A sangria da JBS
Os percalços enfrentados pela companhia de alimentos desde que seu nome — e o de sua controladora — entraram na mira da Polícia Federal
Ilustração: Beto Nejme / Grau 180

Ilustração: Beto Nejme / Grau 180

O dia 17 de março de 2017 vai ficar por muito tempo marcado na história de duas das maiores empresas brasileiras de processamento de proteína animal. Na manhã daquela sexta-feira a Polícia Federal (PF) deflagrou — com estardalhaço — a Operação Carne Fraca, que surpreendentemente envolveu as gigantes JBS e BRF, ambas companhias de capital aberto. Segundo as investigações, a JBS cometeu irregularidades para obter certificação sanitária de produtos da marca Seara e adulterou as datas de validade de mercadorias da Big Frango. Contra a BRF pesaram as acusações de corrupção, embaraço de fiscalização e tentativa de impedimento de suspensão de exportação. A operação teve efeitos deletérios imediatos, tanto nos açougues e balcões refrigerados dos supermercados quanto nos pregões de ações. “Esses problemas com BRF e JBS estavam completamente fora do radar de qualquer investidor ou gestor de fundos. São aqueles riscos que não vemos”, escreveu Fernando Camargo Luiz, sócio-diretor da Trópico Investimentos, em seu Twitter.

Pelo menos na bolsa, a situação ficou ainda pior para a empresa comandada pela família Batista: os papéis da JBS, que um dia antes do início da Carne Fraca valiam R$ 11,99, estavam cotados a R$ 10,34 em 17 de abril — perda de 13,76%. No caso da BRF, a desvalorização foi bem mais modesta, de 0,5%. A diferença tem ao menos uma explicação. O envolvimento em um escândalo dessa magnitude é a primeira grande mácula na história da BRF, empresa resultante da fusão de Sadia e Perdigão, em 2009. Não se pode dizer o mesmo da JBS, que há pelo menos um ano sofre desgaste de imagem principalmente com a implicação de sua controladora, a holding J&F Investimentos, na Operação Greenfield, em que a PF apura ilegalidades relacionadas a fundos de pensão de estatais. Analistas e investidores temem que a lista de irregularidades envolvendo a JBS ainda não esteja concluída.

Carne duvidosa

A primeira reação da JBS à Carne Fraca foi de negação. “A companhia e suas subsidiárias atuam em absoluto cumprimento de todas as normas regulatórias em relação à produção e à comercialização de alimentos no País e no exterior”, afirmou a JBS, em comunicado divulgado no mesmo dia 17 de março. A empresa informou, ainda, que até então não havia qualquer medida judicial contra seus executivos. Entretanto, em abril, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) indiciaram, em processos separados, cerca de 60 pessoas. Entre eles estava o médico veterinário Flavio Evers Cassou, funcionário da Seara, que segundo a JBS estaria cedido ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Ele foi preso e teve seus bens bloqueados. De acordo com a PF, Cassou era especialmente próximo de Maria do Rocio Nascimento, chefe do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sipoa) do Mapa no Paraná — proximidade que teria permitido à Seara receber certificações sanitárias sem passar por inspeções. Outro indiciado foi Roberto Mülbert, que havia deixado o cargo de diretor executivo da Big Frango no fim de 2016. Em diálogos interceptados pelos investigadores, ele questiona Maria do Rocio sobre a possibilidade de prorrogação do uso de embalagens com data de vencimento próxima e recebe uma resposta positiva. Há também, segundo a PF, referências ao recebimento, pela servidora, de “asinhas”, sugestivo apelido de propina.

Na tentativa de estancar a sangria, a JBS não se limitou a um papel defensivo. Comprou horários nobres na televisão e páginas inteiras de jornais de grande circulação para dizer que nunca vendeu carne estragada e reiterar que seus produtos são seguros para o consumo. Interessante notar que a empresa precisou ser veemente nessa defesa até para resguardar marcas de sua propriedade que não foram citadas no escândalo — como a Friboi, que recebeu pesados investimentos de marketing nos últimos anos para se posicionar como a marca favorita dos consumidores que exigem “carne de qualidade e procedência garantida”. “O trabalho da JBS com o ator Tony Ramos [garoto-propaganda da Friboi] foi excepcional para tirar da carne esse aspecto de commodity. Mas com o estouro da Carne Fraca, muitos consumidores passaram a recusar o produto”, comenta Elio Micheloni, operador do mercado de boi da Terra Investimentos.

Embargos

Considerando que o Brasil ocupa posição de destaque como fornecedor global de carne bovina, foram relevantes as repercussões da Carne Fraca também no mercado externo. Enquanto os EUA optaram por apenas intensificar as inspeções sanitárias, a União Europeia adotou uma medida mais drástica: barrou a importação de produtos dos 21 frigoríficos investigados pela PF. Já China, Hong Kong, Chile, Egito, Coreia do Sul e Irã, que inicialmente impuseram embargos, acabaram voltando atrás — mudança decorrente, em grande parte, do fato de o governo brasileiro prontamente ter saído em defesa da indústria da carne. E não poderia ter sido diferente, já que o Brasil responde por quase 20% das exportações globais de carne bovina (40% no caso do frango), tendo como principais atores companhias de capital aberto — além de BRF e JBS, Marfrig e Minerva. “O governo teve um papel importante na suavização dos bloqueios às importações, tentando mostrar que a operação da Polícia Federal envolveu apenas alguns frigoríficos, muitos deles pequenos, e não toda a cadeia”, observa Ari Santos, gerente de renda variável da H.Commor.

Apesar da reversão da maioria dos embargos, em março deste ano na comparação com igual período de 2016 as exportações de carne bovina caíram em valor (3,3%, para US$ 486,52 milhões) e em volume (11,2%, para 121 mil toneladas), segundo a Secretaria de Relações Internacionais do Agronegócio. O encolhimento do mercado provocou também um choque interno de oferta e, consequentemente, tensão entre os pecuaristas (que formam a ponta inicial da cadeia, a de fornecimento para os frigoríficos). Em 23 de março, a JBS anunciou a suspensão, por três dias, de sua produção em 33 das 36 unidades de abate que mantém no Brasil. Posteriormente as atividades foram retomadas, mas com capacidade 35% menor. A expectativa da empresa era de normalização da situação em maio.

“Investidores temem que o escândalo seque as fontes de financiamento da JBS ou, no pior cenário, leve ao afastamento definitivo de seus líderes”

Os reflexos iniciais da Carne Fraca sobre a operação da JBS, no entanto, só poderão ser conhecidos a partir de 15 de maio, data da divulgação do balanço do primeiro trimestre. De qualquer maneira, o prognóstico dos analistas é de que a companhia sofrerá menos que alguns de seus pares (mesmo os que não estão sob investigação da PF) na eventualidade de os embargos à carne nacional se ampliarem ou perdurarem. De acordo com relatório do Credit Suisse de 20 de março, assinado pelo analista Victor Saragiotto, a JBS seria menos prejudicada que Minerva e Marfrig por possuir 70% do seu Ebitda gerado em suas plantas operadas no exterior. Isso permite à companhia atender aos mercados em que a carne brasileira foi embargada a partir de plantas mantidas nos EUA, na Europa ou Austrália, por exemplo.

Inferno astral

A atual configuração da JBS é resultado de uma frenética corrida de compras, financiada pelos recursos captados no mercado a partir da abertura de capital, em 2007, e também obtidos no BNDES. Há dez anos a família Batista deu início à empreitada, adquirindo a Swift & Company dos EUA e da Austrália, e não parou: em 2009 comprou a americana Pilgrim’s Pride e incorporou a brasileira Bertin; em 2013 adquiriu ativos da XL Foods nos EUA e no Canadá e comprou a Seara no Brasil; em 2014 abocanhou a australiana Primo SmallGoods e as operações brasileira e mexicana da Tyson Foods; em 2015 comprou unidades da Cargill nos EUA e a Moy Park no Reino Unido; em 13 de março deste ano adquiriu a Plumrose USA. Essas incorporações engordaram o grupo JBS e espalharam seus tentáculos em diversos segmentos e países.

A espécie de blindagem nas operações propiciada pela internacionalização e pela diversificação de negócios, no entanto, parece não livrar a JBS do verdadeiro inferno astral que atravessa. Poucos dias após o estouro da Carne Fraca, o nome da empresa apareceu em outra investigação, um pouco menos ruidosa, mas não menos importante: a da Operação Carne Fria, conduzida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Nesse caso, a JBS é acusada de adquirir cerca de 50 mil cabeças de gado provenientes de área ilegalmente desmatada. Diz o Ibama que dois frigoríficos do grupo no Pará compraram o gado, o que configura descumprimento de um termo de ajustamento de conduta (TAC) acertado pela JBS com o MPF em 2009 — a companhia se comprometeu a não comprar animais criados em áreas desmatadas. O Ibama multou a JBS em R$ 24,7 milhões e interditou os frigoríficos envolvidos. A empresa negou a compra e recorreu à Justiça — obteve uma liminar que suspendeu as interdições. Como o efeito da liminar é temporário, a briga continua.

Respingos da controladora

Paralelamente, o grupo enfrenta uma justificada desconfiança do mercado em relação à idoneidade da J&F Investimentos. A holding — também acionista de empresas como Eldorado Brasil, Alpargatas, Vigor, Banco Original, Flora (de cosméticos e produtos de limpeza) e Canal Rural — é uma das investigadas na Operação Greenfield, que desde setembro do ano passado apura irregularidades que causaram prejuízos de R$ 8 bilhões aos fundos de pensão de funcionários de Caixa Econômica Federal (Funcef), Banco do Brasil (Previ), Correios (Postalis) e Petrobras (Petros). A PF descobriu que essas fundações compravam cotas de fundos de investimento em participação (FIPs) com base em avaliações econômico-financeiras irreais e tecnicamente irregulares, que superestimavam artificialmente o valor dos ativos. Ao todo, 40 pessoas foram indiciadas por envolvimento em irregularidades identificadas em oito FIPs.

Um dos fundos é o FIP Florestal, constituído em 2009 pela J&F para angariar recursos para a Florestal, empresa de reflorestamento do grupo e que tinha como sócia também o empresário Mário Celso Lopes. Entre 2009 e 2010, Petros e Funcef ingressaram no fundo, com um aporte total de R$ 550 milhões. Cada uma das fundações ficou com 24,75% das cotas, restando o controle nas mãos de J&F e Lopes, juntos com 50,25%. Em 2011, a Florestal se associou à Eldorado, outra companhia em que J&F e Lopes eram sócios (com 75% e 25% do capital, respectivamente). A fusão foi uma exigência do BNDES para liberar um empréstimo de quase R$ 3 bilhões para a construção de uma nova planta da Eldorado, em Mato Grosso do Sul, projetada para ser a maior do mundo. Porém, como a Eldorado recebeu uma avaliação superior à da Florestal, as fundações foram diluídas na empresa resultante da fusão: passaram a deter, conjuntamente, 16,4% da nova empresa. Já a J&F reduziu sua fatia de 75% para 58,6%, enquanto Lopes permaneceu com os mesmos 25%. Segundo as investigações da PF, as fundações foram prejudicadas na operação por laudos que teriam superestimado o valor econômico da Eldorado em detrimento da Florestal. Todavia, mesmo antes disso, afirma a PF, Petros e Funcef já haviam sido enganados: há indícios de que o valuation da Florestal também foi puxado para cima na ocasião do ingresso dos fundos — assim, apesar do “aporte de capital próprio, de mais de meio milhão de reais, e dos grandes riscos assumidos, Funcef e Petros não obtiveram o controle da empresa”, segundo a investigação.

Como resultado da primeira fase da Greenfield, iniciada em 5 de setembro de 2016, os irmãos Wesley Batista e Joesley Batista, principais sócios da J&F Investimentos, foram afastados de seus cargos em todas as empresas do grupo por ordem da Justiça — uma medida cautelar alternativa à prisão. Por força de um acordo firmado com o MPF, no qual aceitaram apresentar uma garantia financeira de R$ 1,5 bilhão, em 14 de setembro eles retornaram às atividades. Wesley é CEO da JBS, enquanto Joesley acumula as funções de chairman da JBS e de presidente da J&F. Detalhe: o valor dado em garantia corresponde ao montante que a J&F deveria devolver aos fundos de pensão em caso de condenação dos executivos. A empresa nega que tenha prejudicado as fundações.

Para os investidores, o afastamento dos principais executivos da companhia, ainda que por um curto período, deu o alerta. O receio é que o escândalo envolvendo a controladora seque as fontes de financiamento da JBS e, no pior dos cenários, acarrete o afastamento definitivo de seus principais executivos. Em relatório, o estrategista-chefe da XP Investimentos, Celson Plácido, observou que os desdobramentos da Greenfield acentuam a percepção do risco da JBS. E os novos capítulos não são nada favoráveis.

Deflagrada em 8 de março, a segunda fase da Greenfield apura um contrato de R$ 190 milhões firmado entre a Eldorado e uma empresa de Lopes, a Eucalipto Brasil. A PF acredita que esse negócio na verdade representa uma tentativa de suborno para evitar que Lopes colaborasse com as investigações. A suspeita motivou a prisão do empresário, em 8 de março, mas no mesmo dia ele foi solto. Em 31 de março, o juiz federal Vallinsney de Souza Oliveira, da 10ª vara federal em Brasília, atendeu ao pedido do MPF e determinou uma série de medidas cautelares a serem cumpridas por Joesley Batista, como afastamento de suas funções na Eldorado e na J&F e proibição de comunicação com 96 pessoas (incluindo Lopes). O magistrado também determinou o bloqueio de todas as ações da holding detidas na Eldorado. Prontamente a J&F informou que as determinações foram acatadas.

Parece mentira, mas além de Carne Fraca, Greenfield e Carne Fria, mais duas operações envolvem o grupo: a Sepsis e a Cui Bono. Iniciada em julho passado, a Sepsis revelou que a Eldorado pode ter sido favorecida por um aporte de R$ 940 milhões do FI-FGTS, liberado mediante o pagamento de propina pela empresa, entre outras pessoas, ao ex-executivo Caixa Econômica Federal Fábio Cleto. Já a Cui Bono, um desdobramento da Lava Jato, apura a suspeita de que J&F e JBS fazem parte de um grupo de empresas beneficiadas por um esquema de fraudes na liberação de créditos pela Caixa, de 2011 a 2013. Na época em que Geddel Vieira Lima, investigado pela Lava Jato, foi vice-presidente de pessoa jurídica da Caixa, o frigorífico recebeu um financiamento de R$ 1,8 bilhão. E a holding da família Batista foi agraciada com R$ 500 milhões vindos de uma emissão de debêntures totalmente adquirida pela Caixa. J&F, JBS e Eldorado negam as acusações.

Horizonte incerto

A sequência de escândalos jogou um balde de água fria, pelo menos por enquanto, no plano do frigorífico de lançar uma oferta pública inicial de ações da JBS Foods International (JBSFI) na bolsa de Nova York (Nyse). A subsidiária, com sede na Holanda, reunirá todos os negócios do grupo fora do Brasil. Quando a JBS anunciou a novidade, em 5 de dezembro de 2016, suas ações subiram 18%. Cabe lembrar que essa oferta seria uma alternativa à proposta de reestruturação societária sugerida pela JBS em maio do ano passado — posteriormente vetada pelo BNDESPar, detentor de 20,36% do capital do frigorífico. No desenho inicial, a JBSFI não seria uma subsidiária, mas sim a controladora do grupo — o que seria possível com a transferência, à nova empresa, de ativos responsáveis por 85% do caixa operacional da JBS. O BNDESPar barrou a transação, sob os argumentos de que “implicaria a desnacionalização da JBS”, alterando direitos e deveres dos acionistas, e de que submeteria a companhia a legislação e jurisdição estrangeiras (a JBSFI teria sede na Irlanda e ações negociadas na Nyse).

Agora, com o impasse resolvido e a JBSFI na posição de subsidiária, a JBS estuda a melhor hora para lançar o IPO do seu braço internacional. Esperava-se que a oferta fosse feita ainda neste primeiro semestre, mas, segundo apurou a reportagem, esse prazo pode ser postergado diante da necessidade de resgate da confiança do mercado. Na visão de analistas, num momento em que más notícias envolvendo a companhia se amontoam, o IPO poderia impulsionar o preço dos papéis da JBS. Em teleconferência para comentar o anúncio da oferta de ações realizada no dia 6 de dezembro, Wesley Batista não informou quanto a companhia pretende levantar com a emissão, mas afirmou que a totalidade dos recursos será utilizada para a redução da alavancagem do grupo. No caso da JBS, a relação entre dívida líquida e Ebitda, tradicional medida de alavancagem, terminou 2016 em 4,16, e a expectativa do grupo é encerrar este ano com o indicador em 3.

O comprometimento do grupo com a manutenção de um endividamento equilibrado e com uma gestão eficiente é o que permite que os investidores mantenham apostas na JBS, apesar dos inúmeros problemas. “Comparando com a BRF, por exemplo, numa análise fria, a JBS está melhor em termos de management e de números de balanço”, afirma o sócio da Modena Capital Marcos Elias. “Ninguém duvida da qualidade dos produtos e da capacidade da JBS de entregar resultados”, referenda André Gordon, sócio da GTI. O problema são as “incertezas que pairam sobre a governança”. Agora que a caixa de Pandora do grupo foi aberta, é difícil prever que outros males podem sair de lá.


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