A briga continua
Três anos após o fim da sociedade com Naouri no Pão de Açúcar, Abilio ainda incomoda o ex-sócio — agora, como acionista e conselheiro do Carrefour
Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Quando foi selado o acordo final de distrato de sociedade no Pão de Açúcar, em setembro de 2013, os caminhos de Jean-Charles Naouri, presidente do grupo francês Casino Guichard-Perrachon, e de Abilio Diniz pareciam ter, enfim, se bifurcado. Terminava ali uma disputa societária que já durava pelo menos dois anos e que decorria de uma decisão impetuosa e unilateral de Abilio, então chairmam da varejista, de tentar fundir o Pão de Açúcar com o Carrefour — eterno rival do Casino na França. A união não se concretizou, mas a investida estremeceu fortemente o relacionamento entre os sócios, a ponto de o impasse só se resolver com a renúncia de Abilio ao conselho e com a conversão de suas ações ordinárias em preferenciais. Para os franceses — que, conforme as regras do acordo, assumiram o controle da rede varejista em 22 de junho de 2012 —, a ruptura representou a chance de comandar, sozinhos, um negócio grandioso. Entre 1999, quando eles ingressaram como minoritários, e 2013, ano da saída definitiva de Abilio, a receita líquida do grupo Pão de Açúcar saltou de R$ 5,8 bilhões para R$ 57,8 bilhões. Um pequeno detalhe no distrato, contudo, fez os caminhos de Abilio e Naouri tornarem-se paralelos: foi eliminada a cláusula de não concorrência existente originalmente na sociedade. Sem esse empecilho, não demorou para o empresário brasileiro se tornar acionista e conselheiro de administração do Carrefour — no Brasil e na França.

Após sua renúncia, Abilio passou a concentrar esforços na gestão de recursos do Península, family office de seus herdeiros, com patrimônio próximo a R$ 10 bilhões. Aproximadamente metade desse valor foi obtida, entre 2013 e 2014, com a venda de seus papéis no Pão de Açúcar. O momento, por sinal, não poderia ter sido mais afinado: as ações foram negociadas, em leilões na bolsa, a preços superiores a R$ 100 — hoje, valem em torno de R$ 42. Com o caixa do Península forrado, Abilio foi às compras. Adquiriu, por meio do family office, 10% da subsidiária brasileira do Carrefour em dezembro de 2014. O negócio foi fechado por R$ 1,8 bilhão, com a opção de o empresário ampliar sua participação para até 16% num prazo de cinco anos. Um segundo avanço, contudo, não demorou a acontecer. Em junho do ano passado, ele comprou mais 2% do Carrefour Brasil, aquisição financiada com recursos de terceiros, num acordo firmado entre o fundo Península II e o GIC, fundo soberano de Cingapura.

Como o mercado imaginava, o ingresso de Abilio no braço brasileiro do Carrefour era o primeiro passo de um plano ambicioso. Em abril de 2015, o Península anunciou ter atingido participação relevante no Carrefour após comprar aproximadamente 5% do capital social da varejista na bolsa francesa — fatia que cresceu para 8% no fim de março deste ano. Hoje, o family office brasileiro é o terceiro maior sócio do Carrefour, atrás da família Moulin (11%) e de Bernard Arnault (9%). Com base no preço das ações do Carrefour em 30 de março, a participação da família Diniz na varejista francesa vale cerca de € 1,4 bilhão, o equivalente a cerca de R$ 5,5 bilhões.

Novo round

Em lados opostos do ringue, Abilio e Naouri agora se enfrentam para alcançar o posto mais alto na indústria supermercadista brasileira. Representante do Carrefour no Brasil, Abilio tem uma missão definida: preparar a empresa para abrir o capital, como já fez com o próprio Grupo Pão de Açúcar (GPA). Em 1995, a rede varejista, controlada pela Companhia Brasileira de Distribuição (CBD), listou suas ações na Bovespa e, dois anos depois, ganhou um ticker também na Nyse. Por causa das condições desfavoráveis de mercado, o IPO do Carrefour ainda não tem data para ocorrer. Segundo executivos globais do grupo, não há pressa. Por ora, eles esperam que Abilio use sua experiência e conhecimento para aperfeiçoar as operações do grupo, que tem se destacado pelo bom desempenho nas vendas.

Desde o terceiro trimestre de 2014 as vendas do Carrefour no Brasil crescem em ritmo superior às do GPA — a comparação se restringe ao setor de supermercados, excluindo, portanto, o desempenho de outros negócios comandados pelo Grupo Pão de Açúcar, como a redes Casas Bahia, Ponto Frio e a empresa de comércio eletrônico Cnova. No primeiro trimestre de 2016, o faturamento do Carrefour avançou 16,7% e o do Pão de Açúcar, 10,9%. Quando a comparação se refere a lojas com mais de um ano de funcionamento (same store sales), o Carrefour também leva vantagem: sua receita líquida cresceu 9,9% entre janeiro e março, contra um avanço de 6% do GPA.

O bom desempenho do Carrefour pode ser explicado pelo sucesso de sua bandeira Atacadão, que atua no atacarejo, apelido dado às lojas que atendem tanto o consumidor final quanto o atacadista. Um ponto curioso: em 2007, quando ainda estava no GPA, Abilio tentou arrematar o Atacadão, mas acabou perdendo a disputa justamente para o Carrefour, que levou o ativo por R$ 2,2 bilhões. Agora, o empresário brasileiro se beneficia da própria derrota do passado.

O atacarejo, segundo especialistas, é hoje o nicho do varejo que mais cresce no Brasil. “Esse segmento resgatou o hábito do consumidor de fazer compras maiores para se abastecer de produtos básicos, o que cria uma alternativa perceptível de economia para o brasileiro”, avalia Alberto Serrentino, sócio fundador da Varese Retail, butique de estratégia em varejo. “Trata-se de um modelo que cresce muito e que deve se consolidar ainda mais neste momento de crise. Os preços são, no mínimo, 10% inferiores aos do varejo tradicional”, ressalta Sussumu Honda, presidente do conselho consultivo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Embora o Carrefour não divulgue oficialmente esse dado, fontes do setor estimam que o faturamento das 125 unidades do Atacadão corresponde a mais que o dobro do obtido pelo seu principal concorrente, o Assaí, bandeira de atacarejo do Pão de Açúcar — que em 2015 registrou receita líquida de R$ 11,3 bilhões.

Baixa rentabilidade

Para o GPA, o atacarejo também tem uma contribuição relevante, mas não suficiente para compensar o mau resultado de outras bandeiras que detém no segmento de supermercados. No ano passado, a receita líquida do Assaí avançou 25,5% em comparação a 2014, ao passo que o faturamento das bandeiras Extra e Pão de Açúcar cresceu a mirrada taxa de 1,2%, muito abaixo da inflação.

O fato é que, sob a gestão dos franceses, a deterioração do mercado golpeou em cheio o GPA — e não só no setor de supermercados. De acordo com o balanço consolidado da companhia, no primeiro trimestre deste ano o prejuízo foi de R$ 179 milhões, ante um lucro líquido de R$ 252 milhões em igual período do ano passado. O desempenho ruim na última linha do balanço veio acompanhado de péssimos indicadores de rentabilidade: entre janeiro e março de 2016, a margem Ebitda do GPA foi de apenas 2,3% e a bruta, de 21,8%. Conforme os registros da empresa, que começam em 1999, nunca os patamares de rentabilidade do GPA foram tão baixos, seja de forma consolidada ou considerando apenas as operações de supermercados e hipermercados — entre janeiro e março deste ano, o segmento apresentou margem Ebitda de 3,6% e bruta, de 22,1%. Os níveis são bastante inferiores aos da época em que Abilio ainda era chairman da companhia. Para se ter uma ideia, no segundo trimestre de 2012, esses percentuais eram, respectivamente, 8,6% e 26,8%.

Capa - interna

Diante desse cenário, não é de se estranhar que as ações do Pão de Açúcar estejam derretendo na bolsa. No dia 17 de junho, o valor de mercado da varejista na BM&FBovespa era de R$ 11,6 bilhões — número bastante inferior aos R$ 30,4 bilhões que chegou a valer quando o papel da companhia atingiu sua cotação máxima, em setembro de 2014, e aos R$ 19,6 bilhões registrados em junho de 2012, quando o comando foi entregue definitivamente ao Casino. Em 20 de junho, reportagem de O Estado de S. Paulo afirmou que, segundo fontes, o Casino estaria buscando simplificar sua estrutura societária no Brasil, o que poderia incluir o fechamento de capital do GPA. Em comunicado divulgado no mesmo dia, o Casino negou qualquer intenção de adotar essas medidas.

O que há de errado?

Mas o que explica o fato de a líder do setor varejista brasileiro em número de lojas e faturamento apresentar resultados tão ruins? Uma primeira razão pode estar associada a algumas decisões tomadas pelos franceses que não surtiram o efeito esperado. Desde que assumiu o comando, o Casino adotou uma drástica política de corte de custos. A estratégia incluiu, entre outras medidas, o fim do funcionamento 24 horas de lojas da bandeira Pão de Açúcar, em 2014 — apesar de a operação ser deficitária, a comodidade era apreciada pelos clientes, que podiam ir às compras de madrugada. A varejista planejava repassar a economia com as despesas menores para os produtos, que poderiam ser comercializados a preços mais atrativos, gerando mais vendas. “Só que, nessa crise, isso está muito difícil de acontecer”, observa um executivo com anos de experiência no setor de supermercados.

Em relatório datado de 18 abril, analistas do Brasil Plural registraram outros problemas, com base numa pesquisa feita em 12 lojas do GPA, de diversos formatos e bandeiras, e em concorrentes na capital paulista e em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. De acordo com Guilherme Assis e Felipe Cassimiro, “a maior decepção” foi a loja do Pão de Açúcar que visitaram, onde encontraram prateleiras vazias e caixas espalhadas pelos corredores. Eles também consideraram que, na loja do hipermercado Extra visitada, os esforços de renovação de produtos estavam aquém do esperado. Por outro lado, os analistas ressaltaram que a nova campanha promocional colocada em prática no Extra deve contribuir para a retenção de clientes e para incentivar o crescimento no longo prazo. Assis e Cassimiro destacaram ainda que a comparação dos preços de uma cesta de 17 produtos entre as varejistas apontou o Assaí como o supermercado mais barato e com a melhor experiência de compra, superando o Atacadão. Eles também elogiaram as lojas de pequeno porte de vizinhança do GPA — Minuto Pão de Açúcar e Mini Mercado Extra —, que combinavam boa variedade de produtos e operações sem falhas.

Em nota, a assessoria de imprensa do GPA informou que seus índices de ruptura (falta de produtos nas gôndolas) são inferiores à média do mercado. Além disso, afirmou que 80% do total de lojas do Pão de Açúcar estão revitalizadas desde 2014 e que 62 unidades da bandeira Extra foram modernizadas no ano passado.

À parte a possível perda de qualidade, outros fatores têm impactado negativamente os resultados do GPA no segmento supermercadista. Segundo analistas, um desempenho ruim na divisão de móveis e eletrodomésticos já era esperado, uma vez que esse ramo tem tíquete médio alto e depende de acesso a crédito, cada vez mais escasso e caro. No entanto, o mesmo não era previsto para os hipermercados e supermercados, que têm como característica uma maior resiliência em tempos de crise. Para a analista de varejo do J.P. Morgan Andreia Teixeira, duas razões justificam a performance ruim: desalavancagem operacional, fruto do aumento dos custos unitários das mercadorias em um contexto de fraco crescimento das vendas; e queda da margem bruta, por causa da atividade promocional mais intensa.

Para não perder participação de mercado, o GPA passou a adotar uma política agressiva de descontos. Ela fica evidente na campanha “1, 2, 3 passos da economia”, lançada na rede de hipermercados Extra. Em vigor desde o segundo trimestre, ela oferece descontos progressivos — integram a promoção mil itens, que mudam a cada 15 dias. Na compra de três produtos iguais, o primeiro sai com 20% de desconto, o segundo com 50% e o terceiro fica de graça. A estratégia, aplicada em outros países onde o Casino opera, se baseia numa fórmula tripla: parceria com fornecedores, economia operacional e aumento na quantidade de vendas. A expectativa, segundo o presidente do GPA, Ronaldo Iabrudi, é que a iniciativa aumente o fluxo de clientes nas lojas e contribua para o avanço da receita, compensando a perda de margem dos produtos frente à concorrência. “Enxergamos uma melhora nas margens nos próximos trimestres”, disse o executivo durante teleconferência sobre os resultados, em 11 de maio. Na ocasião, a companhia foi questionada por analistas a respeito de qual seria o apetite do consumidor, cada vez mais arredio, para aproveitar redução de preços para estocar um mesmo produto. O GPA reforçou, porém, que os primeiros resultados dessa estratégia comercial têm sido positivos, principalmente no que se refere ao aumento na quantidade de itens por compra.

Fraude na Cnova

Fora do setor supermercadista, o GPA também passa por maus bocados. A Cnova, empresa que congrega, no Brasil, os sites de vendas on-line de Casas Bahia, Ponto Frio e Extra, é atualmente alvo de uma ação coletiva nos Estados Unidos que a acusa de má gestão. A empresa, que tem ações listadas na Nasdaq, concentra ainda o e-commerce da bandeira Cdiscount, que opera em nove países da Europa, África, Ásia e América do Sul.

O imbróglio começou depois que consultores legais e peritos contábeis externos identificaram, em uma investigação iniciada em dezembro passado, que uma quadrilha de funcionários desviava mercadorias com defeito dos centros de distribuição da empresa no Brasil para revendê-las. Inicialmente, o impacto da fraude foi calculado em R$ 177 milhões, mas, como o processo de investigação interno continua, é possível que esse valor seja revisto.

O plano do Casino é integrar as operações da subsidiária brasileira da Cnova com as da Via Varejo, empresa que reúne as lojas físicas de Casas Bahia e Ponto Frio. Mas, antes, quer fazer uma oferta pública de aquisição de ações para fechar o capital da Cnova na Nasdaq. A companhia emitiu ações na bolsa americana em novembro de 2014, quando angariou US$ 197 milhões. “Estamos trabalhando, independentemente da investigação, mas é lógico que essa situação acaba tomando o tempo do time. E isso pode tirar o foco da companhia”, disse Iabrudi durante a teleconferência de 11 de maio.

Mais brigas

Enquanto o GPA pensa em estratégias para voltar a crescer e o Carrefour aproveita a vantagem, os sócios por trás das empresas continuam a se desentender. Uma primeira peleja, iniciada quando Abilio ainda era chairman do Pão de Açúcar, foi encerrada no segundo semestre do ano passado. A briga começou em abril de 2013, quando o empresário brasileiro, que vinha comprando ações da BRF desde o fim de 2012, se tornou também presidente do conselho de administração da companhia, dona das marcas Sadia e Perdigão.

Na avaliação do Casino, a participação simultânea de Abilio na indústria e no varejo de alimentos levantava “suspeitas de conflito de interesses”. O caso foi parar no Conselho de Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em agosto de 2015, o órgão antitruste concluiu não haver “preocupações alarmantes e evidentes o suficiente em termos concorrenciais” e decidiu arquivar o processo.

Encerrado esse assunto, Abilio e Naouri brigam agora por outro motivo: a venda de imóveis onde funcionam as lojas das redes Extra e Pão de Açúcar. No acordo de acionistas firmado entre os empresários em 2005, a CBD, então controladora do Pão de Açúcar, transferiu para um fundo imobiliário pertencente à família Diniz 60 imóveis, em troca do pagamento de R$ 1,029 bilhão. O dinheiro foi usado para reduzir o endividamento da varejista. Pelo acordo, o fundo se comprometeu a alugar os imóveis para o Pão de Açúcar por 40 anos e a dar o direito de preferência ao grupo em caso de venda dos ativos.

Interessado em fazer caixa para aumentar sua participação no Carrefour, Abilio quer agora se desfazer desses imóveis — pede por eles entre R$ 2 bilhões e R$ 2,5 bilhões. Mas o Casino não se interessa em comprá-los, preferindo exercer seu direito de manter o contrato de locação de longo prazo. Enquanto os dois lados tentam resolver esse impasse, outra disputa corre paralelamente: o Península quer rever os valores dos aluguéis das lojas. O family office defende reajustes, já que os espaços teriam passado por alterações não permitidas pelos contratos de aluguéis, principalmente com a instalação de galerias comerciais. O outro lado, por sua vez, diz que os contratos vêm sendo cumpridos e argumenta que os valores pagos, reajustados anualmente e de acordo com o volume comercializado nas unidades, “assegura rentabilidade ao proprietário mesmo diante da oscilação das vendas”. Naouri, porém, diz enxergar a presença de Abilio nesses pontos com preocupação, por causa do acesso a informações estratégicas sobre movimentação e faturamento das lojas. Como se vê, a troca de golpes entre os ex-sócios está longe de acabar.


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