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Além do petrolão
Relatório do Ministério Público Federal aponta as responsabilidades da União e de conselheiros da Petrobras por uma outra fraude: a contenção dos preços dos combustíveis
Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Em 2014, o Grupo de Trabalho Energia e Combustíveis, do Ministério Público Federal (MPF), iniciou um estudo para avaliação da política de preços de combustíveis adotada pela Petrobras. Chamaram a atenção dos procuradores as recorrentes notícias de que a petroleira não subia os preços da gasolina e do diesel mesmo com o aumento internacional do valor do barril de petróleo. O resultado do trabalho compõe um relatório de 87 páginas, divulgado em maio deste ano. Nele, seis procuradores destrincham um “expediente fraudulento” bem menos propalado que o endêmico esquema de corrupção do petrolão. Segundo o parecer, a União abusou de seu poder como controladora da companhia ao usá-la em favor de uma política anti-inflacionária, entre 2008 e 2014. O conselho de administração da petroleira nesse período, destaca o MPF, também teve sua parcela de culpa: deixou de cumprir com seu dever de diligência quando “deliberadamente decidiu não agir diante dos prejuízos bilionários sofridos pela Petrobras”.

De acordo com o relatório do MPF, entre 2008 e 2012, Petrobras e União atuaram de forma coordenada na manipulação do preço da gasolina. Quando a companhia elevava o valor do combustível na refinaria para acompanhar a cotação internacional do petróleo, o governo federal reduzia a alíquota da Cide-combustíveis, tributo de competência exclusiva da União incidente sobre produtos da cadeia do petróleo. A estratégia foi adotada seis vezes ao longo desse período, segundo o grupo coordenado pelo procurador André Bueno da Silveira. Depois de várias reduções, o valor da Cide, que chegou a ser de R$ 0,10 por litro em 2008, foi zerado por um decreto do governo em 2012.

Essa atuação coordenada, segundo o MPF, impediu que os aumentos impostos pela Petrobras às refinarias chegassem ao consumidor e, com isso, alimentassem a inflação. A tática, contudo, gerou um efeito colateral: prejudicou os investimentos em infraestrutura de transporte, destino original dos valores arrecadados com a Cide. “A redução do tributo, da forma como foi feita, acarretou prejuízos bilionários à União e à sociedade brasileira como um todo, em razão, por exemplo, da forte deterioração de estradas de rodagem”, diz o relatório. Outro efeito nocivo foi o estrangulamento do setor sucroalcooleiro. Os produtores de etanol dependem da incidência da Cide sobre a gasolina para manter preços atrativos: com os carros flex, o consumidor só opta pelo derivado da cana-de-açúcar quando seu valor fica abaixo de 70% do preço da gasolina.

A manipulação da Cide, no entanto, não foi capaz de fazer frente à elevação contínua do petróleo — o preço médio do barril subiu de US$ 98,52 em 2008 para US$ 111,68 em 2012. Com a Cide já zerada para compensação da alta da commodity em 2012, a Petrobras passou a ter que subsidiar o preço da gasolina. “Os aumentos dos preços da gasolina nas refinarias começaram então a ser absorvidos, notadamente a partir de 2013, pelo caixa da própria Petrobras, pois o conselho de administração da empresa se negava a repassar os aumentos para os consumidores. Esse fato, possivelmente, é a principal causa da fragilização da companhia, muito além dos problemas de corrupção descobertos na chamada Operação Lava Jato”, afirma o MPF. Segundo os procuradores, houve uma “resistência ilícita por parte do conselho de administração da Petrobras em autorizar novos aumentos dos preços”.

Uso eleitoral

“O que aconteceu foi uma expropriação do acionista da Petrobras”, avalia Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. Pelos seus cálculos, entre 2010 e 2014, a companhia deixou de ganhar R$ 160 bilhões com a venda de gasolina e diesel. “Usaram esse dinheiro para controlar a inflação e vencer as eleições. A dívida da Petrobras, em torno de R$ 500 bilhões, poderia ser um terço menor, mas ninguém nunca mais vai ver esse dinheiro”, critica.

O uso eleitoral da Petrobras também é citado no relatório. O Ministério Público observa que, a despeito das discussões no conselho de administração sobre a necessidade de aumento de preços, fundamentada em indicadores técnicos (como a relação entre endividamento e Ebitda), a Petrobras postergou o reajuste de 2014 para “depois do resultado das eleições presidenciais”, em novembro.

Cabe destacar que o governo do PT não adotou um expediente inédito ao usar uma estatal para subsidiar os preços dos combustíveis. Mas ao fazer isso aproximou o Brasil de países pouco democráticos como Venezuela e outras nações do Oriente Médio e da África, onde esse tipo de prática é comum. “Mas aqui o PT foi mais ousado. Fez isso com uma companhia de capital aberto, que tem acionistas minoritários”, observa Pires.

A tática foi possível porque a Petrobras não tem uma política clara para formação dos preços dos combustíveis. Em seu formulário de referência, a petroleira aborda o assunto de forma superficial. Basicamente, diz levar em consideração as condições do mercado brasileiro, buscando alinhar os preços internos do petróleo e dos derivados às cotações internacionais no longo prazo. “Não necessariamente há reajuste dos preços a refletir a volatilidade dos preços do petróleo nos mercados internacionais ou de movimentos de curto prazo no real”, afirma a companhia, na seção fatores de risco do formulário. No mesmo documento, faz o alerta: “A União Federal, como acionista controladora, pode buscar objetivos macroeconômicos e sociais por meio da Petrobras”.

Na visão do MPF, o uso da Petrobras para gestão de uma variável macroeconômica como a inflação caracteriza abuso do poder de controle, de acordo com o artigo 116 da Lei das S.As. A legislação societária até prevê uma regra de exceção — o artigo 238 diz que a pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e as responsabilidades do acionista controlador (previstos no artigo 116), mas poderá orientar as atividades da empresa de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação. O interesse público da Petrobras, entretanto, não é, nem nunca foi, o controle inflacionário. A própria Petrobras, de olho na intromissão de seu controlador, encomendou pareceres jurídicos sobre o tema. Um deles, obtido pelo MPF, diz que o artigo 238 da Lei das S.As. “não autoriza que a União lhe imponha o ônus de implementar políticas públicas gerais, extrassetoriais e de ordem macroeconômica e cumprir deveres não relacionados com seu fim social”.

Conselho conivente

Para apurar a responsabilidade do board diante dos desmandos do controlador, os procuradores se debruçaram sobre as atas de reunião do conselho de administração. De acordo com o MPF, mesmo após o governo ter zerado a alíquota da Cide, o conselho de administração da Petrobras postergou decisões sobre reajustes de preços.

“Esse trabalho evidencia a importância de os conselheiros agirem de forma diligente e contribui ao ressaltar a atuação daqueles que, mesmo sendo vozes vencidas, discordavam do que era praticado”, avalia Ana Siqueira, sócia da Maple Consultoria. Ela se refere, especificamente, à atuação de Mauro Cunha, conselheiro que, ao lado de José Guimarães Monforte, não era indicado pelo governo federal. Ambos ocupavam vagas destinadas a representantes eleitos por acionistas minoritários.

Numa das atas destacadas pelo MPF, relativa a uma reunião de novembro de 2013, Cunha aparece questionando a então presidente e conselheira Maria das Graças Foster sobre a razão para a diretoria executiva não ter elevado os preços dos combustíveis. Ela respondeu “não ter sido autorizada a efetuá-los”. Na ata da mesma reunião, Cunha registrou que os reajustes aplicados “teriam sido definidos em conversas privadas entre a diretora presidente e o representante do acionista controlador após o término da reunião do conselho”.

Enquanto isso, outros conselheiros defendiam a manutenção dos preços em favor da política anti-inflacionária. No mesmo encontro, Luciano Coutinho, então conselheiro da companhia e presidente do BNDES, argumentou que a elevação de preços não era conveniente, dada a posição da Petrobras “como grande empresa nacional, com responsabilidade de suprir o mercado brasileiro e, sobretudo, porque o processo de estabilização da economia é historicamente recente e ainda vulnerável à memória inflacionária”. Já José Maria Rangel, outro conselheiro indicado pela União, se manifestou contra o repasse, diante da necessidade de “preservação do poder de compra dos trabalhadores”.

Punição

O relatório produzido pelo grupo de trabalho do Ministério Público não tem poder para responsabilizar o governo federal ou os administradores da Petrobras, mas pode ser usado nas diversas investigações em curso — o que inclui os processos administrativos conduzidos atualmente pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo próprio MPF. O estudo sugere inclusive que o Judiciário celebre termos de compromisso com a Petrobras e a União, exigindo de ambos a adoção de critérios técnicos para o reajuste dos combustíveis. O acordo é uma alternativa às multas pecuniárias que acabariam por prejudicar ainda mais os acionistas da petroleira e os contribuintes.

A adoção de uma política transparente de formação dos preços dos combustíveis é, sem dúvida, crucial para que se evite novos desmandos por parte do controlador. Embora a Petrobras tenha feito investimentos em governança desde a eclosão da Operação Lava Jato, a companhia continua sem uma política clara nesse sentido. Tanto que o valor da gasolina no mercado brasileiro ainda está desalinhado do preço internacional — a diferença é que, agora, essa situação favorece a petroleira. Em 2014, o preço internacional da commodity assumiu tendência decrescente — voltou a ficar abaixo da casa dos US$ 100 e, hoje, está na faixa de US$ 40 —, mas a Petrobras não alterou os preços locais.

O resultado da equação foi um dos fatores responsáveis pelo lucro de R$ 370 milhões da petroleira entre abril e junho deste ano, o primeiro após três trimestres seguidos de prejuízos. “A Petrobras está aproveitando para repor perdas do passado, mas isso não é uma política transparente e nem correta”, avalia Pires. O especialista tem esperança de que a situação se reverta ainda em 2016. À frente da presidência da companhia desde junho, Pedro Parente deve divulgar, até o fim do ano, o planejamento estratégico de sua gestão. Procurada pela reportagem, a Petrobras não
concedeu entrevista.


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