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E agora, quarentona?
Advogados fazem propostas para atualização da Lei das S.As., mas alertam que os riscos de se mexer nela não são pequenos

Considerada um “monumento legislativo” por advogados e juristas, a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) completa 40 anos no próximo dia 15 de dezembro. Repetidamente qualificada como atual, ela demonstra força em diversas situações. Um exemplo: advogados ouvidos para esta reportagem admitem que a lei deve ser objeto de reforma, mas desde que feita de maneira extremamente cuidadosa e pontual — os riscos de se mexer nesse integrado sistema de regras, em que 300 artigos são convergentes e complementares, não são desprezíveis. Exceção no mundo legislativo brasileiro, em que a elaboração das leis se assemelha a uma mal-acabada costura de retalhos, a Lei das S.As. constitui um equilibrado conjunto a ser preservado.

O fato de a peça ter recebido poucas emendas no Congresso Nacional durante o processo de discussão que a originou pode ter ajudado. Mas o grande diferencial foi a boa combinação entre o entendimento do mercado de capitais, a qualidade do texto e a formulação dos juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira — três aspectos considerados brilhantes. Outro ponto alto é o vanguardismo. “A lei funciona admiravelmente bem”, afirma Paulo Cezar Aragão, sócio do escritório BMA. O diploma, diz o advogado, estava à frente do seu tempo quando lançado. Ele exemplifica citando pontos como a responsabilidade que a lei atribui aos administradores das companhias abertas e ao conselho de administração. Apenas recentemente esses temas ganharam importância na prática.

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Um dos grandes acertos da regra, avaliam os especialistas, foi deixar a cargo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a tarefa de regulamentar as matérias, o que conferiu mais agilidade à elaboração de normas do que se o processo tivesse ficado nas mãos do Legislativo. “As necessidades de atualização foram supridas pela CVM”, destaca a advogada Adriana Pallis, do escritório Machado, Meyer. Não obstante, a Lei das S.As. passou por algumas reformas. As mais importantes foram as de 1997 e 2001 (além destas, houve mudanças em 2009 e em 2011). Na primeira, o direito dos acionistas minoritários ao tag along foi retirado, para facilitar o processo de privatização então em curso. Retornou depois, em 2001, junto com outras prerrogativas de proteção, como o voto múltiplo na assembleia geral. E agora? Seria necessária uma nova atualização?

OPA clara

Para advogados ouvidos pela CAPITAL ABERTO, alguns temas merecem sim reformulações. Mas existe o receio de que os ganhos esperados não compensem os riscos de estragos. Eles temem as distorções que um texto já redondo pode sofrer durante um processo legislativo. “Há alguns pontos que poderiam ser aprimorados, embora isso não seja indispensável”, ressalta Nelson Eizirik, do escritório Carvalhosa e Eizirik. Um deles, em sua avaliação, é a obrigatoriedade de oferta pública de aquisição de ações (OPA) quando um acionista compra parcela relevante do capital — poderia ser estipulado um patamar mínimo de participação para disparo da oferta, afirma, como nos países europeus. Por lá, em média, a OPA se torna obrigatória diante de um percentual de 30%. Para Eizirik, o estabelecimento de um piso aumentaria a segurança jurídica e evitaria que minoritários entrassem com ações na Justiça pedindo a realização da OPA.

A Lei das S.As. não especifica um percentual. Ela diz apenas que, quando ocorre alienação do controle, o comprador deve estender uma OPA aos acionistas detentores de ações ordinárias, pagando por elas 80% do desembolsado com as ações ordinárias do bloco de controle (o tag along). Acontece que nem sempre a alienação do controle é facilmente identificável — em especial nas companhias com controle minoritário (em que este é exercido por um acionista ou grupo com algo entre 20% e 30% da companhia) ou com controle disperso (em que o capital é bem mais pulverizado e a identificação de um controlador às vezes não é possível). Nas companhias de controle minoritário, por exemplo, não há clareza sobre a incidência da OPA obrigatória quando alguém adquire ações em poder desse grupo. Caracteriza-se, nessa situação, uma alienação do controle que enseje a necessidade de OPA? A questão fica em aberto.

Outro ponto turvo se forma nos casos em que a companhia tem o capital disperso e um investidor paulatinamente compra ações no mercado, até atingir um percentual relevante, da ordem de 20% a 30% — passando a existir um novo acionista no comando. Aplica-se, então, a extensão da oferta de aquisição a todos os minoritários? Mais uma pergunta sem resposta exata. A explicação para esses pontos nebulosos hoje tão comuns está no fato de a lei ter sido fundamentada nas hipóteses de controle majoritário, em que o dono da companhia detém pelo menos 50% mais uma das ações ordinárias. Não há nada no diploma que permita o esclarecimento dessas dúvidas. Assim, divergências nessa seara são conduzidas para a esfera da CVM ou para os formuladores do regulamento dos níveis diferenciados de governança da BM&FBovespa.

Conflito insolúvel

Henrique Lang, advogado do Pinheiro Neto, pondera os benefícios de uma nova redação para o dispositivo que versa sobre conflito de interesses. A lei diz que o acionista não pode votar nas assembleias que deliberarem sobre laudos de avaliação de ativos para integralização do capital, examinarem suas contas como administrador ou abordarem outros tópicos que o beneficiem de modo particular. Tampouco está apto a votar quando seu interesse for conflitante com o da companhia.

Na prática, os agentes do mercado entendem que há dois caminhos para o conflito de interesses interferir na votação: quando percebido antes da deliberação, ele impede que o voto aconteça — é o chamado conflito formal; já quando o acionista vota na assembleia e depois é averiguada a sobreposição de interesses trata-se de um conflito substancial (ou material), que justifica a anulação do voto, tarefa mais complexa e custosa. O problema é que a própria CVM já alterou a interpretação sobre qual dos dois conflitos deveria prevalecer, por causa de diferenças na composição do seu colegiado ao longo do tempo. Ora a instância máxima do regulador entendeu que deveria prevalecer o conflito formal, impedindo os votos, ora pendeu para o lado do conflito substancial, permitindo a votação.

Nessas situações, a figura do presidente do conselho de administração, que comanda as assembleias, assume importância ímpar. É ele que decide, por exemplo, se aceita ou recusa votos — como os proferidos em situação de conflito ou os de sócios que descumprem o estabelecido em acordos de acionistas. “Seria interessante que a lei apresentasse mais claramente a extensão dos poderes do presidente”, pleiteia João Marcelo Pacheco, também do Pinheiro Neto.

Outro tempo

Evy Marques, do Felsberg Advogados, sugere mais dois pontos passíveis de aperfeiçoamento. O primeiro é o prazo de prescrição para questionamento de deliberações societárias. A lei oferece um período de dois anos para que se entre com uma ação de anulação de deliberação tomada durante uma assembleia ou mesmo para ações de responsabilidade contra administradores. Na avaliação da advogada, esse é um intervalo longo demais, capaz de gerar insegurança sobre as decisões. Eizirik compartilha essa opinião. Ele lembra que a lentidão para julgamento das ações acaba por deixar investidores sem saber se as decisões tomadas são válidas ou não.

O segundo aspecto envolve o direito de retirada — a possibilidade que o acionista tem de sair da sociedade vendendo suas ações quando discorda de uma determinada decisão tomada em assembleia. Na avaliação de Evy, esse direito poderia ser estendido. Conforme prevê a lei, em operações de incorporação, por exemplo, apenas o acionista da companhia incorporada pode exercê-lo. O acionista da incorporadora, em sua visão, também deveria fazer jus a essa prerrogativa quando não concordar com a compra de uma empresa de patrimônio líquido negativo ou extremamente endividada.

Há mais uma situação no âmbito das incorporações a ser melhorada, opina Hiram Bandeira Pagano Filho, advogado do Mattos Filho. É o direito de preferência nas emissões de ações. Todas as vezes que uma companhia emite ações deve dar àqueles que já são acionistas o direito de subscrever os papéis em primeiro lugar. Para o advogado, essa exigência gera muita complexidade para as aquisições viabilizadas com o pagamento em ações. Nesses casos, ações são emitidas para se honrar o compromisso de compra, mas o direito de preferência atrapalha, uma vez que é necessário oferecer primeiro os papéis aos acionistas atuais. Como resultado, diz o advogado, as aquisições acabam sendo viabilizadas por meio de incorporações ou permutas de ações, ambas operações mais intrincadas e custosas. Pagano Filho observa que a Lei das S.As. foi pensada numa época em que o movimento de consolidação dos mercados era menos intenso. Em sua opinião, uma permissão para se emitir ações sem o direito de preferência em casos como esses resolveria o problema. A CVM, afirma, poderia regulamentar a questão.

Pacheco, do Pinheiro Neto, cita ainda as exigências da lei que caducaram diante das novas tecnologias. Entre elas estão publicação das demonstrações financeiras em jornais, comunicação via telegrama ou carta com acionista detentores de mais de 5% das ações, publicação de relatórios da administração e realização das assembleias na sede da companhia. Gisélia da Silva, gerente de governança corporativa da CPFL, apoia a revisão desses pontos. “A divulgação das demonstrações financeiras é caríssima, mesmo para as grandes empresas”, afirma.

Novos temas

Junto com a Lei das S.As., a Lei 6.385/76, que trata do mercado de valores mobiliários e criou a CVM, chega aos seus 40 anos em dezembro. A principal alteração a ser feita nesse diploma, diz Jean Arakawa, advogado do Mattos Filho, é a atualização dos valores das multas que podem ser aplicadas pela CVM. Elas estão limitadas a R$ 500 mil desde 1997 — a despeito da correção monetária incidente até agora —, a 50% do valor da emissão ou operação irregular ou a até três vezes a vantagem econômica ou a perda evitada com a prática do ilícito.

Arakawa defende, contudo, que o grande avanço a ser conquistado não está na legislação, mas na dotação de condições efetivas para que o sistema de fiscalização da autarquia funcione. “Não adianta mexer na lei se não são atacados os problemas de quem aplica a lei”, afirma. Embora o corpo técnico da CVM seja considerado de alta qualidade, faltam braços para tocar os trabalhos de forma célere. Um processo administrativo sancionador, em casos complexos, pode levar até cinco anos para ser julgado.

Também merece um debate aprofundado, avalia, a conveniência de os acordos de leniência serem incluídos na Lei 6.385/76 e na Lei 4.595/64, que dispõe sobre o sistema financeiro. Arakawa propõe um ponto de partida: a inclusão desses acordos nas leis pode ajudar a coibir condutas indevidas e atos ilícitos praticados em conjunto? Ou essa forma de atuação não se aplica ao mercado de capitais e ao sistema financeiro? Com o tempo, não são apenas as modalidades de transações societárias e as tecnologias avançadas que impõem novas fronteiras aos diplomas de 1976. A corrupção no ambiente empresarial e os métodos para combatê-la igualmente se alinham nesse horizonte.

Para recordar…

Foi em plena ditadura militar e sob a luz de um PIB em milagrosa ascensão que surgiu a Lei 6.404, em 1976. Na época, o esplendor da economia americana e de seu mercado de capitais não deixava dúvidas de que as empresas seriam a locomotiva do desenvolvimento dali para a frente. No Brasil, a atividade econômica se expandia, mas faltavam infraestrutura e capacidade de investimento. O governo dos generais comandava uma nova tentativa de organização desse progresso, com os planos nacionais de desenvolvimento (PNDs) elaborados pelo então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso (1969-1979). O primeiro se concentrou em projetos de integração nacional, especialmente nas áreas de transportes e telecomunicações. Com o segundo, lançado durante a gestão do presidente Ernesto Geisel (1974-1979), a intenção era montar bases para a indústria, com aportes em siderurgia e petroquímica.

Havia consenso sobre a necessidade de ampliação dos investimentos e da taxa de poupança interna. Impulsionar o mercado de capitais parecia o caminho mais acertado, mas antes era preciso resgatar sua credibilidade. Em 1971, a Bolsa de Valores do Rio havia passado por uma grave crise especulativa, que fez muitas famílias perderem suas economias. A lei societária de 1940, por sua vez, estava completamente defasada e tinham fracassado as tentativas anteriores de incentivo ao mercado de capitais. Não tiveram os efeitos esperados nem a Lei 4.728 (Lei do Mercado de Capitais, de 1965) nem a estratégia do governo federal de apelar para incentivos fiscais — que teve início em 1964 por meio de uma série de leis específicas e culminou com o Decreto-Lei 157, três anos depois.

Nesse contexto começou a nascer a ideia de uma nova lei para as sociedades por ações. O diploma precisaria estruturar a grande empresa nacional, oferecer os instrumentos jurídicos para seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, assegurar um arcabouço de proteção aos acionistas minoritários de companhias abertas. Entusiasta de primeira hora do mercado de capitais, o ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen (1974-1979) foi quem convenceu Geisel, logo em seu primeiro ano no comando da pasta, da necessidade de uma nova lei para as S.As. Com o aval do presidente, Simonsen convidou os renomados juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira para liderar os trabalhos.

Exímios conhecedores do direito comparado, Lamy e Bulhões analisaram o que havia de mais moderno nas legislações americana e europeia. A elaboração do anteprojeto de lei demorou quase dois anos, e incluiu versões novas formuladas com base em críticas e sugestões feitas por advogados renomados da época.

Nos bastidores do Congresso, a negociação para aprovação do projeto foi intensa entre o partido do governo, a Arena, e a oposição, representada pelo MDB. O advogado e deputado Tancredo Neves, do MDB de Minas Gerais, tornou-se o relator do projeto na Câmara. Mas foi no Senado que a redação da lei ganhou a sua emenda mais polêmica, apresentada pelo senador Otto Cyrillo Lehmann, da Arena. Ela instituiu como obrigatória a oferta pública para aquisição de ações na hipótese de alienação de controle da companhia aberta, hoje mais conhecida pelo termo em inglês tag along. A emenda resultou no artigo 254 da Lei 6.404/76, que acabou sancionado sem vetos pelo presidente Geisel, apesar dos protestos dos autores à instituição do dispositivo. A discussão precoce e acalorada sobre o ainda hoje polêmico tag along — que não era assim chamado na época — parecia antever questões que seriam relevantes quando, enfim, deslanchasse o mercado de ações brasileiro.

(Marta Barcellos)


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