ 39,66 registrado em 1 de novembro de 2012, as ações da Cia. Hering despencaram para R$ 15,25 em 10 de fevereiro deste ano. “O fraco desempenho das vendas nos últimos anos resultou em problemas no sortimento de produtos e na significativa aversão ao risco entre seus franqueados e clientes multimarcas”, escreveram, em relatório, os analistas do Santander João Mamede e Jéssica Bessa. De acordo com fontes do setor, a companhia sofre ainda com pressão de franqueados para redução de taxas de royalties, em razão dos resultados mais fracos.

A “explosão” da nova classe média levou a Marisa a apostar nos últimos anos em linhas de produtos mais sofisticadas, estratégia que precisa agora ser revista

Para reverter a situação ainda em 2017, a empresa aposta na maturação da centena de PDVs reformados e modernizados recentemente, inclusive com investimentos subsidiados pela companhia. As melhorias envolvem de iluminação a organização e disposição dos produtos nas seções, de forma a influenciar e motivar os clientes a comprar. Paralelamente a essa iniciativa, a companhia aperfeiçoou sua gestão de abastecimento e estoques. “Isso deve deixar a Hering mais preparada para enfrentar condições adversas do consumo no Brasil hoje”, avalia Fabio Hering, presidente da companhia.

A Riachuelo, por sua vez, não interrompeu o projeto de expansão, mas pisou no freio. No ano passado inaugurou seis lojas, depois de ter aberto 88 entre 2013 e 2014 — para se ter uma ideia, em uma década a rede passou de 93 unidades para as atuais 289. Mais um reflexo da montanha-russa da classe C. “Nitidamente, a crise vem de baixo para cima. O impacto é maior nas lojas de regiões com maior proporção de clientes de renda mais baixa”, afirma o CEO da Guararapes, Flávio Rocha. O grupo abarca, além da Riachuelo, uma indústria de confecção (que vende 100% de sua produção para a varejista), um shopping center, uma financeira e uma transportadora. Apesar de a receita líquida da Guararapes ter aumentado 5,52% no terceiro trimestre de 2016 em relação ao período de julho a setembro do ano anterior, as vendas nas mesmas lojas tiveram retração de 2,2% nessa comparação. Após atingirem o pico de R$ 110 em 6 de novembro de 2012, as ações ordinárias da companhia fecharam a R$ 71,50 em 10 de fevereiro de 2017.

Quero ser a Zara

No cardápio de iniciativas para enfrentar a crise, um ingrediente é comum: a busca por uma boa gestão de estoques. Saber quando encomendar e quantas peças comprar não é uma tarefa simples, mas dominar essa arte pode representar uma boa saída para momentos de consumo retraído, além de um diferencial competitivo. Assim, as redes de vestuário brasileiras gradualmente abandonam a estratégia de comprar grandes quantidades de peças apenas nas viradas de coleção, para garantir preços menores com os fornecedores. Em vez disso, fracionam as encomendas, com a ideia de que pode ser melhor até pagar um pouco mais do que correr o risco de encalhe de mercadorias. É o que se conhece no mercado como “fast fashion”, mas que bem poderia se chamar “efeito Zara”. A gigante espanhola é famosa pela produção frenética, pela rapidez de troca de vitrines e araras e pela quase ausência de estoques nas lojas espalhadas pelo mundo.

A Riachuelo, por exemplo, aproveita o fato de contar com dois parques fabris do mesmo grupo para seguir o caminho da Zara. Como 30% do que vende vem dessas duas fábricas, a Riachuelo consegue acelerar ou reduzir o ritmo de produção conforme a demanda na ponta final. Marisa e Renner terceirizam a fabricação do que vendem e importam uma parte das mercadorias (especialmente nas coleções dos meses mais frios). Para acelerar as compras externas, por exemplo, as duas empresas apostam em escritórios na China para melhorar a relação com os fornecedores de matérias-primas no exterior. Já Cia. Hering tem fabricação própria e terceirizada, além de contar com importação.

A Riachuelo aproveita o fato de contar com  dois parques fabris do mesmo grupo para seguir o caminho da Zara

Para se enquadrar no modelo Zara, as empresas precisam investir em novos sistemas de gestão e em logística adequada para distribuição ágil em centenas de lojas espalhadas pelo País. É necessário, ainda, garantir que as coleções tenham elementos que o consumidor identifique como “informação de moda”, o que exige investimentos em pesquisas de tendências e design. Segundo o diretor executivo da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abvtex), Edmundo Lima, mesmo os produtos de preço mais baixo passaram a agregar percepção de valor. “Melhorou a qualidade da matéria-prima, por exemplo”, afirma. Nesse contexto, o desafio das redes varejistas é “enriquecer” as coleções sem elevar o preço final ao consumidor ou as despesas com a produção.

Exceção à regra

O controle dos gastos foi uma das estratégias que colocaram a Lojas Renner à frente da concorrência. Diante da crise, a companhia apostou no estreitamento das relações com os fornecedores para reduzir custos e aprimorou sua logística, com a implementação em dois centros de distribuição do sistema “push-pull”, que identifica as peças que faltam nos estoques e ordena sua reposição. Na prática, isso diminui os riscos de encalhe e liquidações, elevando as margens e o resultado líquido. “A empresa não ficou imune aos efeitos da recessão, mas tem resistido muito bem à tempestade”, escreveram os analistas do Credit Suisse em relatório no final de 2016.

Os números são prova dessa resistência. Nos últimos três anos, a empresa registra vendas maiores pelo conceito mesmas lojas — 7,8% em 2014, 14,4% em 2015 e 0,1% em 2016 (sempre comparando os resultados dos nove primeiros meses de cada ano). “Já no final de 2013, percebemos que o cenário mudaria e iniciamos um programa de redução de despesas. Ele nos permitiu fazer ajustes conforme o comportamento das vendas”, explica José Galló, presidente da companhia. Essa percepção levou as ações da empresa, em meio à euforia do mercado em relação ao impeachment de Dilma Rousseff, a continuarem subindo. Em 10 de fevereiro passado, as ações valiam R$ 24,72.

Também merece destaque o fato de a companhia ser a única entre seus pares de capital aberto a não frear a expansão da rede. Foram 64 novas lojas no ano passado, para um total de 444 — eram 95 em 2007. Hoje o grupo opera com as marcas Renner (com 300 unidades), Camicado (de utensílios domésticos, com 85 lojas) e Youcom (de moda jovem, 59 unidades). De acordo com o Haroldo Monteiro, diretor da Planning & Management e coordenador do MBA Gestão em Varejo do Ibmec, outra explicação para o sucesso da Renner pode estar na migração do segmento “A-”, que também descapitalizado pela crise deixou de comprar itens de vestuário em lojas mais caras.

Clareando

Enquanto da porta para dentro as varejistas tentam arrumar o que o furacão da recessão tirou do lugar, o clima econômico pode estar começando, ainda que muito lentamente, a desanuviar. São fatores positivos para o varejo a aceleração do ritmo de corte da taxa básica de juros (que favorece o alongamento dos prazos de pagamento para os clientes), o arrefecimento da inflação e a melhora dos índices de confiança do consumidor neste início de ano.

A consultoria Iemi — Inteligência de mercado — projeta alta de 1,2% no volume de peças vendidas no varejo nacional de vestuário em 2017, para 5,8 bilhões de unidades. A elevação, mesmo que pequena, ajuda a compensar a perda de 5,9% entre 2015 e 2016. “Neste ano haverá mais combustível para o crescimento, com um aumento esperado da concessão de crédito, principalmente a partir do segundo trimestre”, prevê o diretor da consultoria, Marcelo Prado. Porém, ainda que o prognóstico se confirme para 2017, as vendas devem ficar longe do recorde de 6,4 bilhões de peças registrado em 2014. “Se as coisas andarem bem, talvez o mercado volte a esse patamar em 2019”, especula Prado. Até lá, as companhias de vestuário terão o tempo e a oportunidade de se aprumarem para uma nova fase de crescimento.


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