Analisaremos, no presente artigo, algumas eventuais evoluções no regime de responsabilidade civil e administrativa do “underwriter”, tendo em vista as disposições do novo Código Civil, bem como de algumas normas contidas no Código de Defesa do Consumidor (CDC) referentes à aplicação do regime da responsabilidade objetiva a determinadas situações.
O underwriter, no curso de uma distribuição pública de valores mobiliários, deve analisar as informações fornecidas pela companhia emissora, conferindo sua suficiência e qualidade. Para eximir-se da responsabilidade civil e administrativa decorrente da prestação de informações falsas ou inexatas, incumbe-lhe demonstrar que atendeu ao padrão de diligência.
Assim, o underwriter deve assumir uma postura independente frente à companhia emissora, ao exercer seu dever de diligência. Com efeito, presume-se que ele realiza uma análise profissional das informações prestadas pela companhia, daí considerando-se que seu dever de diligência deve atender aos padrões do banqueiro, não meramente do bom pai de família.
A propósito, a Instrução CVM nº 400/03, em seu art. 37 VII, dispõe que cumpre ao líder da distribuição reanalisar as informações fornecidas ao público, desenvolvendo todos os esforços para verificar sua consistência, suficiência e qualidade.
Um dos principais fatores para se saber se o profissional comportou-se com a diligência esperada é verificar se ele prestou seus serviços de acordo com as regras e métodos usualmente adotados em sua atividade. Assim, não poderá ser responsabilizado o underwriter se ficar demonstrado que ele aplicou corretamente os usos e práticas profissionais geralmente aceitos ou recomendados para a revisão das informações prestadas pela emissora.
Além de observar os padrões de conduta do profissional competente, é necessário que o underwriter seja independente em relação à companhia emissora. Caso o underwriter líder tenha alguma vinculação societária, direta ou indireta, com a companhia emissora ou seu acionista controlador, tal fato deve ser informado no prospecto (art. 33, § 2º da Instrução CVM nº 400/03).
Em princípio, o underwriter não poderá ser responsabilizado civilmente (ou administrativamente no âmbito de procedimento sancionador instaurado pela CVM) caso demonstre que atuou de forma independente e com a diligência esperada do banqueiro competente no exercício de suas atividades.
Seriam eventualmente aplicáveis ao underwriter os princípios da responsabilidade objetiva?
Os artigos 186 e 927, caput, do Código Civil erigiram a culpa como pressuposto para a obrigação de reparar o dano. Assim, a regra geral, em nosso ordenamento jurídico, continua a ser a da responsabilidade civil subjetiva, isto é, aquela cuja caracterização pressupõe a prova da culpa do agente.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a teoria da responsabilidade sem culpa passou a ser aplicada, além dos casos especificamente previstos em lei especial, a todas as hipóteses em que a atividade do agente, em razão de sua natureza, criar um risco maior de danos para terceiros. É o que dispõe o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil: “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
A obrigação de reparar surge do exercício de atividade perigosa, em função do risco que ela representa para terceiros. Ou seja, mesmo sendo a atividade do agente lícita e atuando este de acordo com o dever genérico de cautela, responderá pelos danos que causar a terceiro pelo fato de exercer atividade perigosa.
A periculosidade da atividade deve ser revelada de forma objetiva, por ser ínsita à sua natureza ou em função dos meios nela empregados. Dessa forma, costuma-se distinguir as atividades perigosas pela sua natureza, tais como a fabricação de explosivos e de produtos químicos, produção de energia nuclear, etc., daquelas perigosas em decorrência dos meios empregados, como é o caso, por exemplo, das que se utilizam de substâncias, máquinas e aparelhos perigosos.
Em princípio, não se aplica o art. 927 do Código Civil ao underwriter, cuja atividade não pode ser tida como perigosa, por não ensejar um risco maior do que o normal para os investidores.
Em nosso entendimento, também não se pode cogitar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às atividades do underwriter, dada a clara inexistência de relação de consumo nas operações realizadas no mercado de capitais. Com efeito, os adquirentes de valores mobiliários emitidos por companhias abertas não são consumidores, mas investidores do mercado de valores mobiliários.
Tal conclusão não é afetada pelo fato de o artigo 3º, § 2º, do CDC expressamente mencionar que estão sujeitas às regras nele estabelecidas as atividades de “natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”.
Como é evidente, nem todas as atividades exercidas pelas instituições financeiras podem ser incluídas na noção de “serviços de natureza bancária”, uma vez que só poderão estar nela inseridas aquelas fornecidas no mercado de consumo, como expressamente determina o próprio artigo 3°, § 2° do CDC.
Ou seja, no conceito de atividades bancárias e financeiras sujeitas às regras do CDC não estão incluídas aquelas ligadas ao investimento no mercado de valores mobiliários, uma vez que os investidores não se situam no âmbito do mercado de consumo. Como não existe uma relação de consumo entre os acionistas de determinada sociedade e o underwriter, a hipótese de responsabilidade objetiva prevista no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor também não pode ser invocada.
Porém, a jurisprudência tem estendido em demasia os conceitos de consumidor e de relação de consumo, a fim de abranger todas as situações em que se verifique a existência de um desequilíbrio econômico entre as partes envolvidas.
Esta tendência, a nosso ver equivocada, é verificada em demandas envolvendo instituições financeiras, como se nota, inclusive, em decisão do Superior Tribunal de Justiça -(STJ), de abril de 2004, relativa a uma questão envolvendo fundos de investimento (autos do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2003/0174809-4). Entendeu-se neste caso que “as relações existentes entre os clientes (investidores do fundo) e a instituição apresentam nítidos contornos de uma relação de consumo, sendo, assim, aplicáveis as regras do CDC”.
A eventual aplicação do CDC ao underwriter poderia conduzir a uma situação juridicamente absurda: a responsabilidade objetiva do underwriter por não ter exercido satisfatoriamente o seu dever de diligência na revisão de informações fornecidas pela companhia emissora, a qual, por não estar submetida ao CDC (não pratica serviços de natureza bancária) somente seria responsabilizada se ficasse caracterizado o seu comportamento doloso ou culposo em atenção à regra geral da responsabilidade subjetiva.
Assim, a nosso ver, não cabe a aplicação da responsabilidade objetiva ao underwriter, que somente pode ser punido administrativamente ou responsabilizado civilmente se ficar demonstrado que não atuou com independência e com a diligência profissional requerida do banqueiro.
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